Me engana que eu gosto

Especialistas da mente humana e da “mente cibernética” explicam por que as mentiras podem ser tão sedutoras a ponto de milhões de pessoas acreditarem nelas e, pior, espalharem fake news.

Fato: as pessoas acreditam em fake news. Não importa quão absurdas possam parecer ou quão carentes de base confiável elas sejam, leitores e espectadores ao redor do mundo ainda compartilham conspirações mirabolantes em seus perfis de mídia social e – isso é incrível – conseguem espalhar o absurdo, convencer pessoas e trazer ainda mais gente para essa “realidade paralela”.

Segundo um levantamento realizado no ano passado pelo Poynter Institute, com o apoio do Google, quatro em cada dez brasileiros afirmam receber informações distorcidas todos os dias. O número é ainda maior entre pessoas que dizem prestar atenção no conteúdo por medo de cair em fake news ou que seus parentes caiam. Nesse cenário, o índice sobe para 65%. O estudo contou com entrevistas de cerca de mil pessoas do Brasil, entre 8,5 mil participantes do mundo inteiro.

Diante dessa pandemia de informações falsas, uma pergunta não quer calar: afinal, por que as pessoas acreditam em mentiras?

O observatório francês De Facto, um projeto financiado pela União Europeia para combater a desinformação, publicou um estudo sobre neurociência e fake news em outubro do ano passado em que analisava como nossas camadas cognitivas contribuem para a forma como lidamos com a desinformação e nos levam a acreditar ou negar as afirmações com as quais interagimos diariamente.

Em resumo, a pesquisa explicou que nosso cérebro é estruturado para fortalecer e ampliar informações que corroboram o que já sabemos e acreditamos. Novidades e complexidades são evitadas. É um mecanismo que nos faz permanecer em vias de conhecimento que já percorremos e onde nos sentimos confortáveis. Mesmo que apresentem evidências sólidas, o “caminho da verdade” só será escolhido se a pessoa estiver aberta a receber novas informações e principalmente acessível ao desconforto de mudar suas dinâmicas habituais de pensamento.

“A proliferação de fake news na era digital está relacionada à reorganização dos saberes e à ampliação do acesso a informações qualificadas e históricas, aumentando a complexidade do mundo em que vivemos”, explica Christian Dunker, psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP. Esse crescimento do conhecimento pode gerar a sensação de desamparo cognitivo, levando as pessoas a se apegarem a crenças e desejos para enfrentar a incerteza. 

“A propagação de fake news busca converter almas, fortalecer crenças e enfrentar o desamparo diante da incerteza e da ignorância.”
Christian Dunker

Segundo Dunker, o fenômeno é similar ao que ocorreu no século 16 com a popularização da imprensa, em que o aumento do conhecimento levou a crises de cognição e à disseminação de mentiras e crenças para formar comunidades e competir com outros saberes. “Esse padrão pode ser observado novamente na era digital, onde a propagação de fake news busca converter almas, fortalecer crenças e enfrentar o desamparo diante da incerteza e da ignorância”, enumera o professor.

Freud também explica o sucesso das fake news. Henrique Pinheiro, psicanalista e filósofo, cita dois textos do médico e psicanalista austríaco, cujas teorias revolucionaram o entendimento da mente e influenciaram significativamente a psicologia e outras áreas das ciências humanas. Psicologia das massas e Análise do eu, além de O mal-estar na civilização, oferecem perspectivas importantes para compreender o comportamento humano na disseminação de informações falsas”, indica Pinheiro.

As obras abordam a psicologia dos indivíduos em grupos sociais e como suas identificações e seus desejos reprimidos influenciam seu comportamento, além de explorar o fenômeno da busca por narrativas que confirmem crenças preexistentes e a negação de informações desconfortáveis, fatores que podem levar à propagação de informações falsas.

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Mídias sociais: um campo de batalha entre a verdade e a mentira

O papel das redes sociais e da mídia na disseminação de informações falsas é significativo, pois esses meios oferecem uma velocidade de entrega de conteúdo que dificulta a verificação. A facilidade de acesso também aumenta a probabilidade de qualquer pessoa se tornar uma ferramenta para a desinformação.

Tai Nalon, diretora executiva da agência Aos Fatos, uma organização brasileira premiada por se focar no jornalismo impulsionado por tecnologia para combater notícias mentirosas, diz que os principais desafios enfrentados no dia a dia de sua equipe são a facilidade de distribuição e a monetização da desinformação nas plataformas digitais, além da falta de soluções adequadas para combater esse problema.

“Para combater a disseminação de fake news, Aos Fatos utiliza uma metodologia de checagem de fatos pública e defende a educação voltada à leitura crítica do noticiário e das redes sociais, políticas  efetivas de combate à desinformação e responsabilização de maus atores por crimes cometidos”, diz Tai.

Que tal usar as mesmas táticas dos espalhadores de mentiras para combater as fake news e o deep fake (em que se manipulam imagens, além da informação)? Jornalista e deep faker, Bruno Sartori tem quase meio milhão de seguidores no Instagram por meio de montagens que usam processos idênticos. Além de bem-humoradas, as postagens servem de alerta sobre quão real pode parecer uma mentira. Sartori começou a usar o deep fake em 2017, após aprender sobre a tecnologia em um fórum estadunidense. Surgiu seu primeiro vídeo viral, de sátira política, e desde então ele continua produzindo conteúdos, com milhares de curtidas e compartilhamentos.

Bem além do entretenimento e informação, Sartori ressalta que o deep fake pode ser explorado de forma ética e inovadora, como no treinamento de modelos para aprimorar diagnósticos médicos. Regulamentações podem ser criadas para garantir o uso adequado dessa ferramenta e evitar abusos. “Em uma década, acredito que a produção de vídeo será amplamente impulsionada pela inteligência artificial, presente em todas as etapas da produção de mídias digitais.” 

Para se proteger e desenvolver um senso crítico diante da disseminação de conteúdos falsos manipulados por deep fake, o jornalista destaca a importância de pressionar as redes sociais para marcarem todo o conteúdo gerado por inteligência artificial e de o governo criar campanhas educacionais para informar a população sobre as possibilidades de manipulação proporcionadas pela tecnologia.

 

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Por trás da tecnologia da informação

Você já ouviu falar do “viés de confirmação”? É aquele fenômeno que, por exemplo, torna a sua primeira página de notícias no Google completamente diferente de qualquer outra pessoa e alinhada a suas buscas mais frequentes. 

As empresas de TI conseguem essa “skill mãe Diná”, de adivinhar nossas vontades, graças ao viés de confirmação, em que algoritmos analisam o comportamento de cada pessoa usuária, suas interações passadas, as preferências e o histórico de navegação para fornecer um conteúdo personalizado.

Ao fazer isso, a tecnologia tende a apresentar informações que estão alinhadas com as crenças e os interesses preexistentes do usuário, reforçando sua visão de mundo e criando uma “bolha informativa”. Isso pode levar à formação de visões estreitas e polarizadas, com pouca exposição a perspectivas diferentes e informações divergentes, aumentando o viés de confirmação e contribuindo para a disseminação de desinformação e notícias falsas.

Efeitos colaterais como esse preocupam os profissionais que lidam com a tecnologia da informação – ainda mais quando se sabe que a cada dia surge uma novidade no meio de TI. A bola da vez são os LLMs. Se você nunca ouviu falar, essa sigla é abreviação de Large Language Models, nome do “cérebro eletrônico” da inteligência artificial generativa por trás de plataformas como o ChatGPT.

Esse tipo de IA é capaz de gerar textos, propagandas publicitárias, fotos, apresentações comerciais, plano de negócios, composições e (olha só a revelação) até ajudou a escrever esta reportagem. Toda a magia acontece com base em instruções bem claras de seres humanos em interfaces, chamadas de prompt.

Entre os principais riscos está a capacidade de os LLMs “alucinarem”, ou seja, responderem a um usuário com uma combinação aleatória de dados que resulte em uma informação falsa, porém com um discurso extremamente convincente. 

“Para evitar e detectar alucinações, é extremamente importante o conhecimento sobre o assunto abordado, o que de certa forma fortalece a necessidade de um humano gerenciando ou direcionando as respostas dos LLMs”, diz Bruno Fazoli, fundador e CEO da escola Let’s Bot, especializada em IA conversacional. “É importante unir esforços das plataformas de mídia social, empresas de tecnologia e instituições educacionais para enfrentar os desafios ético e de segurança impostos pelas deep fakes”, destaca ele. 

A sociedade também precisa ficar de olho. Um ditado milenar ensina que “a mentira tem perna curta”, mas ela pode fazer um estrago danado (e até matar) nessa caminhada.

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Dez ações contra as fake news

As fake news e as deep fakes são ameaças cada vez mais preocupantes na era digital, mas as medidas de segurança cibernética têm se mostrado eficazes no combate a sua disseminação. Tanto indivíduos como empresas têm um papel importante nesse enfrentamento. A seguir, Andréa Thomé, head da WOMCY Latam, uma ONG que busca inserir mulheres no mercado de tecnologia, e Livia Clozel e Alessandra Martins, especialistas em segurança da informação, Metaverso e Data Privacy, elencam algumas ações fundamentais a ser tomadas por usuários, empresas e instituições:

 

1. Ser crítico em relação às informações online
Os usuários devem analisar as notícias com senso crítico, verificando fontes e autenticidade antes de compartilhar.

2. Verificar as fontes das notícias
Certifique-se de que o conteúdo é proveniente de fontes confiáveis e reconhecidas.

3. Evitar o compartilhamento de conteúdo duvidoso
Antes de compartilhar, é essencial confirmar a veracidade do conteúdo.

4. Não clicar em links suspeitos
Evitar acessar links de conteúdo duvidoso que possam levar a sites maliciosos.

5. Contra-atacar com análise de fontes e padrões de disseminação
Técnicas de segurança cibernética monitoram a origem e a disseminação de notícias falsas e deep fakes para desarmar operações de desinformação.

6. Usar autenticação e marca d’água
Soluções de segurança aplicam marcas d’água digitais para verificar a autenticidade de imagens e vídeos.

7. Identificar conteúdo falso
Algoritmos de machine learning analisam textos, imagens e vídeos para detectar fake news geradas por IA.

8. Monitorar redes sociais e plataformas online
Plataformas e redes sociais utilizam soluções automatizadas para identificar e remover fake news e deep fakes.

9. Investir em security awareness e educação para o público
Treinamentos constantes são importantes para que os profissionais tenham mais critério na análise de informações suspeitas.

10. Apostar na ação integrada
Governos, empresas e especialistas precisam fazer parcerias para o compartilhamento de informações, desenvolvimento de tecnologias e criação de políticas e regulamentos para a prevenção e penalidades para os cibercriminosos.