A modelo posa dramaticamente de perfil com uma placa ao lado dos pés com as seguintes informações: “M. Vionnet, agosto de 1924, 4083”. A imagem faz parte de um lookbook permeado por ilustrações no estilo art déco. A data e o número correspondem ao mês do lançamento e à referência da peça, respectivamente. Além disso, nas etiquetas havia o nome da criadora e uma reprodução de sua impressão digital.
Era assim que Madeleine Vionnet, uma das grandes costureiras do século 20, lidava com o mar de cópias de seus designs nos anos 1920 e 30: criando provas de autoria e abrindo um processo atrás do outro. Em bom estilo francês, ela também criou uma associação antiplágio, a Association pour la Défense des Arts Plastiques et Appliqués. Se a cópia indevida não é novidade, casos como o de Madame Vionnet demonstram que a luta contra ela também não é.
Antes de falar sobre cópia, registro e anterioridade, é preciso separar algumas coisas: o debate sobre ciclos, referências e inspirações na moda e a legislação que protege trabalho criativo e justa concorrência. A primeira é uma questão reflexiva, relativa, enquanto a segunda é um pouco mais empírica, pragmática, afinal é a força de lei. A confusão entre as duas é comum e frequente – na prática e no ringue das redes sociais.
No Brasil, esse tema fica a cargo das leis de propriedade industrial (marcas e patentes registradas) e de direitos autorais (quem criou, ou pelo menos quem comprova que criou primeiro). As duas frentes estão sob o guarda-chuva da propriedade intelectual.
Direito Autoral ≠ Propriedade Industrial
Antes de tudo, uma aulinha curta. O direito autoral é destinado à proteção dos interesses dos criadores de obras artísticas, literárias e científicas, enquanto a propriedade industrial tem um viés empresarial. O papel do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi) é catalogar criações detalhadamente, através do registro de marcas e desenhos industriais e de patentes, para, assim, oferecer proteção contra falsificações e concorrência desleal.
É nesse mix que criadores de moda brasileiros muitas vezes buscam refúgio. Mas vale um parênteses para distinguir dois termos citados acima: falsificação e concorrência desleal.
Falsificação, também chamada de contrafação, é a imitação de um produto. Já a concorrência desleal é o uso não autorizado de um produto com marca ou patente registrada no Inpi.
Um exemplo de caso de concorrência desleal no Brasil é o da Osklen contra uma fabricante de sapatos. Em 2015, a etiqueta carioca entrou com uma ação contra uma empresa que vendia modelos muito similares aos seus sapatênis, às vezes, no mesmo shopping. Esse item superparecido, vendido a um preço mais acessível, atraía clientes que poderiam ter comprado o original, acarretando uma perda de receita e a diluição da marca titular. Daí, o enquadramento em concorrência desleal.
O caso foi julgado e a empresa infratora foi condenada a parar de fabricar, estocar, divulgar e comercializar os produtos de titularidade da Osklen, sob pena de multa diária. Além disso, foi estipulado o pagamento de 10 mil reais por danos morais.
Mas e a venda de itens de luxo falsificados aos montes em locais como a Rua 25 de Março, em São Paulo? Não é a mesma coisa? Nem sempre. Isso porque o consumidor do produto falso não é o mesmo do original. Ou seja, a grife não tem perda de receita.
Por isso a proteção contra a pirataria, que é a violação de direitos autorais, não é tão simples. Quando envolve nome, marca e logo, fica menos complicado de provar. Mas, quando é o registro do shape do item em si – uma bolsa, um vestido, um óculos –, sem marca alguma, a história é outra.
A bolsa Birkin, da Hermès, é um dos poucos itens de moda cujo desenho e shape são suficientemente reconhecíveis pelo público (algo que é conferido através de pesquisas de mercado) para justificar seu registro de propriedade industrial mundo afora.
Já a Dior tentou registrar o desenho da bolsa Saddle e teve seu pedido negado pela corte europeia. Um dos motivos para a decisão foi o de que o consumidor médio não pressupõe, necessariamente, a origem dela com base na forma sem ver também os elementos gráficos e textuais, como monogramas ou logos. Leia-se: as pessoas – pelo menos as menos ligadas à moda – não vão ligar o formato da Saddle à Dior, assim, de bate pronto, então não faz sentido protegê-la.
Como funciona a proteção de criação de moda no Brasil
“A proteção na moda é complexa. Temos um conjunto de proteções possíveis, mas nenhuma delas é forte o suficiente de forma isolada”, diz Isabel Hering, advogada de direito da moda no escritório Veirano Advogados. Ela atende clientes variados, desde o Grupo Kering e a joalheria Tiffany & Co. até desenvolvedores de tecidos tecnológicos e ateliês de costura.
Isabel explica que a proteção de uma marca vai além do registro básico de nome e logo. Ela também pode ser tridimensional (o shape de algo inovador ou reconhecido, como o caso da Birkin) e de posição (como o solado vermelho de Christian Louboutin ou a etiqueta da Levi’s no bolso traseiro). Já as patentes servem para proteger criações que demonstram atributos técnicos inovadores em sua categoria – os tecidos plissados de Issey Miyake, por exemplo, têm uma patente de invenção.
O direito autoral, o nome entrega: é sobre o autor. E tê-lo não depende de registro, mas das provas que as partes apresentam, visto que é preciso provar que o direito é seu, e não do outro.
“Você pode até falar: ‘Juro que eu criei isso. Foi um sonho que tive com a minha avó’. Mas as ideias não são protegíveis.”
Regina Ferreira
Nem sempre o detentor do direito autoral vai ser quem, de fato, criou ou fez aquilo primeiro, mas quem conseguiu comprovar para um juiz que teve a ideia antes. “Você pode até falar: ‘Juro que eu criei isso. Foi um sonho que tive com a minha avó’. Mas as ideias não são protegíveis. O que é protegível é o material, o físico. Você precisa exteriorizar essa criação”, fala a advogada Regina Ferreira.
O que pode acontecer por meio de e-mails, posts, mensagens, fotos com data e hora – o que puder comprovar a anterioridade da ideia. Registros em blockchain, na Biblioteca Nacional, na Escola Nacional de Belas-Artes e no próprio Inpi são as alternativas mais fortes para isso, caso haja um conflito
Regina é advogada e coordenadora da pós-graduação em fashion law da Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo. Em seu escritório, trabalha tanto com pequenos criadores quanto com grandes varejistas. E vê de tudo, de marca imensa copiando estampa de criador independente a funcionários revendendo trabalho por fora.
“Às vezes, é falta de orientação para as equipes criativas. O fato de você fazer um frankenstein, ou seja, mudar de cor, inverter para o outro lado, continua sendo uma infração. Você está aproveitando a ideia e não está dando o crédito”, pontua Regina. “Você pode ter um moodboard perfeito, com todas as informações, desde que você observe aquilo e crie algo novo.”
Se o processo criativo é algo meio etéreo, na Justiça não é tão diferente. Não há uma fórmula que aponte se é infração ou não, cópia ou não: a avaliação é subjetiva. “Quando você desenha um vestido, tem o direito autoral sobre o desenho daquele vestido, mas não sobre o objeto do vestido”, complementa Isabel. “Uma mera mudança na cor ou no ângulo da linha, na altura de uma saia, pode abrir espaço para uma alegação de que aquilo não seria mais protegido (por direitos autorais), uma vez que o desenho ou o produto são diferentes.”
Isso ajuda a entender por que a proteção é tão rara na moda, e mais ainda quando se trata de um item de vestuário, e não de um acessório. Outra complicação é a velocidade e o volume com que novas peças são produzidas e lançadas no mercado: simplesmente não há tempo, nem muitas vezes orçamento, para pleitear registros em instituições. E ir à Justiça não é fácil: só a primeira fase de um processo custa pelo menos 6 mil reais e perícias especializadas chegam a 20 mil reais.
“Uma mera mudança na cor ou no ângulo da linha, na altura de uma saia, pode abrir espaço para uma alegação de que aquilo não seria mais protegido.”
Isabel Hering
A proteção brasileira na prática
Por aqui, diferentemente do que acontece na França, onde existe uma legislação específica para proteger criações de moda, a categoria “moda” não aparece na nossa Lei de Direitos Autorais. Por isso, as interpretações das ações variam entre juízes, deixando a situação ainda mais volátil.
Será que o juiz considera o criador de moda um artista protegido, ou um trabalhador que faz peças utilitárias, como copos ou pregos? Vai entender as sutilezas desse mercado, como diferenciar tendência de plágio? Para os criadores, especialmente os pequenos, a sensação é de depender da sorte.
É um meio-termo frustrante, e a Jouer Couture que o diga. Em uma conversa no início de agosto, Ana Carolina F. de O. Della Santina e Mariana Bonfanti, as diretoras criativas da marca de slow fashion sustentável conhecida pelas camisetas de humor afiado, até perderam a conta de quantos processos abriram. Não ganharam nenhum. Notificações extrajudiciais, que são sempre o primeiro passo, foram inúmeras. “Teve uma época que a gente notificava todo mundo, bem faca na bota. Mas você se cansa”, diz Ana Carolina.
Depois da notificação, o caminho costuma ser um acordo fora dos tribunais, até para a parte acusada evitar uma exposição negativa. As duas se lembram da vez em que receberam 25,99 reais em um desses acordos.
Os casos da Jouer Couture mostram como as brechas legais podem impactar os criadores enquanto artistas, que muitas vezes se sentem sozinhos e nadando contra a maré.
Em um dos processos – contra uma grande varejista e sobre uma camiseta com desenho parecido com a estampa Tô Calma Mas Tô Nervosa, um hit da marca –, o juiz considerou a situação apenas “um aborrecimento”. Em outro, contra um fornecedor da plataforma Shein que plagiou o mesmo print, a gigante chinesa foi notificada e as camisetas saíram do ar. Pouco depois, o vendedor copiou outro design da marca e voltou à ativa.
“Teve uma época em que a gente notificava todo mundo, bem faca na bota. Mas você se cansa.”
Ana Carolina F. de O. Della Santina
Mesmo com o registro de marca da frase best-seller aprovado pelo Inpi há dois anos, a dupla da Jouer ainda pena para acompanhar e punir imitadores. “A gente tem um trabalho autoral. Tem humor e tudo mais, mas tem uma pegada política e muita observação. Passamos muito tempo no processo criativo e são meses para sair a frase”, conta Mariana. “E aí entramos com uma notificação – já que o processo, sabemos, é muito ‘aborrecimento’ –, tiram de circulação e depois o mesmo fornecedor volta a copiar“, continua. Hoje, as diretoras criativas tentam se proteger também do desgaste emocional que a situação causa.
Pensando na burocracia envolvida, Ana Carolina suspira antes de opinar. “Tinha que ser mais acessível, porque, quando a marca é pequena ou média, você não tem braço, entende? Aí a gente começa a caçar advogado, tem um milhão de pessoas, você conversa com uma e ela fala outra língua”, afirma.
“A verdade é que o Brasil não protege seriamente a moda”, fala Regina. “Um dos aspectos do direito da moda é justamente pensar em estratégias e soluções para proteger esse criador, para que ele não seja desestimulado. Pelo contrário, para que tenha vontade de continuar produzindo.”
Mas e aí? O que fazer?
A indicação das especialistas é continuar nadando, notificando, tentando, mesmo se com um pouco de descrença. “Da primeira vez que você vir a infração de alguma propriedade intelectual sua, qualquer coisa que te embrulhe o estômago, fale. Vale a pena”, aconselha Isabel. Até porque, se houver um eventual processo, a demora em notificar pode contar pontos negativos na visão de um juiz. A lógica é que, se estivesse de fato incomodando, você teria reclamado antes.
Outro ponto relevante, levantado por todas as entrevistadas, mexe em algo mais profundo. É sobre valorizar a criação de moda culturalmente na sociedade brasileira, deixando de lado a ideia de que ela é fútil ou menor do que outras criações autorais, principalmente internacionais. Dizer que moda é arte abre toda uma outra discussão que não cabe aqui. Porém aplicar alguns pontos de avaliação e julgamento usados em outras searas da cultura seria muito bem-vindo.