Senta que lá vem história

Como o storytelling passou da tradição milenar para estratégia de marketing e vilão do pensamento crítico e coletivo.

No fim de junho, a Shein ofereceu uma viagem a influenciadores para mostrar as supostas condições de trabalho dignas e devidas dos funcionários de algumas de suas fábricas chinesas. Tudo devidamente registrado, postado, curtido e comentado. Até que, dias depois, veio à tona que era tudo encenação, tipo Show de Truman.

Em meados de agosto, a youtuber e empresária Virgínia Fonseca – sim, aquela da base à prova d’água e com “qualidades de skincare” – postou um vídeo em suas redes sociais para mostrar como o novo batom da sua marca, a Wepink, não sai por nada da boca. E não sai mesmo, pelo menos nos cortes nada discretos da edição do filme.

E não são apenas pessoas jurídicas as autoras ficcionais. Tem muita pessoa física fazendo o mesmo, às vezes sem nem perceber – ops, foi só um repost, engajamento é tudo. Porém a participação na polêmica ou ataque da vez pode ter consequências graves do lado de cá da tela. Exemplos? Afirmar que protetores solares – e não os raios solares – são os reais causadores de câncer de pele. Ou colocar em xeque, sabe-se lá por quê, mas com certeza por inveja, a identidade e a raça da jornalista e influenciadora Rafaela Fleur

 

Deu ruim no narrador

Contar histórias é algo intrínseco ao ser humano. É por meio delas que explicamos o mundo ao nosso redor. Os gregos, por exemplo, entenderam sua realidade a partir dos ensinamentos de Homero. As lutas dos judeus e suas jornadas foram contadas no Êxodo. Os cristão vivem de acordo com os dez mandamentos bíblicos.

Essas narrativas compartilhadas, passadas de geração em geração, nos dão um senso de identidade, de ideais, valores, e nos ajudam a estabelecer uma conexão ou afeição pelo outro. Se elas são verídicas ou falsas, não há como afirmar. 

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche já dizia que a verdade não é “nada além de metáforas, metonímias e antropomorfismos. Uma soma de relações humanas que foram poética e retoricamente intensificadas, transferidas e embelezadas, e que, após longo uso, parecem fixas em um povo, canônicas e obrigatórias”.

Corta para hoje. E vamos substituir “contar histórias” por “storytelling”. Você provavelmente já ouviu essa palavra. Antes, ela era usada para discutir como os autores criam formas narrativas nos mais distintos meios – cinema, televisão, teatro, música, livros, games, campanhas publicitárias etc. Nos últimos anos, porém, seu uso ganhou um novo campo de atuação e até outro sentido. 

De uma categoria descritiva ou um elemento de produção artística, o storytelling, agora, se tornou algo que todos deveríamos fazer, um método com cartilha de boas práticas e receita passo a passo para garantir sucesso, engajamento ou apenas ser notado nas redes sociais, no ambiente profissional e na vida pessoal, cada vez mais confusa entre as realidades física e digital.

 

É aí que o fubá começa a engrossar

Durante boa parte do século 20, uma das máximas publicitárias era “diga a verdade, mas faça a verdade fascinante”. Quem disse foi David Ogilvy, considerado o pai da publicidade. A partir da segunda década dos anos 2000, contudo, só a versão fantástica da verdade não colava mais. Com a popularização da internet e o surgimento das redes sociais, o fator humano se tornou essencial para despertar interesse nas pessoas, quer dizer, nos consumidores.

É que aquela ideia de que a internet iria unir o mundo numa grande comunidade global caiu por terra. A partir do momento que a produção pessoal e o livre acesso à informação e conteúdo deixou de depender de intermediários (emissoras de TV, rádio, jornais), escancararam-se desigualdades, privilégios e diferenças. Resultado: superindividualização e a criação de microbolhas sociais.

Com cada um vivendo no seu mundinho particular, lendo, conversando e compartilhando ideias que se adequam a suas crenças, ofereçam esperança ou qualquer tipo de conforto e segurança, é complicado esperar que haja algum tipo de coletividade. E ai de quem tentar furar essas bolhas. Por isso, os altos níveis de intolerância, animosidade, revolta e cancelamentos nas plataformas sociais. No tribunal das redes, a lógica, a escuta, o contexto e até os fatos não importam muito. Na real, não importam nada. É tudo na base da emoção. 

E qual é a lição número um do storytelling marqueteiro? Estabelecer uma conexão emocional com seu público-alvo. Uma das maneiras de fazer isso é dar um pouco de humanidade à comunicação do seu produto ou serviço. Na prática, é encaixar o que se quer comercializar dentro de uma história que pareça relevante, conectada com algum assunto em determinado momento e que não tenha como único objetivo a venda. É preciso ter “propósito”.

É a marca que afirma valorizar seus empregados, usar matéria-prima orgânica, fazer compensação de carbono e manda newsletter sobre a coleção 100% sustentável (sem perceber que, para atingir tal porcentagem, aqueles produtos e sua comercialização nem deveriam existir). É também aquela que se apresenta como guardiã de manualidades regionais ou salvadora da indústria e da moda nacional.

Aliás, a figura do herói, onipresente nas fábulas, mitos e histórias ancestrais, também foi cooptada pela publicidade. Tem sempre aquela pessoinha bem intencionada pronta para exterminar o mal e instaurar a paz e a prosperidade. E tem narrativa mais emocionante do ser humano salvador da pátria? Em uma sociedade e cultura de adoração às celebridades, nem se fala. 

Mas conforme casos supostamente heroicos se revelam o completo oposto, com batalhas estritamente pessoais, será que essa charge ainda faz sentido? São essas as histórias que queremos propagar? Se depender das redes sociais, sim. E, de novo, é tudo culpa da emoção.

Uma pesquisa de 2018 do MIT constatou que o compartilhamento de informações falsas no Twitter eram 70% mais prováveis do que a verdade. Conteúdos verídicos eram retuitados por mais de mil pessoas, mas o 1% das histórias falsas eram compartilhadas rotineiramente por mil e 100 mil usuários. Outro detalhe: as histórias verdadeiras levaram cerca de seis vezes mais do que as fake para atingir 1.500 pessoas.

Sim, tem os bots que aceleram a disseminação de fake news. Por isso, os pesquisadores do instituto de tecnologia usaram um software para identificar e eliminar postagens de robôs. E o resultado foi o mesmo.

O estudo também analisou os tipos de reações que alegações falsas e verdadeiras causam nas pessoas: as falaciosas provocaram respostas de surpresa e repulsa. As verdadeiras geram expectativa, tristeza e alegria, dependendo da natureza das histórias. Não sei para vocês, mas surpresa e repulsa me parecem emoções bem intensas.

Em um mundo em que o importante é emocionar, a verdade não brilha aos olhos. No frigir dos ovos, o storytelling dos super-heróis empreendedores de carne e osso é apenas uma história. E, como diria qualquer crítico literário e leitor assíduo, é nas entrelinhas, observando o que está implícito e omitido, que você entende de verdade o que está acontecendo.

O “problema” é que esse processo não é tão emocionante e, pior, leva tempo. Talvez você perca o próximo meme viral ou pegue a discussão sobre a polêmica da vez pela metade. É por aí que o like, o compartilhamento, o comentário saem automaticamente, sem preocupação alguma com a checagem de fatos, com a avaliação ou a análise crítica. 

O discurso do herói pode até ser autêntico, mas, se o intuito é ajudar a natureza, evitar mudanças climáticas, resgatar a indústria nacional, não seria interessante averiguar e questionar como isso acontece de forma mais ampla? O grande problema do storytelling como estratégia de marketing aplicável a qualquer tipo de comunicação é que as histórias perdem seus poderes de transformação cultural e social, já que a ênfase se limita ao comunicador e seus interesses.

 

Que mal faz uma historinha?

Não são poucos os estudos que indicam que apelar para valores e emoções íntimas e pessoais é, de fato, eficazes para chamar a atenção e encorajar algum tipo de ação. No entanto, com o tempo esse mecanismo contribui para tornar as pessoas mais egocêntricas e menos interessadas em objetivos sociais. 

Sabe os ataques e descréditos de instituições como a Justiça, a ciência, a academia e a imprensa? Tem a ver com isso também (e com o fato de sermos educados a separar paixão e razão). É que nem o conhecimento empírico se dá individualmente. Sua validação depende de um processo coletivo no qual é determinado um conjunto de procedimentos interligados para identificar erros, checar fatos e, assim, estabelecer o que é verdadeiro. Com o enfraquecimento desses pilares do conhecimento, a avaliação sobre a veracidade de qualquer informação se dá por um grupo de pessoas comentando as postagens uns dos outros nas redes sociais, baseados no que lhe parece mais conveniente e seguro.

Em condições normais de temperatura e pressão, o debate é desejado, benéfico até. Porém, como escreveu o jornalista e ativista Jonathan Rauch no livro The constitution of knowledge: a defense of truth, seria bem mais útil seguir alguns princípios dos estudos científicos: 1. Toda proposição pode estar errada, logo ninguém tem a palavra final; 2. Quem você é não determina a verdade do que você diz, a evidência sim – autoridade pessoal, aqui não; 3. Nenhuma ideia será eliminada só porque faz você se sentir inseguro.

É sobre abandonar a busca pelo nosso próprio dispositivo mágico que fará com que todos concordem conosco. Em vez disso, seria interessante tentar entender contexto, linguagem, conceito, implicação e cultura para construir um sistema de pensamento que apele aos valores humanos e a personalidades comuns na atual situação cultural.

Com certeza, isso renderia boas histórias, capazes de nos mover de forma confiável em direção ao futuro que queremos.