Ainda não inventaram uma máquina capaz de nos transportar para o futuro, mas já é possível ao menos imaginar como estaremos fisicamente daqui a alguns anos. O filtro Aged, do TikTok, surge como mais uma opção de ferramenta para explorar os vídeos na plataforma. Mas, para muita gente, a “brincadeira” virou um gatilho e acabou exaltando um sentimento ainda muito comum por grande parte dos seres humanos: o medo de envelhecer.
“Vivemos uma crença de que a juventude é riqueza.”
Mirian Goldenberg
Com recursos de inteligência artificial, que simula como a pessoa ficará com o avanço do tempo, ele reacendeu um etarismo nada disfarçado por parte de várias personalidades da cultura pop e nos fez perceber (ou lembrar) que o preconceito contra idosos e a velhice anda bem escancarado por aí.
“Que horror”, “não quero ficar assim” e “socorro, essas rugas!” são apenas alguns exemplos de comentários expostos abertamente pelas pessoas. A discriminação, além de assustadora, mostra o quanto ainda pensamos mal sobre o envelhecimento – e ainda diz muito sobre a invisibilidade dos mais velhos no Brasil.
“O Aged causa uma onda de reações negativas porque em nosso país, em nossa cultura, há um verdadeiro pânico de envelhecer. Vivemos uma crença de que a juventude é riqueza”, afirma a antropóloga Mirian Goldenberg, autora dos livros A invenção de uma bela velhice e A arte de gozar: amor, sexo e tesão na maturidade. “Esse filtro tem dois lados: para muitos, pode ser visto apenas como uma brincadeira. Para outros, é um reforço dos preconceitos e estigmas. As pessoas olham para a aparência modificada e tentam se proteger, como se aquilo fosse uma ameaça, dizendo: ‘Eu não vou ficar assim’. É um misto de ‘vou ser uma velha bacana’ com ‘olha aqui como estou com pânico de envelhecer’.”
Somado a isso, há uma importante questão: ao contrário do processo de envelhecimento, que acontece de forma lenta e chega com um acúmulo necessário de maturidade, o filtro Aged nos “transporta” repentinamente para uma imagem do futuro. “O choque de realidade, principalmente para as meninas mais novas, é enorme. Vivemos em um mundo virtual, onde os filtros mais valorizados são os que deixam a pele lisinha e sem nenhuma marca, adicionam uma máscara nos cílios, removem instantaneamente bolsas e olheiras e ainda dão uma coradinha na pele. Quando partimos para um que, ao contrário, mostra a pele com rugas, sem maquiagem ou efeito que disfarcem imperfeições, o gap fica gigante”, avalia Camila Faus, cocriadora do @she____t, uma plataforma de conteúdo voltada aos temas que circundam o envelhecimento.
Warning: etarismo
Muita gente não sabe, mas a discriminação contra idosos é crime no Brasil, um preconceito grave como outro qualquer. E vale lembrar que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, o etarismo é o conjunto de estereótipos, preconceitos e discriminações direcionados a pessoas com base na idade ou faixa etária.
“O etarismo existe há muito tempo, e é fruto de uma sociedade patriarcal. Mas só agora estamos falando nisso porque estamos vivendo mais. Quando se trata de mulheres, então, é ainda pior, uma vez que ele anda junto com o machismo e a ideia de que a mulher vem ao mundo para procriar e dar prazer ao outro. A partir desse pensamento, com a chegada da menopausa, ela deixa de existir”, explica Camila.
“Por muitos e muitos anos, fomos condicionados a entender que o jovem é bom e o velho é ruim.”
Consuelo Blocker
A influenciadora Consuelo Blocker lembra que a velhice chega como mais um elemento que foge do famoso padrão e, portanto, resulta em repulsa e exclusão. “Por muitos e muitos anos, fomos condicionados a entender que o jovem é bom e o velho é ruim. Não foi de um dia para o outro. O padrão de beleza, principalmente o da mulher, consiste em ser alta, magra, branca e jovem. O que sai disso não é visto como ideal.”
Diferentemente de outros tipos de preconceito que geram no mínimo alguma timidez ao serem cometidos em público, o etarismo segue como uma discriminação desavergonhada, em especial nas redes sociais – e voltamos às reações gerais ao filtro Aged.
“A verdade é que a internet só revela algo que está escancarado em nossa sociedade, no mercado de trabalho, nos relacionamentos, no prazer feminino. As pessoas usam o termo velho de forma pejorativa, e é justamente por diminuir o outro que isso é um preconceito”, diz Camila.
As consequências afetam diretamente a saúde mental: a Organização Mundial de Saúde estima em 6,3 milhões os casos de depressão atribuídos ao etarismo.
Uma questão de ponto de vista
Ao mesmo tempo que o filtro Aged pode se tornar um elemento desencadeador do preconceito, a ferramenta deveria ser mais uma aliada da autoaceitação. “A não ser que você tenha muito dinheiro e opte por investi-lo em cirurgias plásticas e em tratamentos de beleza, você vai ter rugas, sua pele vai ficar mais flácida e seu cabelo vai mudar. Quando eu uso o filtro da rede social, eu gosto do que eu vejo? Não. Mas a alternativa a isso é morrer. E isso não é uma opção para mim”, declara Camila Faus.
“Quero envelhecer com saúde e amarrando meu tênis sozinha aos 80.”
Camila Faus
O processo, porém, exige uma desconstrução diária de tudo o que aprendemos e vimos em outras gerações. É sobre ver beleza onde não fomos ensinados a ver. “Em 2017, parei de pintar o cabelo e foi simplesmente libertador. Eu pintava porque achava que os fios brancos me envelheciam. Até que me dei conta de que eu estava envelhecendo mesmo. Então, por que esconder esse fato de mim mesma? E mais: eu não amo minhas rugas, mas amo me sentir bem com elas”, conclui Camila.
A produtora de conteúdo entende, porém, que boa parte desse sentimento de empoderamento e aceitação veio com a maturidade. E daí o problema por trás do filtro do TikTok. “A Camila com 20 anos entraria em pânico com uma imagem dela com rugas e cabelo branco aos 50. Hoje em dia, não estou nem aí. Quero envelhecer com saúde e amarrando meu tênis sozinha aos 80.”
Pesquisadora do processo de envelhecimento há 30 anos, Mirian Goldenberg descobriu que normalmente uma mesma mulher costuma ter um mix de sentimentos ao envelhecer: o pânico, a sensação de liberdade e autonomia de pela primeira vez poder se sentir livre para ser ela mesma e a euforia de finalmente fazer tudo o que sempre quis. “Como existe a velhofobia, como costumo dizer, há consequências: depressão, angústia, tristeza e isolamento. Nossa única saída para combater o preconceito é formando uma revolução, que eu chamo de bela velhice. Temos que perder o medo do amor, do sexo, de expor o corpo de biquíni. Esse é o caminho!”
Por fim, Consuelo lembra a importância de enxergar as benesses de cada faixa etária. “Aos 60 anos, o joelho dói, mas o carro está pago, eu tenho estabilidade no trabalho, meus amigos têm conversas interessantíssimas. Aos 20 e 30, eram outras coisas divertidas que aconteciam, mas também outros anseios. Não é sobre aonde você chega. É sobre a jornada.”