Muito antes de a Negra Rosa existir – uma marca de beleza criada por mulheres negras para mulheres negras –, Rosângela Silva já falava sobre a importância da inclusão na indústria de cosméticos, uma das que mais impactam a autoestima feminina. Sempre ativa em fóruns de discussões sobre o tema, lá em 2010, ela começou a construir uma comunidade engajada em imaginar um futuro em que os produtos para a pele fossem produzidos para uma sociedade plural.
Veja bem, em 2010, ninguém falava sobre a importância disso e o seu impacto para o sucesso de um novo negócio. Hoje a prática faz parte da estratégia de grandes empresas do setor. “Quando a Negra Rosa nasceu, essas mulheres já entendiam quem eu era e, por isso, existia um voto de confiança muito forte. A identificação fez com que a gente crescesse pelo boca a boca, e o que se dizia era: ‘Agora existe uma marca pensada para a nossa pele’”, lembra Rosângela.
Criada em 2016, juntamente com a sócia, Ana Heller, a Negra Rosa trouxe em seus valores a potência do pertencimento – característica que está refletida em suas campanhas, sempre com modelos plurais, na equipe composta por uma maioria negra, e nos produtos, entre maquiagem, gel para cabelo e skincare.
Esses últimos, por sinal, entregam uma alta performance porque são 100 % desenvolvidos com base nas reais necessidades da comunidade negra – uma coisa rara no mercado nacional. “Nós realmente estamos olhando para essas mulheres e pensando em como trazer o melhor benefício com nossos produtos, porque, quando uma marca de beleza olha para as negras, ela reconhece e afirma essa beleza, que foi ignorada durante tanto tempo”, afirma.
“Quando uma marca de beleza olha para as negras, ela reconhece e afirma essa beleza, que foi ignorada durante tanto tempo.”
Rosângela Silva
Os produtos de skincare são a novidade mais recente. Lançados em junho deste ano, eles são a primeira linha a chegar às prateleiras depois da aquisição da Negra Rosa pela Farmax, uma indústria de cosméticos e produtos de higiene pessoal que está há 42 anos na ativa.
“Foi uma estratégia que veio para nos potencializar, sem perder dois valores que para mim são inegociáveis: representar mulheres reais e ter pessoas negras no processo de produção. Hoje atuo como curadora e fico muito próxima das equipes de marketing e de produto & desenvolvimento. Uma coisa legal é que consegui manter todas as funcionárias que já faziam parte do nosso time antes da Farmax. É uma forma de dar continuidade ao que vínhamos fazendo.”
Para a ELLE View, a fundadora conta a seguir como foi o início da Negra Rosa, os desafios no caminho até o reconhecimento nacional e os planos para o futuro ao lado da Farmax.
Qual foi o seu primeiro contato com a beleza?
Foi com a minha mãe, com certeza. Ela sempre gostou de se cuidar e durante um tempo foi cabeleireira. Ali, aprendi a gostar de cuidar do cabelo das pessoas, quando ainda era criança. Sem nem perceber, naquela época, iniciei essa conexão com a beleza. A minha mãe também sempre gostou de me arrumar. Sou a filha caçula, então o meu cabelo sempre estava arrumadinho, a roupinha era preparada para as festas, no Carnaval tinha fantasia…
O que beleza realmente significa para você?
Vou entrar um pouquinho naquele clichê, né? A beleza vai muito além do senso estético, mas carrega muito do senso estético. Vou falar aqui em relação à nossa beleza física e pessoal, e não a beleza de uma paisagem de um local, de uma vista do pôr do sol… Tudo isso é beleza também. Mas, focando muito aqui nessa beleza individual, o que ela significa para mim? Acho que é sobre você se olhar, se sentir bem na própria pele, estando montada ou não, acordar de manhã com o rosto inchado, olhar no espelho, sentir essa beleza, entender essa beleza. Carrego o que me faz bem, então, para mim, a beleza é muito sobre esse meu olhar cuidadoso sobre mim mesma. Tanto que nem eu nem a Negra Rosa “obrigamos” ninguém a usar maquiagem ou outro produto, entendemos que tem gente que pode se sentir melhor sem usá-los e está tudo bem. Incentivamos esse olhar cuidadoso, de se entender como alguém belo, de ver que o cabelo crespo, a pele negra, os traços fora do “padrão” carregam uma beleza profunda.
“Incentivamos esse olhar cuidadoso, de se entender como alguém belo, de ver que o cabelo crespo, a pele negra, os traços fora do “padrão” carregam uma beleza profunda.”
O que você fazia antes de criar a Negra Rosa como marca?
Fui revendedora de cosméticos e trabalhei no setor administrativo de outra empresa. Isso é um pouco da minha trajetória antes de criar a Negra Rosa com a minha amiga Ana. A Negra Rosa nasceu antes mesmo da marca em si. A partir do momento em que a internet se tornou mais popular, eu tive acesso a fóruns de maquiagens nos quais conheci a Ana e também encontrei muitas outras mulheres negras que tinham os mesmos problemas que eu em relação a produtos de beleza. A criação do meu canal no YouTube e do meu blog veio em 2010 para que mais mulheres negras pudessem achar informação de qualidade sobre maquiagem e produtos para cabelo natural – e tudo isso sendo dito e explicado por outra mulher negra. Toda a comunidade que criei e as trocas que ela possibilitou foram muito importantes para a minha bagagem até a criação da Negra Rosa como uma empresa.
Como você começou a Negra Rosa?
Depois de uma conversa com dois amigos, a Ana e o Álvaro, sobre o que eu gostaria de criar. A princípio era só um batom com o meu nome, em uma época em que muitas marcas faziam batons com blogueiras, no final de 2015. Daí, em 2016, a Ana me convidou e deu a oportunidade de juntas criarmos uma marca para mim e para outras mulheres negras. A Negra Rosa nasceu para isto: ser uma marca de cosméticos para pessoas negras e realmente incluir todas elas no mercado de beleza.
Nesse processo de criação você tinha alguma referência?
Minhas referências foram as mulheres que estavam à minha volta, o que elas consumiam e o que essas mulheres negras queriam, desejavam, num produto. Foi muito esse olhar. Não tive uma figura assim, de fora, que tenha sido uma referência para mim, não. Acho que, com toda a minha experiência como blogueira e youtuber testando produtos, fui criando as minhas próprias referências de como gostaria que uma marca de cosméticos para pessoas negras fosse. A partir desse meu olhar criterioso, construí a marca. Segui ali como eu gostaria que a comunicação fosse e quais produtos traria para a Negra Rosa. Desde o início, a marca se desenvolveu ouvindo mulheres negras, suas dores, suas necessidades e seus desejos. Fico muito feliz que isso é algo que mantenho até hoje.
“Desde o início, a marca se desenvolveu ouvindo mulheres negras, suas dores, suas necessidades e seus desejos.”
Qual foi o primeiro produto que você pensou?
Foi o batom. Nós lançamos três tons de batom bem pigmentados, com as cores que eu queria que todas as mulheres conhecessem. Um deles foi o Kinah, que era um marrom que poderia ser nude para as mulheres negras de pele retinta. O outro é o vermelho, que intitulamos de Badu, e tem ainda o Makena, que era um batom meio cinza azulado, porque sempre gostei de batons com tons diferentes. Então, queria um assim também na Negra Rosa.
O que ninguém conta sobre os desafios de ter uma marca?
Se você vai gerir toda a sua marca, como eu e a minha sócia fazíamos com a nossa equipe, os desafios são muitos. Tem que pensar em cada detalhe do processo e tem que lembrar que você é a cabeça de todos eles – ou seja, tem dias em que você é contadora, em outros você está no laboratório, em outros você está lidando com uma embalagem que saiu de linha do fornecedor e precisa ser substituída. Precisa estar muito preparada para se desdobrar em mil profissionais diferentes.
Qual a importância de ter uma comunidade e como você criou a sua?
É gigantesca porque foi o que fez a marca crescer durante esses sete anos. A comunidade foi criada por meio da identificação dessas mulheres e da afinidade que elas criaram comigo, principalmente por ver ali uma mulher negra com mais de 30 anos conversando sobre beleza de uma forma bem simples, sem frescura e de um jeito verdadeiro. Quando a marca nasceu, elas já entendiam quem era a Rosângela e, por isso, existia um voto de confiança bem forte, que só foi aumentando ao longo dos anos. A Negra Rosa foi crescendo pelo boca a boca das clientes que compravam os produtos, gostavam e falavam para outras mulheres que existia uma marca para a pele negra. Quando eu falo de identificação, lembro do quanto elas gostavam de achar um tom de base para a pele delas.
Quais são os produtos mais pedidos da Negra Rosa?
As bases são um sucesso absoluto, e os batons também vendem muito bem. Agora falando de cabelo, o gel ativador é o produto que todo mundo ama e o merengue se tornou também um grande queridinho da comunidade, após lançarmos no ano passado. Nos produtos de skincare, considerando os primeiros meses desde o lançamento em junho, já vemos uma aceleração do nosso sabonete esfoliante. Pensando nos pedidos de produtos que ainda não temos, existe uma demanda para criarmos uma linha completa capilar com xampu e condicionador, além de uma linha infantil.
O que muda na marca depois da aquisição pela Farmax?
O que muda é que agora estou como curadora, mas continuo fazendo a mesma coisa que fazia antes da aquisição. A diferença maior é que estou muito mais próxima do processo de desenvolvimento de produtos para pensar em novidades, com uma equipe imensa lidando com todas as outras questões mais burocráticas da empresa, algo que antes era a minha sócia quem cuidava. Vejo essa união como uma mudança muito positiva, pois estamos fazendo com que a marca cresça e revele realmente o potencial que tem. Queremos chegar a mais lugares do Brasil e com ainda mais produtos para atender às mulheres negras de forma completa.
“Queremos chegar a mais lugares do Brasil e com ainda mais produtos para atender às mulheres negras de forma completa.”
O que foi inegociável para você nessa parceria com a Farmax?
A gente fez questão de não perder a identidade, então, com certeza, foi em relação aos valores que a Negra Rosa já tinha de representar mulheres reais e ter pessoas negras nos processos. Foram dois pontos muito importantes para mim. A Negra Rosa entrou para Farmax para ser potencializada e, desde os primeiros momentos das negociações, ficou bem claro, para ambos os lados, que esse era o propósito: manter a essência e a verdade da marca e amplificá-la. No nosso rebranding e lançamento da primeira linha pós-aquisição, já vimos os resultados disso. Mantivemos a nossa essência ao garantir a representatividade majoritária de pessoas negras no processo criativo e de produção da nova linha. Outro símbolo da preservação dessa verdade foi a realização da campanha de lançamento da linha de skincare, haircare e óleos experts para tratamentos capilares, faciais e corporais com um conceito de beleza real e plural. Em vez de modelos renomadas, formamos um casting de mulheres que participaram da história da Negra Rosa e são consumidoras dos produtos.
Como foi o processo de produzir com a Farmax a linha de skincare?
Quando comecei as conversas com a Farmax, a linha já estava em um processo de pesquisa e desenvolvimento. Foi feito um estudo com mulheres negras para entender o que elas queriam quando o assunto são os cuidados com a pele e quais eram as principais necessidades. Quando cheguei, portanto, consumi todo esse conteúdo para entender sobre o que estava sendo feito e aí, sim, me apropriar da linha, trabalhar no que precisava para finalizar. Eu diria que foram dois processos: um antes e outro depois. Foi uma experiência única ver o que essas mulheres queriam e, posteriormente, ver a reação delas com as amostras dos produtos. Vem a história da identificação de novo, porque elas também se sentiram felizes por terem nas mãos algo que foi pensado para elas. A Vanessa Costa, analista de pesquisa de desenvolvimento da Farmax, estudou muito as formulações pensando em como a gente poderia entregar da melhor forma possível essa linha com produtos de alta performance e que, ao mesmo tempo, fossem suaves para a pele negra.
Qual é a sensação de ver o seu propósito furando a sua bolha e chegando a mais pessoas?
Nossa, é uma sensação incrível e, às vezes, até meio inacreditável também, sabe? Mas é real! É muito bom ver as pessoas dividindo com a gente que viram a marca na farmácia. Para mim, é uma grande realização. Era algo que a gente sempre quis que acontecesse e antes era muito difícil e complexo. Ver essa receptividade das pessoas e perceber que elas estão felizes, junto comigo, não tem preço. É muito potente estar chegando a locais cada vez mais distantes e saber que as pessoas podem ter acesso. Até me emociono várias vezes quando paro e penso: “Olha aonde nós chegamos”.
O que você ainda tem vontade de realizar?
A Negra Rosa tem muita coisa bacana para fazer e estamos estruturando a marca para isso. Vamos trazer mais categorias, criar projetos e várias ações. Para nós, é superimportante que, a partir dos próximos anos, tenhamos o foco também para além dos produtos. Temos aí uma longa caminhada, mas, muito bonita, sendo escrita com pessoas engajadas e motivadas para realmente tirar do papel e fazer tudo acontecer.