Elsa Schiaparelli adorava chocar. A estilista italiana transformou saltos altos em chapéus, adornou vestidos com lagostas e moldou joias em formato de insetos. Para cada design comum, havia outro absurdo. Quando lançou uma fragrância, em 1937, a chamou de Shocking. A palavra escolhida continha a essência do movimento surrealista, investigado por ela. A sua cor de assinatura? Rosa-choque. O título de sua autobiografia lançada em 1954? Vida chocante.
Ao longo de toda a história da moda, o choque desempenhou uma função importante na construção de narrativas. Pense nos espetáculos montados por Thierry Mugler, Jean Paul Gaultier e Alexander McQueen. Tais estilistas provocavam reações. Ao olhar para triunfos, tragédias e excentricidades, eles não jogavam pelo caminho seguro. Garantidas ou não, as suas visões 一 tão desconfortáveis quanto retumbantes 一 criavam imagens que, décadas depois, permanecem vivas na memória.
Corta para agora. Em janeiro deste ano, no inverno 2023 da JW Anderson, havia modelos segurando travesseiros com tomates pintados pelos seus corpos. Dois meses depois, Mia Goth, a estrela do filme Pearl (2022), cruzou a passarela da Miu Miu. Em maio, a Versace se juntou a Dua Lipa para uma colaboração apresentada à beira-mar em Cannes. Em seguida, Balenciaga e Valentino elevaram o jeans à altura da alta-costura. As provocações vistas nas passarelas recentes, dificilmente, se comparam às experiências chocantes de décadas atrás.
Muito mudou, porém, quando se trata da repercussão. Argumenta-se que, atualmente, mesmo com provocações menores, o frenesi causado é maior devido às mídias sociais. É inegável: com smartphones em mãos e imersos na dinâmica imediata das redes, há uma lente para toda e qualquer coisa ser incansavelmente examinada. A relação direta entre a marca e o consumidor – não apenas o de roupas, mas também o de imagens – faz com que a indignação ou a admiração cheguem bem mais rápido.
O sucesso prometido pela viralização parece a única chance de se fazer notar. Em meio a um período de atenção reduzida e excesso de conteúdos, a moda tenta prender a audiência das maneiras mais competitivas para desencadear reações ou gerar lembranças um pouco mais duradouras. É como um bait (isca) para falar com os que não estão ouvindo. Ou seja, diferentemente do passado, em que o choque possuía um tom disruptivo, agora ele foi transformado em moeda.
À medida que a eficácia da estratégia é provada, estilistas são pressionados a criar algo vazio de significado, baseado somente no barulho que será causado. Ao não mensurar as consequências, a solução, às vezes, se torna forçada e até desesperada. Trata-se de uma linha tênue, repleta de camadas capazes de confundir o espectador. Há quem acredite que o importante é continuar adivinhando. Isto é, tentar decifrar o que é uma sacada genial, o que é uma piada e o que são meras fachadas algorítmicas. Com bom senso e sinceridade, sempre haverá valor em emoções atípicas.
Abaixo, relembramos alguns dos momentos mais chocantes de todos os tempos.
De peito aberto
Jean Paul Gaultier é conhecido por muitas coisas: sua alfaiataria excepcional, seus sutiãs cônicos e sua abordagem apaixonada por causas humanas. Em setembro de 1992, o francês juntou todas elas, em Los Angeles, para um desfile filantrópico em prol da Fundação Americana de Pesquisa da Aids. Com um casting estrelado, o show foi encerrado por Madonna tirando o terno para revelar o seu busto nu dentro de uma armação. O estilista e a cantora haviam se conhecido cinco anos antes e, desde então, mantiveram uma relação simbiótica, que culminou em momentos de puro frenesi para a cultura pop.
Barrado no baile
“Prefiro que as pessoas saiam do meu desfile e vomitem. Prefiro reações extremas. Quero ataques cardíacos, ambulâncias.” Essa é uma das citações de Alexander McQueen narradas na biografia The Illustrated history of the fashion icon (2018). Ao longo de uma carreira de quase duas décadas, o britânico levou o choque a sério. Na temporada de verão 1998, a coleção seria chamada de Golden Shower. Porém, após um dos patrocinadores notar a conotação sexual, exigiu a alteração do nome. McQueen cedeu e mudou para Sem Título, mas isso não o impediu de enviar as modelos para a passarela debaixo de uma chuva sugestiva sob luzes amarelas.
Um pouco de droga, um pouco de salada
Em uma passarela tomada por pó branco, Andrew Groves apresentou a coleção Cocaine Nights, dando um fim escandaloso para a temporada de verão 1999, na semana de moda de Londres. Inspirado no sucesso de bilheterias A outra face (1997), teias de aranha foram torcidas em jaquetas, hematomas foram pintados no pescoço das modelos e cordas amarravam os vestidos nos corpos. A atenção, porém, foi elevada quando vestidos feitos de lâmina de barbear cruzaram a passarela. O então jovem estilista britânico refletia sobre substâncias ilícitas, mas também sobre a obsessão interminável por fama, dinheiro e poder.
Bons modos
Era a temporada de inverno 2011 quando Marc Jacobs, ainda na Louis Vuitton, imaginou um hotel antigo para investigar obsessões, escândalos e, sobretudo, fetiches. Tinham silhuetas esculpidas, pulsos algemados por elos de cristais e pernas quase sempre nuas. No momento em que Kate Moss surgiu, não havia dúvidas de quem era a estrela da noite. Após uma pausa das passarelas, a modelo atravessou o salão enquanto acendia um cigarro, em pleno Dia Mundial Sem Tabaco. Provocar e simultaneamente lançar produtos 一 nesse caso, bolsas de vários milhares de dólares 一 é uma tarefa para poucos.
Vestida de arte
Um vestido se torna uma obra, volta a ser só uma roupa e depois se transforma em arte outra vez. Essa foi a conversão observada no inverno 2015 de alta-costura de Viktor and Rolf. Para isso, as modelos atravessavam a passarela usando criações dramáticas, que pareciam ser feitas de tela, moldura e tinta. Antes de voltar aos bastidores, porém, cada uma parava na frente da dupla de estilistas que desconstruía as peças e as penduravam na parede. Ali, os designers complicavam o velho debate sobre se a moda pode ou não ser classificada como arte. Para eles, pode ter as duas funções.
Mulheres em dobro
Desde a exposição dos pênis de seus modelos até a troca do casting convencional por uma equipe inteira de dança, Rick Owens sempre soube como atrair os holofotes. Em seu verão 2016, a imagem por si só era perturbadora: mulheres seguravam outras por toda a passarela 一 ora carregadas de cabeça para baixo, ora amarradas como mochilas. A mensagem, porém, tinha uma finalidade. Naquela temporada, o estilista estadunidense refletia sobre como figuras femininas cuidam das pessoas ao seu redor, assumindo metaforicamente os pesos de outros. “Mulheres criando mulheres, mulheres se tornando mulheres e mulheres apoiando mulheres”, escreveu a marca, em nota.
Caminhando sobre a água
Imagine um breu, uma passarela inundada de água e um teto incendiado por projeções de fogo. O cenário projetado pela Balenciaga para o seu inverno 2020 era apocalíptico, mas a coleção surgia das memórias ortodoxas de Demna Gvasalia e da origem católica de Cristóbal, fundador da casa. “Eu ia à igreja me confessar todos os sábados. Lembro de ver os sacerdotes e pensar sobre a beleza de suas túnicas”, contou Demna em entrevista ao WWD. Isso explica as referências aos códigos da vestimenta religiosa. O seu pensamento, contudo, é centrado em tabus bíblicos, alcançando a imagem de modelos com lentes de contato demoníacas e rostos aumentados com prótese.
Deleite selvagem
Um leão protegia Irina Shayk, um lobo surgia no casaco de Naomi Campbell e um leopardo saltava do peito de Shalom Harlow. No verão 2023 de alta-costura, a Schiaparelli desencadeou uma série de controvérsias online com as cabeças falsas de taxidermia. Desde que assumiu a direção criativa da casa, Daniel Roseberry se dedica a reviver os códigos fantásticos de Elsa, mas até então os seus experimentos haviam atraído mais admiração do que choque. Ao referenciar o “Inferno” da Divina comédia, de Dante Alighieri, o estadunidense impressiona pelo artesanato das esculturas e pelos suntuosos vestidos que as recebiam 一 ao menos, a quem estivesse disposto a olhar para além da polêmica.