Alta-costura para o dia a dia? Balenciaga, Chanel, Dior e Valentino dizem sim

Nos desfiles de haute couture de inverno 2023, simplicidade é a palavra da vez. Vale até jeans e camisa branca.


A modelo Kaia Gerber com jeans e camisa branca no desfile de alta-costura de inverno 2023 da Valentino.
Valentino, inverno 2023, alta-costura. Foto: Getty Images



Os desfiles de alta-costura de inverno 2023 coincidiram com os protestos nacionais em decorrência da morte de Nahel Merzouk. No dia 27 de junho, o jovem de origem argelina e marroquina foi baleado por um policial durante uma blitz em Nanterre, no subúrbio parisiense. Ele tinha 17 anos. Se a haute couture por si só pode parecer um surto fantástico, imagina com um ônibus pegando fogo do lado de fora.

Às vésperas da semana de moda até rolaram discussões pontuais sobre a viabilidade (e necessidade) de seguir com o planejado. Tiveram alguns cancelamentos – a Celine desistiu de apresentar sua coleção masculina no domingo (02.07), Bvlgari e Balenciaga desmarcaram suas respectivas festas –, mas nada substancial. 

Modelo no desfile de inverno 2023 de alta-costura da Valentino com calça jeans.

Valentino, inverno 2023, alta-costura. Foto: Getty Images

Curiosamente, o principal assunto da temporada foi a casualidade (com notáveis exceções: Schiaparelli, Iris Van Herpen e Jean Paul Gaultier). Em outras palavras, roupas para o dia a dia, com aparência comum, tipo uma calça jeans, só que produzida manual e exclusivamente com técnicas centenárias e qualidade excepcional. Ah, e para serem usadas de preferência fora dos salões de festa. Para levar o cachorro passear, por exemplo.

 

Jeans couture real oficial (ou quase)

Na Valentino, o primeiro look do inverno 2023 de alta-costura não era nada couture. Pelo menos era o que parecia. Nos jardins do castelo de Chantilly, uns 50 km ao norte de Paris, a modelo Kaia Gerber abriu o desfile com sapatinhos brilhantes, com laço e tudo, jeans e camisa branca. 

Acontece que aquele jeans não é denim. É uma infinidade de paetês tingidos de 80 tonalidades diferentes de índigo e costurados um a um em uma base de gazar de seda. Tem o jeans de verdade também. Um só, mas tem. E não qualquer um. A calça com aplicações douradas do quinto look, usada com blusa branca e casaco de tricô azul, é feita de tecido upcycled de uma coleção rara da Levi ‘s de 1966.

Balenciaga, inverno 2023, alta-costura.

Balenciaga, inverno 2023, alta-costura. Foto: Divulgação

Balenciaga, inverno 2023, alta-costura.

Balenciaga, inverno 2023, alta-costura. Foto: Divulgação

Na Balenciaga, o fio de denim é usado numa trama que reproduz o xadrez Príncipe de Gales, normalmente feito de lã. Demna (que não usa mais o sobrenome Gvasalia) também trocou o tecido de fato por uma representação dele pintada à óleo (diz que levou dois meses e meio para ficar pronta). 

Jean Paul Gaultier, inverno 2023, alta-costura.

Jean Paul Gaultier, inverno 2023, alta-costura. Foto: Getty Images

Julien Dossena, diretor de criação da Paco Rabanne e o mais recente convidado a assinar uma coleção couture para Jean Paul Gaultier, é outro que lançou mão de bordados para reproduzir a aparência do jeans. Isso e estampas trompe l’oeil, aquelas que enganam o olhar com imitações – Jean Paul em si adorava elas. 

 

Valentino – simplicidade nada simples

Além dos jeans de mentira, boa parte das propostas de alta-costura da Valentino para o inverno 2023 é feita de um único pedaço de tecido, torcido e drapeado na cintura, preso com o mínimo de costuras possível. Com isso, a pele à mostra ganha um viés natural, como se por acaso. O resultado é uma coleção menos imponente ou ostensivamente reservada a poucas ocasiões e círculos sociais. Pode parecer fácil, mas é dificílimo.

Valentino, inverno 2023, alta-costura

Valentino, inverno 2023, alta-costura. Foto: Getty Images

É uma imagem um pouco diferente daquela grandiosa a qual nos acostumamos, como se as passarelas da haute couture fossem uma prévia do que veríamos, meses depois, em algum tapete vermelho ou editoriais de moda. Ainda tem isso, porém é menos importante e interessante até.

 

Fendi e suas joias

Na Fendi, o mood intimista da temporada passada ganha continuidade, embora menos literal. A apresentação também serviu para apresentar as primeiras peças de alta-joalheria da casa romana. Elas são assinadas por Delfina Delettrez, filha de Silvia Venturi e parte da terceira geração da família que dá nome à marca. E foi inspirado na natureza simples de pedras e metais preciosos que o diretor criativo Kim Jones elaborou a coleção.

Fendi, inverno 2023, alta-costura.

Fendi, inverno 2023, alta-costura. Foto: Getty Images

O foco está na fluidez. Destacam-se o trabalho de pregas, plissados e drapeados, agora em tecidos encorpados e acetinados. Existe um esforço de não só aplicar o que há de melhor em termos de artesanato como também de tecnologia, fazendo com que materiais rígidos, como o couro, fiquem tão maleáveis a ponto de caírem como seda.

O shape é marcado por uma espécie de espartilho, que lembra uma faixa grossa envelopando a cintura. É um visual semelhante às representações de deusas gregas, apenas mais atual, íntimo, cool e luxuoso.

 

Dior – que seja leve

Para o inverno 2023 de alta-costura da Dior, a diretora de criação Maria Grazia Chiuri olhou para as esculturas e a arquitetura greco-romana em busca de inspiração. O tema pode soar batido. E é mesmo. Ao mesmo tempo, é uma estética bastante oposta à feminilidade de Christian Dior.

Dior, inverno 2023, alta-costura.

Dior, inverno 2023, alta-costura. Foto: Getty Images

Na passarela, os looks são quase todos brancos ou off-white. Rolam uns beges aqui, uns marinhos ali, mas a cartela é predominante clara e neutra. As roupas, idem. Dá até uma paz observar aquela parada de roupas alongadas, fluidas, decoradas com sobreposições, transparências, texturas, drapeados e plissados. E tudo levíssimo. Até a alfaiataria, cada vez mais importante e requisitada na couture da Dior, surge sutil, com construções menos rígidas.

Dior, inverno 2023, alta-costura.

Dior, inverno 2023, alta-costura. Foto: Getty Images

Não é de hoje que Maria Grazia se dedica a suavizar e tirar o peso e constrições de clássicos da marca. Nesta temporada, o exercício evolui consideravelmente. Ainda que a apresentação seja longa demais, é de se admirar o foco da criadora e, principalmente, o desapego àquela ideia de vestidos de contos de fadas para ocasiões puramente fantasiosas (ou encenadas).

 

Chanel – couture a passeio

Desde que assumiu a direção criativa da Chanel, Virginie Viard vem puxando as apresentações da grife para o chão. Ou pelo menos para um nível mais próximo do que suas clientes entendem como real. Dessa vez, a estilista abriu mão das locações tradicionais dos desfiles da maison para colocar suas modelos caminhando às margens do Sena, com a torre Eiffel e um prédio industrial do outro lado do rio. 

Chanel, inverno 2023, alta-costura.

Chanel, inverno 2023, alta-costura. Foto: Getty Images

Como em coleções passadas, os saltos são raros, e os looks facilmente assimilados por uma ampla gama de consumidoras. Os acessórios, fora bolsas e joias, são cestas de palha com flores, sacolas de mercado e até um cachorro (no caso, da irmã da estilista). As roupas chegam em conjuntos de bouclé com camisas de seda, peças de alfaiataria misturadas com transparências, vestidos de comprimentos variados com camélias bordadas, terninhos desconstruídos… Enfim, um guarda-roupa completo.

Haters dirão que os desfiles da Dior e Chanel são monótonos, sem personalidade e até antigos. Que pena, chora mais. Hoje, Virginie Viard e Maria Grazia Chiuri são as diretoras criativas mais bem-sucedidas do mercado. É só olhar os resultados financeiros das marcas para as quais trabalham. Parte do sucesso tem a ver com a comunicação, que tem a ver com as apresentações. 

Chanel, inverno 2023, alta-costura.

Chanel, inverno 2023, alta-costura. Foto: Getty Images

Karl Lagerfeld e John Galliano foram/são gênios responsáveis por alguns dos espetáculos mais memoráveis da história da moda. E também por fixar esse métier na cultura pop. Outros tempos, né? Agora, nada daquilo seria possível. As vendas da Dior e da Chanel crescem exponencialmente devido à sensibilidade e entendimento de suas comandantes sobre o que faz sentido para mulheres – mulheres outras das, até então, representadas nas passarelas.

A impressão genérica dos desfiles explica-se por aí. Na couture mais ainda. Afinal, se aquelas roupas são feitas para uma única pessoa, faz sentido imprimir uma identidade nelas? Ou é melhor permitir que qualquer interessada se veja naquelas peças? 

 

Gostem ou não, a Balenciaga continua aí (e entregando tudo)

Demna acredita que não. Parece paradoxal, já que o estilista georgiano sempre demonstrou predileção por itens usuais do vestuário: jeans, camisetas, moletons, camisas, paletós etc. É sobre essas bases que ele constrói a 52ª coleção de alta-costura da Balenciaga, e a terceira sob sua direção criativa.

A abordagem não é diferente das outras marcas aqui citadas. Tem o link com o passado – essencial para agregar valor e enaltecer o legado da casa. O primeiro look é uma reprodução fiel de um vestido de veludo com pérolas de 1966, usado pela mesma modelo que o vestiu então, Danielle Slavik. E tem a conexão com o aqui e o agora. Vide os jeans e peles pintados a óleo, vide o foco em modelagens familiares, aquelas que todo mundo reconhece, se identifica. O blazer perfeito, a camisa na proporção do momento, o vestido de renda que se sustenta sozinho.

Balenciaga, inverno 2023, alta-costura.

Balenciaga, inverno 2023, alta-costura. Foto: Divulgação

Balenciaga, inverno 2023, alta-costura.

Balenciaga, inverno 2023, alta-costura. Foto: Divulgação

Tudo apresentado em modelos com personalidades e perfis distintos. Em rostos conhecidos (Amber Valletta, Eva Herzigova, Isabelle Huppert,  Ines de La Fressange, Renata Litvinova, Eliza Douglas) ou desconhecidos, cada look carregava um acessório imaterial capaz de mudar percepções e entendimentos da coisa toda.

À frente da Balenciaga, Demna se deu o desafio de reescrever as regras de alta-costura. Daí as peças com aparência comum, as modelos fora dos padrões, os tecidos jamais permitidos e a divulgação dos preços (uma blasfêmia na couture). Porém, sua principal contribuição com a modernização – ou atualização – desse mundinho fechado e apegado às tradições do passado é a demonstração eficaz de sua essência. Da importância e distinção de habilidades e cuidados técnicos a serviço da pura concepção de design.

 

Propaganda enganosa, aqui não

Não há de errado com as versões couture dos básicos de todo o dia. Só não pode se deixar levar por conversinhas marketeiras baratas. Com a inquietação social na França, muita gente (e algumas marcas) aproveitou o contexto para criar narrativas capengas sobre uma alta-costura mais aberta, democrática, comum e igualitária. Fiquem atentas, garotas.

Na real, essa tal simplicidade complexa de ultraluxo não tem nada a ver com sensibilidade ou consideração com uma outra realidade. É demanda mesmo. A alta-costura, junto com a joalheria, foi um dos poucos segmentos imunes aos baques da pandemia de Covid-19. A procura, aliás, cresceu e se diversificou. Na ausência de grandes eventos, o desejo por um guarda-roupa completo feito só para você acompanhou a alta na concentração de renda. 

Balenciaga, inverno 2023, alta-costura.

Balenciaga, inverno 2023, alta-costura. Foto: Divulgação

E aí é matemática, né? Gastar dinheiro para apresentar algo que dificilmente será vendido ou baixar o tom e mostrar para cliente sei lá quantas possibilidades de looks?

A alta-costura é sobre inspiração, sobre sonho. É verdade. É um espaço onde a criatividade pode fluir livremente e se materializar de maneira extraordinária graças ao suporte dos profissionais e ateliês mais bem qualificados. É também e, acima de tudo, um mercado. Um mercado pequeno, composto de uns poucos milhares daqueles 0.001% mais ricos, que movimenta milhões direta e indiretamente. Não se discute seu valor e importância, muitas transformações partiram e partem dali. Mas é importante enxergar as coisas como elas são. 

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