Carta da editora

Brilho eterno de uma mente com lembranças.

Carta da Editora Avatar Renata

 

Em um país tido como novo – “descoberto” no século 16 –, o futuro parece ser sempre o tempo regente. Brasil, o país do futuro. Acontece que a história, as histórias, acontece aqui muito antes de as caravelas aportarem. Acontece também que qualquer futuro é costurado por presentes, que rapidamente viram passado. E, quando esquecemos deliberadamente (ou não) o que veio antes, nenhuma lição é aprendida. Como se o país e cada um de nós vivêssemos em uma eterna adolescência, com a vida boa, lá na frente, garantida. 

Nesta edição da ELLE View, puxamos os fios da memória para tentar entender fenômenos de agora. Para começar, a onda de remakes que tomou conta da televisão brasileira – Gabriela Medeiros, nossa capa está no ar na versão atualizada de Renascer, novela originalmente apresentada em 1993, como conta a repórter Mariane Morisawa, em “TV Nostalgia”. 

E, apesar de ter apenas 22 anos, a Gabriela de hoje, como todos nós, é feita das que vieram antes. Da criança que foi um dia. “Eu dizia ao meu pai que era uma borboleta e uma hora teria asas para voar. Dizia que era menina, mas ele não entendia. Eu tinha um jeito delicado e as pessoas atrelavam isso a outras coisas. Tentaram me corrigir bastante”, conta ela, que transicionou aos 18 anos, em entrevista ao editor Gabriel Monteiro. 

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Impossibilitada de fazer balé na infância, Gabriela ganha editorial dedicado ao tema nesta ELLE View Thais Vandanezi

Sim, o passado, às vezes, é fardo, do tipo que gostaríamos de passar pra frente – “A primeira lembrança que pôs à venda foi a do cheiro de Marcelo”, escreve Roberta D’Albuquerque, psicanalista e colunista da ELLE, no divertido conto “A memória é um bicho do mar que morreu afogado”. “Até hoje, não podia cruzar um patchuli que arrepiava o corpo inteiro (…). Marcou na categoria Rapazes/beleza/perfume, R$ 399,99. Pagou levou.”

Mas ele também é possibilidade de reconstrução. Olhar para trás para fazer diferente, a exemplo do que propõe a atriz, cantora e escritora Elisa Lucinda, em uma colaboração especial para esta ELLE View. “Sabemos como estão distorcidas as lições que nossos alunos recebem sobre a nossa própria história. Se tivessem chegado tais conhecimentos dos primeiros habitantes da nossa terra, os primeiros estrangeiros, que foram os negros, teríamos outro mundo. Talvez nem falássemos de ecologia. Não seria necessário.”

A propósito: corra para a seção Raio-x e leia Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, um clássico contemporâneo que foi tema do samba-enredo da Portela neste ano, e narra o papel das mulheres na luta contra a escravidão, no século 19.

Mario de Andrade Sao Paulo Brasil 1893—1945 Aposta de ridiculo em Tefe Bet of Ridiculous in Tefe 12.6.1927 June 12 1927 Impressao digital sobre papel Digital print on paper 61 × 37 cm IEB USP

Mário de Andrade Divulgação

Abrindo o armário do ontem, Mário de Andrade, um dos maiores intelectuais feitos no Brasil – pai da poesia moderna e do herói nacional, Macunaíma –, ganha exposição no Masp, em que seu lado queer é resgatado. “A ideia foi recolher traços e vestígios possíveis de uma orientação sexual”, explica a curadora Regina Teixeira de Barros, lembrando que não apenas a sexualidade, mas também a negritude de Mário de Andrade foi amplamente ocultada durante quase um século.

Na moda, o passado tenta trazer notícias do amanhã. Uma das figuras mais importantes do business, Miuccia Prada, é expert no retrovisor voltado para a frente. É em sua mistura de décadas passadas e respeito pelo que veio antes que surge o novo. Ao enfatizar a importância emocional dos registros e lembranças pessoais e coletivos, a estilista oferece uma resposta – ou pelo menos uma alternativa – a uma moda comoditizada, homogênea e, sobretudo, a uma forma de consumir, se vestir, se expressar e viver menos automatizada, mais autência e inteligente”, conclui o diretor de reportagem moda, Luigi Torre, em “Só quem viveu sabe”.  E ela não está sozinha.

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Moschino, inverno 2024 Divulgação


O clima nostalgia pauta também alguns dos acessórios-chave da estação. De bichinhos de pelúcia (Simone Rocha) a chapéu de barquinho de papel (Moschino), os estilistas buscam referências na própria infância para criar peças de adulto – o passado presente composto das passarelas ganha destaque no report de acessórios do inverno 2024, com a curadoria da editora de consumo, Chantal Sordi. Dá, inclusive, para baixar o PDF e ler quando você estiver offline. 

Um beijo e até o mês que vem, quando teremos mais histórias para contar e guardar na memória.

RP