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Lembra do metaverso?

No auge da sua popularidade, o metaverso foi visto como a inescapável evolução da internet: um mundo virtual abrangente, imersivo e interativo onde a relação entre avatares digitais representaria a nova era da conectividade. Contudo, apesar dos bilhões investidos e do entusiasmo inicial, parece que o metaverso esbarrou em sua própria ambição, revelando uma incongruência entre a visão futurista vendida pelas empresas e a realidade palpável dos usuários. 

Vale ressaltar que, desde que trocou o nome da empresa de Facebook para Meta, em 2021, o próprio Zuckerberg mudou bastante seu discurso sobre construir um universo totalmente imersivo para um que também leve em consideração o mundo físico. Junto a isso, demitiu 11 mil funcionários, em 2022, e passou a direcionar mais recursos ao avanço de sua engine de IA.

Não quero cravar aqui que essa ideia de metaverso (e aqui estou usando a definição do jornalista de tecnologia especializado no assunto Alexander Lee, de que o metaverso consiste em avatares ou hologramas interagindo entre si dentro de simulações de experiências do mundo físico) não voltará a ganhar força eventualmente. Na verdade, me parece inevitável que alguma versão dele, mesmo que sem o nome, se desenvolva como uma evolução do que temos hoje — afinal, se forçarmos um pouco, dá para dizer que já vivemos boa parte do nosso tempo como versões virtuais de nós mesmos nas redes sociais: nossas fotos supereditadas são avatares conversando com outros avatares usando códigos sociais específicos de cada rede, não?

Deixando as previsões de lado, o que quero fazer na coluna deste mês é tentar traçar os motivos pelos quais vejo que a poeira baixou tanto nos últimos meses e ilustrar por que acredito que as investidas das marcas no metaverso até agora, especialmente as de moda, serão mais lembradas como um delírio coletivo do que como um experimento notável.

Vamos a eles:

1. O problema de fazer algo por FOMO

Os últimos dois anos ficaram marcados na imprensa especializada pela enxurrada de manchetes sobre grifes “embarcando no metaverso” e produzindo NFTs — e mesmo algumas delas tendo apenas criado variantes de seus produtos para o Roblox, a percepção de que algo maior estava ocorrendo acabou por conferir a essas marcas certo valor pioneirístico.

Apesar de algumas delas terem se convencido de que estavam comprometidas com a inovação, acredito que as ações apresentadas no metaverso foram muito mais motivadas por FOMO (ou para se posicionar como as desbravadoras do novo mundo) do que pela vontade de desenvolver esse espaço na internet ao lado dos entusiastas. E essa questão ficou bem clara no que possivelmente seja o evento de moda mais comentado quando se fala no assunto, a Metaverse Fashion Week, em Decentraland, uma das mais conhecidas plataformas de realidade virtual baseada em blockchain.

Olhando o que aconteceu na segunda edição, no fim de março do ano passado, me vem à cabeça a hipótese de que os principais executivos das marcas participantes nunca colocaram seus pés virtuais nessa plataforma (ou em nenhuma outra). Com a participação de grandes nomes, como Adidas, Balenciaga, DKNY, Tommy Hilfiger e Coach, e cobertura considerável de veículos de moda e tecnologia, os reviews dos participantes revelaram frustração, confusão e desânimo. Na época, o jornalista Jay Peters, do The Verge, escreveu:  “A Metaverse Fashion Week é o mais recente exemplo de um espaço digital desajeitado, que parece existir apenas para as empresas que o criam, e não para os usuários que realmente o visitam”.

As marcas expuseram suas roupas e seus acessórios, mas não ficou claro por que estavam fazendo isso. Não houve o fator deslumbramento, já que quase todas as peças mostradas poderiam ser feitas de forma mais emocionante no mundo físico. As “experiências imersivas” aparentavam estar inacabadas (e provavelmente estavam porque o que mais vemos são empresas se gabando de construir experiências digitais em “tempo recorde”). E a possibilidade de adquirir um item não fazia sequer sentido uma vez que eu não tenho um avatar ativo e não estou envolvida com Decentraland. Para que ele me serviria? 

Sem gerar alarde ou mostrar detalhes dos resultados da execução, a impressão que fica é a de que as marcas não fazem questão de que seus espaços no metaverso sejam visitados — na verdade, é até melhor que ninguém vá — e se satisfazem em dizer que propuseram uma aventura em territórios inexplorados.

No fim, acho que a tão repetida frase “tal marca está entrando no metaverso” nunca fez muito sentido como notícia. Na maior parte do tempo, o que aconteceu foram campanhas publicitárias pontuais e temporárias promovidas por agências que compraram terrenos e passaram a oferecer ativações neles como uma forma de monetizar algo que elas possuíam.

Hoje, com a debandada de nomes maiores, que sentiram ter esgotado as possibilidades desse momento no metaverso, tais agências têm convencido marcas menores a gastar algum dinheiro lá, muitas vezes usando como endosso artigos de publicações confiáveis que vêm descrevendo o metaverso como um futuro que poderá valer trilhões de dólares. Esse esforço de convencimento, que ronda tudo o que envolve o tema, é o que me leva ao próximo tópico: um rápido mergulho em Decentraland.

2. Um lugar em que tudo (e nada) é possível

Exceto por algumas ocasiões de trabalho em que estive em salas não abertas ao público, preciso ser sincera e me colocar ao lado dos executivos que critiquei acima e assumir que, até pouco tempo atrás, não havia realmente experimentado o metaverso. Entretanto, editei matérias, escrevi notas sobre lançamentos de marcas e ouvi por meses com desconfiança e curiosidade as novidades do setor.

Mas isso mudou no mês passado. Às 17h20 de uma quinta-feira, digitei Decentraland no meu navegador, pronta para me abrir para o novo. O que vivi foi um cenário meio familiar, já que tenho milhares de horas jogadas de The Sims no currículo, mas com um visual cyberpunk e meio vazio, em que meu avatar correu de um lado para o outro sem nunca encontrar algo que parecesse valer mais de cinco minutos do seu/meu tempo.

Vi exposições de quadros tão ruins que nem merecem que eu abra um debate sobre o que é bom ou ruim (e obviamente eles estavam sendo vendidos como NFTs), esbarrei em muitos links para o Instagram e o Twitter que me levaram para fora do metaverso (o que é estranho por quebrar toda a ideia da imersão), encontrei diversas placas de “vende-se” em casas e terrenos, como se estivesse em um subúrbio estadunidense durante a crise de 2008, experimentei dois joguinhos curiosos, que senti que fizeram bastante com pouco, mas ainda assim assemelhavam-se a algo que eu conseguiria criar em uma aula de informática da escola, caí em buracos que travaram minha tela e tive medo de tocar em qualquer coisa, achando que poderia sair de lá devendo milhões em criptomoedas porque, o mundo, apesar de vazio, parecia o tempo todo estar tentando me vender algo.

Uma sensação estranha porque, como você ainda não teve tempo ou recursos para se envolver com o ambiente, tampouco tem de onde tirar o desejo para justificar qualquer compra. Em resumo: é inevitável passear por Decentraland e não se lembrar daquelas gravações em que um documentarista chamado Dan Bell visita shoppings abandonados nos Estados Unidos.

Em seu vídeo “The future is a dead mall”, o ensaísta Dan Olson compartilha o mesmo sentimento e solta uma definição sobre Decentraland que pode se estender à maioria das incursões no metaverso (exceto apps como Roblox, que de fato existem como produtos bem acabados): “Já que eles são o futuro, o produto de hoje é basicamente irrelevante. Eles podem para sempre viver de ser um protótipo, apenas um indicativo do que o futuro pode ser”. E isso explica por que diversos projetos empolgantes que lembro de ter visto ou noticiado há nem tanto tempo, coisa de um ou dois anos atrás, sem cerimônia sumiram do mapa.

Decentraland ganhou fama por possuir terrenos à venda por preços altíssimos, estimular a compra e venda de NFTs, ser palco de casamentos e ter um valuation que ultrapassa a casa do bilhão. Em um momento em que a Meta dizia que o metaverso era o futuro e jogos como Roblox e Fortnite se gabavam de seus números astronômicos entre crianças, um lugar que tinha como premissa ser descentralizado e ainda trazia similaridades com o mundo dos adultos daqui (acho que união romântica em igrejas, especulação imobiliária, “espaço público” à venda e entusiastas de criptomoedas é mesmo irresistível para quem passou dos 20) era perfeito para as marcas.

No fim das contas, fiquei com a impressão de que Decentraland se concentrou excessivamente na obtenção de experiências isoladas de grandes empresas para demonstrar sua relevância (enquanto essas companhias também buscavam qualquer novidade online para se provar relevantes) e acabou deixando o coração do negócio de lado: a construção de um ambiente em que as pessoas tivessem motivos para passar o tempo. O desfecho de Jay Peters, em seu texto “Metaverse Fashion Week had big brands but few people”, arremata: “Os espaços bem-sucedidos do metaverso normalmente têm algo para as pessoas fazerem com seus amigos. Roblox e Fortnite são populares para jogos e até o Horizon Worlds possui espaços bem desenvolvidos para setores como a comédia. Mas compras em silêncio, como fui estimulado a fazer durante a Metaverse Fashion Week? Vou resumir e dizer que eu provavelmente não voltarei no ano que vem”.

Devo adiantar que ele realmente não voltará, uma vez que, de acordo com a head do evento Giovanna Casimiro, ele não mais existirá nesse formato, devendo ganhar uma nova identidade, nome e tecnologia. “Está claro que a adoção em massa e a facilidade de uso ainda apresentam obstáculos significativos”, declarou ela no report Digital Evolution in Luxury in Fashion, da empresa Exclusible, em que destaca que experiências digitais sem telas, como dispositivos móveis e vestíveis (wearables), estão entre as próximas tendências do setor na sua visão.

3. Uma coisa não acontece só porque se fala muito dela

Pesquisar sobre metaverso em 2024 é encontrar pessoas rindo de sua morte e outras tentando te convencer de que ele está firme e forte (o que é sempre um sinal de alerta). Como consequência, o panorama, que já era nebuloso para o público em geral, torna-se ainda mais complexo.

Devo destacar, no entanto, que existem sim experiências interessantes acontecendo, como músicos criando carreiras e encontrando seu público em algumas plataformas, pessoas que normalmente teriam receio de frequentar uma academia conseguindo se exercitar em casa graças ao senso de comunidade e à possibilidade de usar avatares em lugares como o VRChat, empresas utilizando a tecnologia para testar modelos e realizar onboardings de novos funcionários remotamente, entre outros. No geral, a maioria dos produtos disponíveis hoje é muito diferente do que o que parece existir na cabeça de seus apoiadores.

Acho que é por isso que as marcas que buscam surfar na onda da hiperconectividade gamificada agora estão preferindo jogar no modo safe, arquivando as “experiências vanguardistas” como museu e investindo mais naquilo que está consolidado: peças de vestuário para Fortnite, Zepeto (a maior rede de realidade virtual da Ásia) e Roblox.

Faz sentido, uma vez que essas empresas têm ecossistemas fortes construídos com base em usuários querendo deixar seus personagens mais atraentes ou mesmo realistas com novos itens. Roblox, inclusive, contratou uma ex-executiva do Buzzfeed recentemente para avançar a participação de marcas dentro da infraestrutura de forma orgânica e envolvente para os seus mais de 70 milhões de usuários ativos por dia — o que não quer dizer que fazer marketing nesse nível de manipulação para crianças seja algo louvável, mas explica por que os budgets de metaverso migraram bastante para lá. E isso pode ser visto na cobertura da imprensa atual, que toda vez que fala de alguma marca “apostando no metaverso” está se referindo a um desses sistemas de jogos cuja base prioritária de usuários são as crianças.

Mesmo com as limitações de sua tecnologia, sinto que a experiência de Decentraland poderia ter sido diferente se houvesse sido adotada uma abordagem mais descontraída e autêntica, quase como um entusiasmo camp. No entanto, desde o início, o projeto pareceu excessivamente corporativo, se colocando na mesma narrativa de Mark Zuckerberg, que busca convencer as marcas e os acionistas que algo está prestes a acontecer e ele vai liderar o caminho das pedras. 

Na internet, as próximas fases das coisas geralmente se estabelecem antes de ganharem muita repercussão ou até mesmo uma definição – ninguém precisou me convencer a entrar em fóruns, abrir um Fotolog ou uma conta no Twitter na época em que isso simplesmente parecia natural (até porque esses produtos, apesar de mais simples, eram bem finalizados em sua época). Foram indivíduos engajados que me atraíram, e não a simples existência de grandes empresas nessas plataformas (é curioso que a Meta celebre que o Wendy’s esteja fazendo uma ação no Horizon Worlds como se isso validasse um caminho certo).

Minha perspectiva é que, quando e se o metaverso finalmente se tornar uma realidade tangível e abrangente, muitos de nós não perceberão a transição. Idealmente, ele ainda oferecerá oportunidades para explorarmos novas configurações de mundo e relações sociais, mas é incerto se isso tem como se concretizar — a chance de isso acontecer, porém, não passará por um FOMO irracional e desinformado de marcas (que bem poderiam estar usando essa energia para melhorar suas práticas trabalhistas no mundo físico, em vez de ficar se exibindo no digital).