Mário de Andrade foi muitas coisas: poeta, crítico cultural, historiador, jornalista, fotógrafo, gestor público e autor de dois livros fundamentais na história do nosso país, Macunaíma (1928) e Pauliceia desvairada (1922), a pedra inaugural da poesia moderna brasileira. Isso tudo a gente descobre dando um simples Google ou, quem sabe, indo até a biblioteca que leva seu nome, em São Paulo. Mas o Mário da porta de casa para dentro, o indivíduo antes do mito, não era tão fácil de descobrir. Até agora.
Em cartaz no Museu de Arte de São Paulo (Masp) de 22 de março a 9 de junho, a mostra Duas vidas coloca em evidência esse outro lado do espelho do intelectual brasileiro. Ancorada na dicotomia entre a figura pública e a privada, a exposição desafia o ocultamento histórico conduzido pelo próprio Mário em vida, por seus herdeiros e historiadores, de uma possível “sensibilidade queer”.
A expressão entre aspas é utilizada por Regina Teixeira de Barros, curadora coordenadora da exposição (sob assistência curatorial de Daniela Rodrigues), para evocar qualificações empregadas por ele em correspondências e documentos privados, onde usava termos como “vulcão controlado”, “pansexual casto”, “monstro libidinoso” e portador de uma “feminilidade passiva” para se definir.
Mário de Andrade, sobre os trilhos, em 1927 Foto: IEB-USP
Saindo do armário
A possibilidade de uma compreensão mais livre sobre o indivíduo por trás do intelectual surgiu em 2015, quando a produção de Mário de Andrade caiu em domínio público e, em particular, foi revogada a censura que pesava sobre o trecho de uma carta enviada por ele ao poeta Manuel Bandeira, em 1928. Trecho em que Mário discorria sobre “a minha tão falada (pelos outros) homossexualidade”. Uma simples menção que causou alvoroço mesmo em 2015, 70 anos depois da morte do escritor.
Inédita até aqui, a abordagem de Duas vidas se encaixa no eixo temático definido pelo Masp para o ano de 2024 de colocar em evidência histórias da diversidade LGBTQIA+ ao redor do mundo. “Nessa carta, Mário fala que toda vida tem duas vidas, uma particular e uma social”, conta Regina. “Em outros documentos, raros, ele aborda essas duas vidas, a de cima e a de baixo, a mais racional e controlada e a mais intuitiva.”
“Mário era um homem gay dentro do armário, numa época em que a homossexualidade era tida ou como doença e perversão, ou caso de hospício ou cadeia.”
Regina Teixeira de Barros
Norteada por esse fio condutor, a curadora selecionou 88 peças do acervo mantido pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP), entre fotografias tiradas pelo próprio Mário de Andrade em suas expedições pelo Brasil e 54 obras de artistas diversos, que integravam sua coleção particular.
Dos 54 retratos, gravuras, pinturas e esculturas, 31 são totalmente inéditos, o que indica, segundo ela, o caráter mais privativo desse material. “A ideia foi recolher, no meio dessas obras, traços e vestígios possíveis de uma orientação sexual”, explica, lembrando que não apenas a sexualidade, mas também a negritude de Mário de Andrade foi amplamente ocultada durante quase um século.
Da coleção de arte do modernista saiu um material que inclui uma série de nus masculinos, criados por artistas como Anita Malfatti, Clóvis Graciano, Flávio de Carvalho e outros que não sobreviveram (ou foram apagados) na memória coletiva, além de nus em esculturas sacras da tradição católica. “Há muitos retratos de homens, com as mais variadas expressões, sisudos, desconfiados, cismados. Não quer dizer que a coleção não tenha rostos femininos, mas esse é o recorte específico que fizemos.”
Na parte fotográfica, a seleção foi feita a partir de um arquivo de quase mil imagens fotografadas (ou “fotadas”, como Mário escrevia) em viagens dentro e fora do Brasil. Numa espécie de selfie 100 anos antecipada, ele aparece sentado em trilhos ferroviários, em cuja legenda afirma: “Era para a máquina fotar as borboletas amarelas, mas a objetiva não viu”.
Retrato de Mário de Andrade, 1922, de Tarsila do Amaral Foto: Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo/Eduardo Ortega
Figuras masculinas
Entre cenas de cidades, detalhes arquitetônicos, paisagens e pessoas, as imagens masculinas, quase sempre de trabalhadores, se sobrepõem. “Existe a figura humana encarando a máquina de frente, e flagrantes de costas, o cara trepando no coqueiro ou subindo numa árvore. Mário dá um zoom, a bunda do cara fica no meio da foto”, descreve Regina, que interpreta ainda um viés de desrepressão nas fotos feitas longe de sua São Paulo natal. “Ele faz autorretratos em que pega um leque, faz uma graça, se diverte com a roupa e com algumas fantasias. Numa foto feita no Peru, vestindo uma saia indígena, ele diz que está ‘vestido de entusiasmo peruano’”, enumera.
Embora tenham menor ineditismo, porque foram incluídas em edições do livro Turista aprendiz, lançado postumamente em 1977, a partir do diário produzido por Mário em suas viagens e expedições musicais, as fotos trazidas para Duas vidas ainda esbarram no impedimento de explicitar Mário de Andrade sob a ótica queer.
“Outro dia me perguntaram se Mário ia gostar dessa exposição. Se fosse lá na primeira metade do século 20, não, mas certamente isso não estaria em pauta. Se ele estivesse vivo hoje, com certeza tudo ia ser muito diferente.”
Sim, se hoje podemos falar em sensibilidade queer, debater homofobia e racismo, além de ler livros como O peso da beleza: a invenção de Alberto Santos Dumont (2023), de Bruno Brulon Soares (que aborda o “pai da aviação” sob idêntico ângulo queer), não se pode dizer que o tabu vivenciado na carne por Mário de Andrade tenha caído por terra no século 21. A curadora sente isso quando lhe fazem perguntas como “Mário fez tanta coisa e você vai falar só disso?”. E responde: “Todas as coisas já foram muito faladas, e vão continuar sendo, mas é o momento para falar sobre a orientação sexual dele, no ano em que o Masp está com o eixo temático das histórias LGBTQIA+”.
De acordo com o viés encampado pelo museu, é hora de examinar a face oculta de Mário de Andrade e os obstáculos que ele encontrou quando vivo. “Ele sofreu muito racismo, muito ataque homofóbico, muito preconceito”, afirma Regina, mencionando charges que o desenhavam com cintura fina e textos que o rotulavam como “almofadinha”, “miss Macunaíma” ou “nossa versão de Oscar Wilde” na imprensa da época.
A questão racial, menos focalizada na exposição, é percebida pela curadora até nos círculos íntimos do intelectual, vide seu retrato pintado em 1922 pela amiga Tarsila do Amaral: “Ele sofreu um superbranqueamento. A testa é clarinha, a bochecha é cor-de-rosa, o nariz é fino. Cadê a negritude desse homem?”
Dadas as circunstâncias de Mário de Andrade e seu tempo, a dita sensibilidade queer se descortina na exposição de modo sempre velado e vestigial. “Não são trabalhos eróticos. Ele não tinha. Mas existe um olhar sutil, que a gente pode ir pescando aqui e ali. Mário era um homem gay dentro do armário, numa época em que a homossexualidade era tida ou como doença e perversão, ou caso de hospício ou cadeia. Ele devia sofrer muito com isso.”
A obra Homem (1933), em que Mário foi retratado por Flávio de Carvalho Foto: IEB-USP