Quero minha mãe

Se quisermos memória, respeito, amor e empatia, precisamos devolver a coordenação do mundo às mãos das mulheres.

Quando olho para a gestão do mundo contemporâneo e vejo o que nos acostumamos a chamar de civilização, me estarreço. Tudo me estarrece. É flagrante o império da competição nessa configuração mundial de maioria capitalista onde meu irmão vale menos do que eu porque tem menos dinheiro. Onde um é Caim do outro, no sentido de Caim e Abel. Um vai ser derrotado. Ao contrário da irmandade, não vamos juntos, vamos separados. Um terá que vencer o outro.

Isso mostra, mesmo que metaforicamente, que se deve destruir o outro dentro de uma empresa, por exemplo, para ascender a todo custo. Tudo isso é medieval como as arenas onde se matava o próximo. Sem motivo algum. Um era posto contra o outro. Ganha o suposto mais forte, conceito esse assentado no patriarcado, que tem uma dinâmica de violência na sua idiossincrasia, na sua gênesis, culturalmente falando e economicamente também, porque no patriarcado também se concentra o dinheiro, se concentra uma estrutura de poder masculino que produz um homem violento, um homem que despreza sua própria sensibilidade para preservar uma ignorância emocional.

Tais premissas maltratam a vida psicológica desse indivíduo e o impedem de desenvolver naturalmente sua sensibilidade, porque essa está atribuída, erroneamente, a um comportamento feminino. “Ser sensível é não ser homem”, e por causa dessa mentira muitas violências se justificam. Fernando Pessoa dizia: “Bendito seja o sol que faz meus irmãos todos os homens, porque todos os homens em alguma hora do dia o olham como eu”. Tal verdade faz da gente irmãos. Grita então na mesa da cartomante do mundo, lugar onde o mundo deveria ir se consultar, oráculos que clamam pelos ensinamentos das filosofias africanas. Gritam os búzios. Não sou especialista, infelizmente, em filosofia africana, mas sabemos de alguns dos seus fundamentos básicos. E um deles é a filosofia Ubuntu, onde o aforismo que nos orienta é: “Eu sou porque nós somos”. Ou seja, sozinho ninguém é nada, ninguém é nada mesmo, desde que nasce. Se alguém não cuidar de nós ao nascer, morremos. Um bebê não sobrevive sozinho. Alguém tem que cuidar dele, nem que seja outro animal, mas alguém tem que cuidar dele, além do animal humano, né? Então, “eu sou porque nós somos”. Isso é tão certo quanto é verdade que todos nascemos nus.

Para seguirmos o oráculo, temos que desconfigurar o pensamento de concorrência com o outro. Há uma parábola, ou seja, um exemplo através da nossa força oral, do nosso encantamento, que explica um pouco dessa filosofia:

Um sociólogo, numa comunidade, talvez nos arredores do Zaire, foi estudar aquela população, estudar aquela dinâmica social por um tempo. Ao chegar, sabedor de que esperaria por mais de quatro horas o avião para tal lugarejo, resolveu distrair-se ao ver uns dez, 12 meninos jogando num jogo na rua, corriam atrás dos outros e brincavam com bolas de papel. Então, comprou várias iguarias em doces, balas, pirulitos, doces, chicletes, trouxe tudo que pudesse atrair crianças, fez uma cesta colorida, voltou para o grupo e propôs: “Coloquei uma cesta de muitas coisas gostosas em cima daquele tronco de árvore. Quem pegar vai ganhar o cesto todo. Vamos lá, um, dois, três e já”. Para sua surpresa, o grupo de crianças corre de mãos dadas e abraçando o objeto, sorrindo, gargalhavam muito. Todas as mãozinhas envoltas no cesto. E aí o homem esbraveja: “Seus bobos, não era nada disso. Era para ver quem era o mais rápido, mais esperto, mais inteligente, mais veloz! Esse, que iria correr na frente de todo mundo, iria ganhar sozinho uma cesta de doces só para ele! Ele iria ficar todo feliz, era isso. Não era para vocês correrem juntos”. Foi quando um dos meninos perguntou: “Mas, tio, quem iria ficar feliz ganhando todos os doces sozinho?” Esse menino não queria criticar o professor sociólogo, nem pensara nisso. Só disse a verdade. Ele não possui essa configuração de destruição do irmão no seu imaginário. E, mais que isso, não consegue entender que felicidade é essa que não é coletiva. É essa a questão.

Já não é segredo que os fundamentos dos povos originários, indígenas e negros, estão assentados num modo de existir ecologicamente sustentável, e sua gente trata com respeito todas as instâncias do que chamamos natureza. No caso indígena, cada língua tem um significado, por exemplo: povo que fala a verdade, luz do sol, árvore da primavera. Seus nomes são poéticos, os significados das estirpes de famílias inteiras são verdadeiros versos: folha da tarde de outono, margem do rio primeiro, flor do novo dia e outras belezas. Ou seja, o conceito da branquitude, que faz a gestão majoritária do mundo desde a sua violenta ocupação, que incluiu sangue, matança, traição, contaminação epidêmica, estupros e genocídio, como conceito de civilização, não viu até hoje, não consegue ver que a floresta, como bem nos ensina Ailton Krenak, é um jardim natural produzido por primatas, pássaros, ventos, chuvas e outras naturezas. A floresta é agora. Não nasceu pronta. É produzida por uma confluência de fatores e seres. A mesma intimidade, os povos africanos dedicam a tudo que nos envolve: Iemanjá representa a devoção às águas, Oxóssi às matas, Nanã aos mangues, Oxum aos rios, Iansã às chuvas e aos raios, Xangô às montanhas e aos trovões, Ogum aos metais e Exu às ruas, aos caminhos, às trilhas e às mensagens. Só para citar alguns. Nessa mitologia, seus filhos são cuidadores de cada um desses reinos, ou seja, devotos da natureza. Sabem que matar a mata é matar-se.

Talvez não pareça, mas estamos falando de memória. Essas sociedades que acabei de citar privilegiam os velhos e as crianças. No Candomblé, se pede a bênção aos jovens e aos mais velhos. Há uma consciência de que o velho é a biblioteca do mundo e traz o tesouro do conhecimento que ele PRECISA passar para as novas gerações. E as crianças, que são os Erês, são também Orixás, trazem a sabedoria da renovação do mundo, atualizando tais saberes. Estamos falando de memória e de transmutações como motivos principais do sentido da palavra Tempo, que, na cultura do Candomblé também é um Orixá. Esse conjunto mitológico está assentado na natureza. Não uma invenção de outro mundo, com juízo final, condenações ao inferno. Não. Em tais filosofias, a vida é a fortuna, o outro é o tesouro, é o contrário de “farinha pouca, meu pirão primeiro”.

Quando o homem branco chegou doente, com a tripulação à morte dentro de suas caravelas, depois de meses em altos mares, quem cuidou de suas mazelas e recuperou sua saúde? Os pajés, os curandeiros e suas raízes milagrosas. Refeito, o homem branco, ao se ver saudável outra vez, trai seus “doutores”, violenta suas mulheres e, antes disso, os engana, trocando espelhos por pepitas de ouro, e cada um retorna ao seu povo com versões diferentes. Para o homem branco, o índio é o bobo, acabou de fazer uma troca de um objeto banal por ouro, por madeira nobre. “O índio tá no papo”, pensa o colonizador. No entanto, no primeiro momento, ainda na fase do escambo, ou seja, na troca de objeto entre eles, o indígena sai do encontro feliz por ter feito mais uma relação, mais um elo de afeto com seu irmão de sol. Para o indígena, o homem é mais importante que o negócio. Ou seja, o que o homem branco chama de limitação e falta de expertise no selvagem ser é exatamente sua sabedoria.

Diante desse quadro, sabemos como estão distorcidas as lições que nossos alunos recebem sobre a nossa própria história. Se tivessem chegado tais conhecimentos dos primeiros habitantes da nossa terra, os primeiros estrangeiros, que foram os negros, teríamos outro mundo. Talvez nem falássemos de ecologia. Não seria necessário. As escolas brasileiras estão tão longe da verdadeira formação de seu povo que podemos considerar a história oficial contada para elas como um verdadeiro embuste. Seguimos admirando os vilões colonizadores, admirando bárbaras aristocracias, decorando seus nomes sórdidos. Há gente envolvida em milícia, capturadores de escravizados, há bandidagem dos bandeirantes e tais feitos são apresentados como fatos heroicos.

Fui criada numa casa onde a palavra, a música, os livros, tinham muito valor. Essa foi a minha salvação e é ainda a de muitas gerações. Diante do apagamento proposital da história indígena e negra, seguimos analfabetos de nós, sem saber dizer quais palavras do nosso vocabulário são tupi-guarani, por exemplo, ou banto. Não sabemos. Aprendi mais sobre Zumbi dos Palmares com Martinho da Vila, sobre os Orixás com Gilberto Gil, Caetano Veloso e Clara Nunes, sobre o Egito com o Olodum e Margareth Menezes do que no colégio. Até hoje vivemos o longo dia depois da abolição da escravatura. Ou seja, nenhuma política pública que garantisse culturalmente nossa sobrevivência. Por isso as políticas públicas, as cotas, os mecanismos de democratização dos saberes e oportunidades para todos produzem uma espécie de sanidade da nossa sociedade. Promovem justiça no covarde roteiro, fazem reparos na bandeira brasileira.

Vale lembrar que no terreiro todas as pessoas são acolhidas. Ninguém pergunta a quem chega se a pessoa é budista, evangélica, católica, espírita, nada. Ninguém é excluído. Apenas somos recebidos com nossas demandas e atendidos nelas. Quem manda no terreiro é o matriarcado. E se pensarmos bem não é a mãe a primeira a ensinar que temos que deixar comida para o nosso irmão também? É preciso fazer uma volta nas linhas do mundo e enfeitar a mesa que coordena esse furdunço com os ensinamentos de um bom coração materno. Essa história de guerras, matanças e colonizações foi protagonizada por homens machistas, misóginos e cruéis. Se quisermos memória, respeito, amor, empatia, distribuição igualitária de alimentos na mesa, precisamos devolver a coordenação do mundo às mãos das mulheres. Não vem delas o protagonismo das guerras. Não são elas, ou melhor, não somos nós as senhoras das armas.

Ao não reverenciarmos nossa origem e não a conhecermos, nos perdemos de nós, vivemos órfãos dos ensinamentos do Egito, que foi o grande primeiro lampejo do que chamamos de civilização. Nos deu a arquitetura, a medicina, a astrologia, o papel, a escrita, a agricultura, para citar alguns. A humanidade toda veio de um útero negro. Afinal, a mãe África é o grande útero que a todos nos gerou e, por todos os motivos, nós, seus filhos, temos com ela uma dívida imensa. Escrevo esse texto com os olhos na noite pela janela. Vejo a grande escuridão. Vejo nas estrelas os olhos dela. Alguém ancestral em mim chora e diz: “Quero minha mãe”.

Elisa Lucinda é atriz, cantora e escritora. É autora de Quem me leva para passear (editora Malê) e Vozes guardadas (editora Record), entre vários outros títulos.