Escalando a montanha

No mundo, apenas um terço das lideranças é feminina, inclusive na moda. No mês das mulheres, conversamos com seis executivas brasileiras para entender como elas lidam com os desafios, a autocobrança e a busca pela equidade de gênero.

Quando se trata de igualdade de gênero em cargos de liderança, a novidade é, de forma geral, positiva: o número de mulheres líderes corporativas está subindo globalmente. A questão é a taxa lenta desse crescimento: 3,8% desde 2006, segundo o Fórum Econômico Mundial. Se continuar nesse ritmo, a paridade de gêneros só será alcançada em 2154. 

Na prática, a cada dez postos de liderança no mundo hoje, só três são ocupados por mulheres. No Brasil, a pesquisa Panorama Mulheres 2023, feita pelo Talenses Group com o Insper, apontou que mulheres são 26% entre diretores e 17% entre CEOs nacionais.

Estudiosos do chamado gender gap (a lacuna na igualdade de gêneros) apontam principalmente para o gargalo na ascensão das mulheres dentro de uma empresa: mesmo quando elas são a maioria da força de trabalho, vão rareando conforme se sobe na hierarquia. E vamos com dados da consultoria McKinsey & Co. para ilustrar: quase dois terços das funcionárias de empresas de vestuário, moda e luxo nos EUA e na Europa são mulheres, mas apenas um terço ocupa posições gerenciais. Quando se contabiliza a presença feminina nas posições mais altas (aquelas que lidam com perdas e lucros, como CEOs e diretoras), elas são ainda mais raras: cerca de 10%. E esse desequilíbrio persiste nos mais altos níveis. Em 2021, por exemplo, 77% das pessoas escolhidas como CEOs nesse segmento foram homens.

Os motivos são variados: discriminação de gênero (pura e simples), diferença salarial, vieses inconscientes na seleção e promoção de pessoas, agressões e microagressões, falta de representatividade e políticas inflexíveis com o cotidiano de muitas mulheres, que ainda são desproporcionalmente responsáveis por cuidar da família e das tarefas de casa. E olha que essa é uma lista curta.

Como vemos na vida e no papel, ainda há muito por fazer. E, já que é melhor ouvir direto da fonte, coletamos relatos de seis mulheres que lideram na moda brasileira e latino-americana para saber o que elas aprenderam (e aprendem) ao longo do caminho. Confira.

Carla Assumpção, diretora-geral da Swarovski na América Latina

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Entrei na Swarovski como freelancer – a Isabella Blow me contratou para desenvolver parcerias de moda no mercado brasileiro. Comecei com São Paulo Fashion Week, Fause Haten, Alexandre Herchcovitch e Lino Villaventura, numa época em que a Swarovski era totalmente desconhecida no Brasil e as pessoas achavam que era nome de bebida. Na sequência, me chamaram para tocar a área de marketing. Quando meu chefe se aposentou e perguntou se eu queria assumir a gestão geral da empresa, eu falei: “Eu? De jeito nenhum! Não tenho a menor capacidade de assumir a gestão 360 de uma companhia, as finanças, o RH, o marketing”. E cá estou. Mas sempre senti que o medo não me paralisou e tive a percepção de que não faço nada sozinha. Tive muita gente boa, muitos anjos na minha trajetória, a começar pelo meu pai, que sempre incentivou as filhas a serem independentes. Somos uma empresa voltada para o público feminino e, em termos de equidade de gênero, acredito que existe um balanço até nos altos cargos. Porém ainda vejo muito espaço para ser melhor, principalmente na operação no Brasil. Não diria nem que é uma questão somente de gênero: temos uma grande janela de oportunidade para trazer mais inclusão em vários aspectos. Faço parte de grupos de mulheres executivas e percebo que algumas questões das quais sou a favor – cotas para mulheres em conselhos, pressão para que as grandes corporações tenham uma relação mais equânime de gêneros – têm forçado mais o surgimento de oportunidades. A gente vem se desenvolvendo para um cenário melhor do que há 20 anos, quando comecei. Ainda vemos um universo corporativo extremamente fechado e masculino, em que a gente só ganha espaço pela repetição. Você tem que martelar muito para quebrar uma pedra. É a constância que faz as mudanças e a transformação. Acredito em cotas, acredito em datas, como o Dia da Mulher, acredito em ritos. Porque são esses momentos que trazem a atenção, o foco para nós. Então, não me canso de poder ser uma referência, ou o que quer que seja, para contribuir minimamente para que mais mulheres assumam posições como a minha.

Luciana Wodzik, CEO da Arezzo & Co. na vertical de Calçados e Acessórios

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Comecei a trabalhar como modelo de calce da Arezzo há 27 anos. E, em tudo que faço, sempre procurei a excelência, portanto, fazia muito mais do que o esperado. Era uma grande apoiadora dos representantes e, inclusive, fazia muitas vendas. Era muito disputada. Tinha na veia o varejo, a comunicação. Fui aprendendo a liderar, a formar times engajados, com muita autonomia e sempre busquei alinhamento de cultura. Fui de modelo de calce à primeira mulher dentro do grupo Arezzo & Co. e a uma mulher não fundadora assumir a cadeira de CEO. Acompanhei todas as eras da marca e entrei quando a gente estava na do varejo. Na área de franchise e expansão, fui responsável pela abertura de mais de 100 lojas em todo o Brasil. Depois, em 1999, me casei com um baiano e me mudei para Salvador. A Arezzo não tinha nada no Nordeste e montei um projeto-modelo. Quando o Alexandre Birman assumiu como CEO e o Anderson Birman, fundador e pai dele, assumiu como chairman do grupo, me mudei para São Paulo para assumir o principal canal na época: as franquias da marca Arezzo. De lá, foi uma trajetória de cargo de diretoria: fui diretora da Fiever, depois da Schutz e, na pandemia, fui convidada a assumir a da Arezzo – com as 450 lojas fechadas e a gente precisando manter a sustentabilidade dos nossos franqueados. Coloquei a marca num momento de mundo mais atual e a Arezzo teve um crescimento realmente exponencial, de dois dígitos. Na sequência, assumi como diretora executiva das marcas core do grupo: Arezzo, Anacapri, Fiever, Alme e Brizza Arezzo, que é a categoria de flip-flop, que eu fundei. Recentemente, assumi todas as marcas do grupo como CEO na vertical de calçados e bolsas. Meus pares são ambos homens e fundadores. A Arezzo & Co. tem 6 mil colaboradores, com quase 60% deles mulheres. Tenho 14 liderados diretos, sendo dez mulheres e quatro homens. Só na minha unidade de negócios, são quase 4,5 bilhões de reais – é a maior delas. Sendo uma mulher nesse cargo, tenho certeza de que tenho um papel e um propósito muito importantes ao ser um exemplo e mostrar que é possível. Temos ainda, culturalmente, muitos desafios a vencer, mas taí: se chegou uma, se chegaram 17%, podemos ir juntas, quebrando mais barreiras e aumentando as mulheres na liderança. A nossa geração está muito mais atenta ao perfil de liderança e como a liderança se comporta. Está todo mundo sendo observado, seja homem ou mulher. Há cada vez menos espaço para quem não esteja atualizado com o momento atual, que é de cuidado com as pessoas, delicadeza no tratar e respeito. E falo uma coisa: não quero ser igual a homem! Até brinco: quero que carreguem minhas coisas pesadas. (risos) Mas que sejamos respeitadas. Na hora em que eu precisar ser dura, conversar de igual para igual, é esse respeito que precisa acontecer.

Laura Cerqueira Leite, sócia e diretora de comunicação da Neriage

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Em 2018, decidi sair do Brasil e ir para a França para fazer uma pós-graduação em comunicação e promoção de moda. Acabei não terminando por causa da pandemia e voltei. A Rafaela (estilista e fundadora da marca) estava passando por um momento delicado e me chamou para ajudá-la. Éramos quatro pessoas na Neriage e hoje somos 25, entre ateliê, comercial, marketing, tudo. Às vezes, sentimos que um fornecedor ou outro tenta negociar diferente com a gente, por sermos mais novas, mas também por sermos mulheres. Numa negociação com um possível patrocinador, é mais difícil mostrar que realmente vamos fazer aquilo a que nos propomos. Eles pedem muitas confirmações e provas de que conseguimos fazer. A gente sente quando não está sendo muito levada a sério, né? Nunca passou pela minha cabeça ser empresária. Há muitos desafios, mas a gente se adapta e vai aprendendo também. E se acostuma pela necessidade mesmo, porque não há ninguém para fazer por nós. Claro, existem momentos de insegurança. Mas acho que são menores do que os momentos de certeza para fazer dar certo. Empreender no Brasil é muito caro, principalmente quando você cria um produto. Você está investindo no tecido da coleção, na mão de obra, pagando tudo aquilo e aquele negócio só vai vender daqui a dois, três meses. E os impostos que temos aqui são altíssimos! Em relação à idade, nossa equipe é superdiversa. É uma equipe muito feminina. E a Rafa brinca que é uma “Coleção Palpites”, porque a gente escuta o feedback de todos sobre a empresa, sobre as roupas. Trabalhamos muito junto. É uma mistura de pessoas com visões diferentes – o que é importantíssimo para não se fechar numa caixa. Para nós, essa diversidade é natural. Não é uma coisa que a gente “tenta”. Ela acontece, como eu acho que deveria ser com todo mundo.

Laurita Mourão, diretora-geral da Tiffany & Co. no Brasil

LAURITA MOURAO arte

Trabalhei como vendedora da Daslu, estagiei e fui trainee na C&A e depois fiquei lá por mais quatro anos, como gerente de compras. Fui para a Califórnia, fiz um MBA, me mudei para Nova York e trabalhei com Oscar de la Renta, atendendo lojas de departamento como Saks, Bergdorf Goodman e Nordstrom. De lá, fui trabalhar no showroom do Alexandre Birman nos EUA. Antes de entrar na Tiffany, fui ainda brand manager da Ralph Lauren e trabalhei para a Pucci. Nesta semana, fiz três anos de Tiffany. Parecem 30, mas são só três mesmo. É engraçado pensar nisto: a maioria das pessoas com quem trabalhei eram mulheres, mas os meus chefes sempre foram homens. Só tive uma chefe mulher, que ficou três meses, e logo depois assumiu um homem. Nunca tive um obstáculo de discriminação, mas piadas tem o tempo todo. “Poxa, o que você está fazendo aqui a essa hora? Seu marido não vai gostar”, “tá viajando muito, o que seu marido acha disso?” Estamos o dia inteiro lidando com esse tipo de brincadeirinha. Para mim, um dos maiores desafios é realmente administrar as expectativas do dia a dia da família e a pressão que tenho no trabalho. No ano passado, por exemplo, tive que ir oito vezes a Nova York e duas vezes ao México… É praticamente dez dias do mês fora de casa. Trabalho com muitas vendedoras que são mães solteiras, que precisam estar ali para os seus filhos e que precisam trabalhar para conseguir dar conta das despesas, então, acredito que elas se espelham muito nesse meu malabarismo. Temos 91 funcionários e 70% são mulheres. É claro que tem pressão, tem cobrança. Mas tentamos trabalhar muito essa confiança no dia a dia para que as mulheres não se sintam mal ou culpadas porque têm um compromisso. A gente acha que essa pressão ameniza, mas nunca melhora, nunca sai da gente. Aí, com filho, ela dobra. Você vê uma revista, uma mulher bonita, ela triplica. É uma luta constante. O dia a dia é tão corrido que às vezes é bom parar no Mês das Mulheres para refletir sobre o poder feminino na sociedade. E também o quanto é importante se cuidar. Às vezes, fico pensando: para a minha casa ou o meu trabalho funcionarem, preciso estar bem. E sempre há a expectativa de agradar aos outros – os funcionários, o chefe, a filha, o marido. O famoso equilíbrio não existe. Sempre vai ter alguma coisa pendente, um pratinho que caiu no chão. Tudo bem. Se a gente fica se cobrando muito, não consegue fluir. E eu acho que a gente tem que fluir com a vida.

Lenny Niemeyer, estilista, CEO e fundadora

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Vim de uma época em que as coisas eram muito diferentes e difíceis. Eu tinha que fazer um pouco de tudo e não entendia de gestão, planejamento, marketing. Era uma economia completamente diferente, de dinheiro congelado, de concordata. Quase fechei no meio do caminho. Não sou muito ligada em astrologia, mas acho que uma característica do meu signo, Capricórnio, é ser muito tinhosa, teimosa. Cada desafio, eu encarava com mais vontade. Tive muitos obstáculos e pessoas me discriminavam no dia a dia pelo fato de eu ser mulher. Não era considerada, por exemplo, uma estilista: era “aquela mulher que faz biquíni”. Moda praia era como o submundo da moda. Hoje, emprego muitas mulheres. São mais de 70% dos 450 funcionários. Gosto muito de fábrica e de ir todo dia para lá. Sempre fui a primeira a chegar e a última a sair. Não falto, faça chuva ou faça sol. Tem que estar presente, porque as coisas acontecem de uma hora para outra e os funcionários têm que sentir a sua presença. A Bel, minha filha, sentia muito minha falta, porque eu ia trabalhar com ela embaixo do braço. Quando ela ficava em casa, reclamava, queria que eu voltasse. Uma empresa é mais ou menos isto: a pessoa quer saber que você está lá. Para mim, minha empresa sempre foi um segundo lar. Você convive com os funcionários, deve dar carinho, ser aquela segunda mãe, segunda irmã, segunda filha. Saber o nome da criança, do cachorro, do pai. Parece que não, mas faz diferença, tá? E respeito é preciso ter por todo mundo. Isso é uma obrigação humana. Acredito tanto na minha equipe que acho legal dar liberdade para eles trabalharem e me surpreenderem com coisas mais jovens, mais inovadoras, que só vão acrescentar à marca. É uma maneira de seguir em frente e de a minha empresa se eternizar. É o que eu quero.

Rachel Maia, consultora, conselheira e empresária

Rachel Maia

Sou executiva, empresária e conselheira. Sentei na cadeira de vice-presidente de finanças e presidente de empresas globais, como Tiffany & Co., Pandora e Lacoste, por mais de 28 anos e agora estou focada nos conselhos e no empresariado. Sou conselheira há aproximadamente 12 anos – nem vou discutir que já se tem uma boa diferença no mercado desde que comecei. Hoje, os investidores me procuram pedindo indicação no meu perfil. Isso é espetacular, em especial para mulheres, com destaque para mulheres pretas. Ser a única mulher negra executiva em espaços de luxo foi pesado, mas necessário. Eu choquei o olhar de muitos, mas sabia que estava sendo precursora de uma mudança. Ao mesmo tempo, não tem batalha fácil quando se vive um momento de transformação. Não tem como você entrar no processo sem ter a consciência de que será uma batalha e que você não tem conhecimento de tudo, mesmo sendo detentora de muito conhecimento sobre o que se demanda na empresa naquele momento. Já fui muito descuidada comigo mesma. Hoje, me dou o prazer de andar de 5 a 10 km todos os dias de manhã cedo. Cuidar-se é uma das ferramentas para seguir em frente. Isso não significa que o meu pilar familiar está recebendo o mesmo tempo que o meu pilar profissional, onde está contida a transformação. A qualidade que uma mãe tem de poder jantar todos os dias com seus filhos eu, de repente, não vou ter. Mas o que eu dou a eles no período em que eu estou, poxa… Checks the box! Ressignifiquei essa questão de qualidade e quantidade. Acho esse período, em março, valioso para pensarmos nisso, embora ainda queira viver um tempo em que não seja mais necessário celebrar o Mês da Mulher, porque vai existir respeito, um olhar equânime. Enquanto ainda não for natural, precisamos todos lembrar o porquê de estarmos celebrando. É exaustivo, mas a transformação exige dedicação e um esforço extra. Esse momento de não se posicionar já foi.