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Para onde um par de óculos pode nos levar?

Preciso admitir que a ousadia de manter uma coluna sobre os impactos da tecnologia no mundo contemporâneo pesou nesse último mês, enquanto eu tentava acomodar em um só documento minhas sensações sobre o advento dos “óculos inteligentes”, um fenômeno que alcançou seu auge no dia 2 de fevereiro, com o início das vendas do Apple Vision Pro. 

Acontece que tem tanta coisa borbulhando nesse campo, na mesma medida empolgante e preocupante, que comecei a duvidar que um texto corrido, em formato linear, daria conta da missão (juro que cheguei a rascunhar um poema, mas no fim achei melhor não complicar mais a minha vida). Tudo isso para dizer que, provavelmente, este será apenas o primeiro de alguns textos sobre o assunto que devem pipocar por aqui nos próximos meses.

Mas vamos lá!

Minha principal questão com produtos como o Ray-Ban Meta, o Meta Quest e o Vision Pro é que eles não são apenas novidades tecnológicas, como um celular e um computador mais potentes, mas, sim, propostas abrangentes, complexas e ambiciosas para interagir em comunidade (ou fora dela). E cada um deles parece estar sugerindo um caminho de como isso se desenrolará.

Atualmente, vejo duas direções que sobressaem quando falamos de smart glasses: o da imersão (todos conectados em um universo virtual novo, em que, teoricamente, as possibilidades são infinitas) e o do incremento (a famigerada realidade aumentada). O Meta Quest está no primeiro, o Ray-Ban Meta está no segundo e o Vision Pro meio que está nos dois, uma vez que ele permite, por exemplo, que nos desconectemos totalmente do ambiente para assistir a um filme ou jogar, mas também coloquemos um timer flutuante em cima de uma panela borbulhando na nossa cozinha.

Em termos de potencialidade de adesão, a parceria entre a Meta e a Ray-Ban sai muito na frente: a tecnologia foi implantada em dois modelos clássicos de óculos de uma marca já consolidada e se focou no nosso indiscutível desejo por registrar o dia a dia no melhor estilo “se meu olhos tirassem fotos”. Além da câmera de qualidade surpreendente, eles contam com “fones de ouvido” que deixam os canais auditivos livres para ouvir o ambiente, e a versão mais recente traz um assistente virtual que funciona como GPS, responde perguntas e até descreve o que está à sua frente (muito relevante para pessoas com deficiência visual). A inserção dessa ferramenta nos óculos é promissora e ainda aponta para algo que vem me fascinando há tempos: a possibilidade de, em um futuro próximo, termos uma tradução simultânea de verdade e não mais precisarmos aprender outros idiomas para conversar ao vivo com qualquer pessoa do mundo.

Já a adoção do Apple Vision Pro como ele se apresenta, uma peça robusta, com um cabo ligado a uma bateria, que nos traz sentimentos imediatos de distopia, deve depender bastante do ciclo do hype para pegar de fato.

modelos de oculos

Vai mesmo pegar?

Olha, não é do meu feitio fazer previsões, mas, depois de ler um artigo de 2008 do cientista da computação Bill Buxton, em que ele detecta um fenômeno chamado The Long Nose of Innovation, eu diria que sim.

Seu argumento é que as inovações realmente poderosas costumam levar algo entre 20 e 30 anos para estourar. Como exemplo, ele cita o mouse e o touch screen. Quando elas começaram a parecer incontestáveis para nós, o público geral, já haviam passado por algumas décadas de repulsa, aperfeiçoamento e conversas em várias esferas, até finalmente encontrarem a sua “perfect storm”.

“O que a Long Nose nos diz é que qualquer tecnologia que terá um impacto significativo nos próximos dez anos já tem pelo menos 10 anos de idade. Qualquer tecnologia que terá um impacto significativo nos próximos cinco anos já tem pelo menos 15 anos de idade e provavelmente ainda está fora do radar. Portanto, cuidado com quem defende alguma ideia ‘nova’ que ‘irá’ decolar nos próximos cinco anos, a menos que seja possível rastrear sua história por 15 anos. Se não conseguirem fazer isso, é muito provável que estejam errados ou não tenham feito sua lição de casa”, escreveu Buxton na Business Week.

Então peguemos o exemplo do Google Glass. Cerca de uma década atrás, Diane von Furstenberg colocou um par deles em um de seus desfiles e fez a indústria da moda se debruçar nas possibilidades de convergência com a tecnologia. Mesmo tendo sido lançado mais como um protótipo do que como um produto final, a criação não foi muito bem recebida pelo público na época, fazendo com que usuários chegassem a ser agredidos em espaços públicos por pessoas com medo de estarem sendo fotografadas. A peça acabou virando piada para alguns pela hipótese surreal de passarmos a usar continuamente uma câmera ou um computador no rosto. Ainda não era a sua hora.

O que, para falar a verdade, acaba sendo muito engraçado porque assistindo ao vídeo de divulgação do Project Glass agora, com os olhos de 2024, vemos que todas as ideias mostradas ali são apenas versões um pouco mais automatizadas de atividades que hoje fazemos diariamente em nossos celulares — que, no fim das contas, nunca tiramos do rosto. Inclusive, quase ninguém liga mais para a possibilidade de estar sendo filmado, já que ficamos acostumados com celulares sendo apontados para todos os cantos o tempo todo.

Então, considerando que os primeiros projetos de óculos inteligentes, que na época eram chamados de “wearable computing”, são do meio dos anos 1990 (pesquise sobre Private Eye e fique embasbacado como eu fiquei ao ler tudo o que já estava sendo discutido naquela época), parece que chegamos, ou estamos bem perto de chegar, ao momento deles. Talvez até por isso não soe tão impossível um item como o Apple Vision Pro virar moda — só o fato de ele ter sido lançado pela Apple com esse visual, e não ter sido barrado como uma sugestão maluca, diz muito sobre o lugar em que estamos, não acha?

E precisa ser um óculos?

No mês passado, rechacei o metaverso do Zuckerberg, mas recentemente me deparei com outra forma de olhar para essa palavra que me intrigou: no episódio A maldição do metaverso, de seu podcast Tecnologia e Cultura, a pesquisadora Olivia Merquior sugere que ela representaria um período no qual os dispositivos eletrônicos, os eletrodomésticos e as ferramentas que utilizamos no nosso cotidiano estariam profundamente interconectados de forma inteligente. Essencialmente, isso corresponde à definição de IoT (Internet of things/Internet das Coisas), mas entendo por que ela parece uma aplicação pertinente ao termo metaverso, já que evoca uma era na qual viveríamos em constante presença da tecnologia, em que a ideia de entrar ou sair não existiria. Curiosamente, também seria um mundo com muito menos telas.

Outro conceito relacionado é o de “ubiquitous computing”, ou “ambient computing”, a integração da tecnologia em todos os aspectos da nossa vida cotidiana de forma contínua e transparente. Um desenvolvimento de hardware e software que tem como missão deixarmos de perceber que a tecnologia está ali. Sim, a proposta também figura meio desumana para mim, mas seus entusiastas a defendem exatamente como uma forma de engrandecer a conexão interpessoal, de nos perdermos menos uns dos outros por deixarmos de estar imersos em celulares.

Lendo os trabalhos de pesquisadores nos anos 1990, dá para perceber que a ênfase e a justificativa do que era proposto estava justamente em tentar ajudar o ser humano a sair da frente de um computador e ter interações mais profundas e interessantes em comunidade. Os “wearables computers” eram muito focados em notas, e seriam úteis, por exemplo, para médicos poderem olhar nos olhos de pacientes e não se distraírem tendo que fazer anotações em cadernos e computadores. Serviriam ainda para deixar os alunos livres para ouvir o professor e não atrapalhar a sala de aula com o barulho do teclado.

Dentro da ideia de dispor de mais tecnologia para ficar menos vidrado nela, há uma miríade de lançamentos atuais – que não são óculos e estão despertando reações calorosas nas redes sociais. Um deles é o polêmico Ai Pin, da empresa Humane, um objeto intrigante, que apareceu bem discretinho no look desfilado por Naomi Campbell no desfile da Coperni de verão 2024 (olha aí a moda de novo sendo chamada).

Ele é uma espécie de broche que você prende na roupa na altura do peito e, quando acionado, é capaz de projetar algumas informações na nossa própria mão, além de poder também ser ativado por voz. Criado por ex-funcionários da Apple, a imagem que ele passa é a de extensão do nosso próprio corpo – um recurso que pretende nos afastar de telas, mas que, em contrapartida, nos deixa conectados a elas 100% do tempo.

Ouço falar de wearables como a próxima tendência da tecnologia e da moda desde que comecei a cobrir o assunto, em 2014. De lá para cá, passei por algumas fases da “Long Nose Theory”, do Bill Buxton: fiquei curiosa, desacreditei que ela aconteceria, comecei a usar um smartwatch, virei o olho para os óculos de VR e me empolguei com a proposta de um pin que promete me deixar longe das telas (mas com bastante pé atrás pelo nível de coleta de dados que imagino que ele ficará apto a colher).

Apesar de serem muitas as novidades no setor nos últimos anos, ainda acho que as perguntas a serem respondidas por ele são as mesmas: o que estamos buscando? E o que perderemos nesse trajeto?

naomi pin

Máquinas/criaturas

Lá em cima, citei que a ideia de não mais precisar aprender outras línguas para me comunicar com qualquer pessoa do globo me atraía. Mas será que estudar idiomas não é um dos “encantos” da experiência humana? O Apple Vision Pro adora mostrar que, com ele, poderemos nos colocar em cima do Monte Everest, passear em uma floresta maravilhosa, ter experiências imersivas em paisagens que sempre aparecem imaculadas. Mas por que isso?

Em sua newsletter The Convivial Society, o crítico de tecnologia L. M. Sacasas abordou o assunto: “A preocupação mais urgente agora é se um crescente deslumbramento por dispositivos que capturam nossa atenção impede um apego afetivo ao mundo (e, como [a filósofa Jane] Bennett temia, nosso desejo de cuidar dele). Na medida em que nossos mundos virtuais são realidades feitas sob medida ostensivamente construídas para nós, será que eles também nos privam de uma experiência de um mundo comum, um que compartilhamos com outros, acentuando assim, em vez de aliviar, uma experiência de alienação e isolamento?”

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No livro Life is a miracle, publicado no ano 2000 pelo poeta Wendell Berry, a aposta era que a próxima grande divisão da sociedade seria entre “pessoas que querem viver como criaturas versus pessoas que querem viver como máquinas”.

Pessoalmente, não sei de que lado estou porque na maior parte do tempo penso que é melhor pararmos logo por aqui, ou mesmo voltarmos atrás para uma vida analógica. Mas também sinto que, na verdade, essa ânsia esconde o desejo de mudança. Uma inconformidade em acreditar que estamos há anos trabalhando de graça para enriquecer empresas do Vale do Silício com nosso tempo e atenção, enquanto enfrentamos todos os tipos de reveses físicos e psicológicos no caminho.

É por isso que também existem outros momentos, quando me questiono se já não chegamos a um ponto em que a melhor saída seria dobrar a aposta. Afinal, como apontou Donna Haraway em seu Manifesto ciborgue, será que já não estamos tão mesclados a máquinas que o desafio, na verdade, é entender como utilizar a tecnologia, fazer parte dela, conhecê-la profundamente a fim de criar formas coletivas de disseminar o conhecimento para, quem sabe, termos uma chance de propor usos capazes de mudar as estruturas sociais que nos aprisionam? São esses os pensamentos que têm sido mais frequentes por aqui, mas aguardemos os próximos capítulos (ou a próxima invenção nitidamente feita para nos deixar mais miseráveis, que por fim me fará tirar tudo da tomada de uma vez).