Tipo exportação?

No Brasil, o mercado de beleza tem se tornado mais diverso e versátil. Mas, para o mundo, o Brazil, com Z, ainda é terra de depilação minuciosa e corpos curvilíneos.

A beleza brasileira é assunto quente desde 1500. Na carta que Pero Vaz de Caminha manda para o rei, dom Manuel I, narrando a chegada dos portugueses ao país, em abril daquele ano, ele se mostra encantado pelas mulheres indígenas e chega a compará-las com as portuguesas: “Uma daquelas moças era toda tingida, de baixo acima daquela tintura; e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela”. 

A carta é tida como “certidão de nascimento” do Brasil. Mas, com essas palavras de Caminha, também surgia outra faceta do país: a de ser uma terra de pessoas felizes, saudáveis e, principalmente, bonitas. Pelo menos para os estrangeiros. Mais de 500 anos depois, o mundo todo quer ter a beleza brasileira. Nós nos tornamos referência quando o assunto é produtos e procedimentos estéticos e temos, no mercado internacional, uma série de procedimentos que nos citam: o Brazilian Butt Lift, Brazilian Wax (depilação brasileira) e a Brazilian Blowout (escova brasileira). Mesmo que, internamente, estejamos em um movimento para aceitar corpos diversos, cabelos naturais e pelos corporais, a imagem do Brazil com Z exportada para o exterior ainda é estritamente magra, curvilínea e com cabelos ondulados. 

“O mercado internacional percebe a beleza brasileira como emblemática de uma cultura que valoriza e prioriza a aparência física, a inovação nas práticas de beleza e a inclusão no acesso aos tratamentos estéticos”, diz Clarissa Câmara, estrategista e pesquisadora de tendências da consultoria Outsighter. “A cultura da beleza no Brasil é entendida como profundamente integrada à vida cotidiana, desde cedo na vida das mulheres, e está associada à confiança e à crença de que a beleza pode ser a chave para o sucesso e oportunidades.”

A verdade é que basta trazer o adjetivo “brasileiro” para que um procedimento estético ou um tipo de intervenção sejam considerados inovadores. “Eles enfatizam a abordagem brasileira à beleza, refletindo a reputação do país de ser pioneiro em técnicas e padrões estéticos”, fala a especialista. “O Brasil é reconhecido mundialmente por suas contribuições para a indústria da beleza, notadamente na cirurgia plástica, em que ocupa o posto de segundo maior consumidor mundial.”

Afinal, somos o país de Ivo Pitanguy, o “papa” das intervenções estéticas e que, supostamente, operou até mesmo Frank Sinatra e Sophia Loren. Foi ele, inclusive, que criou o Brazilian Butt Lift, procedimento que era um sucesso nacional, mas que se tornou mais popular no mundo após a ascensão de Kim Kardashian nas redes sociais. Falecido em 2016, Pitanguy colaborou para que brasileiros tivessem maior acesso a procedimentos estéticos e contribuiu para que tivéssemos uma abordagem mais naturalizada em relação a esse tipo de intervenção. “A compreensão internacional da beleza brasileira também destaca uma cultura que discute abertamente e se orgulha dos procedimentos cosméticos, contrastando com as atitudes mais secretas, vistas em outros países”, afirma Clarissa. 

Uma commodity 

Entre as décadas de 1960 a 80, a Embratur, agência internacional de promoção do turismo do Brasil, buscava atrair estrangeiros para o país. Para isso, mostrava, em suas peças publicitárias, o que tínhamos de melhor: o clima, as praias e as mulheres. Corpos torneados e bronzeados, com biquínis “brasileiros” (ou seja, pequenos), convidavam estrangeiros – em sua maioria homens – a visitar o país. Há quem diga que foi nessa época que surgiu a ideia de que a beleza da mulher brasileira seria uma importante commodity do Brasil. Mas a historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna, autora do livro História da beleza no Brasil (Editora Contexto), discorda. Para ela, o “mito da mulher brasileira” tem mais de cinco séculos.

“O olhar do homem europeu, principalmente o português, ao chegar ao Brasil e encontrar as mulheres nuas, ficou fascinado.” De acordo com Denise, a colonização foi um processo bastante violento, mas, no caso do Brasil, o discurso do colonizador também se misturava com a idealização da colônia como um lugar paradisíaco, onde não há sofrimento. “Lugar de mulheres ‘felizes’, ‘ao natural’ e ‘à vontade com seu corpo’. Até hoje, paira o mito de que as brasileiras vão fazer a felicidade dos homens. É muito mais do que uma questão estética. É a ideia da redenção, de um paraíso machista.” 

Assim, o mercado de beleza não criou nada de novo. Só se aproveitou de uma narrativa que já existia e revalorizou esse mito para vender produtos e procedimentos. “O interessante é perceber que, no Brasil, já evoluímos muito. Não estamos mais nessa. Aparecem outros tipos de beleza que alcançam alguma importância. O problema é o mundo, que é mais conservador, que manteve esse mito e revaloriza essa ideia para vender. Até hoje, você vai a uma loja de lingerie na França e há uma seção de calcinhas brasileiras. Não são apenas as brasileiras que as usam, mas eles usam esse adjetivo para criar um nicho em cima da narrativa da sensualidade do Brasil”, afirma Denise. 

Clarissa Câmara destaca que, se por um lado o ideal da beleza do Brasil pode ser interessante para marcas e empresas, ele também pode trazer dificuldades para as mulheres em sair desse estereótipo. “Essa fama no mercado internacional pode até gerar um tipo específico de empoderamento e algumas oportunidades de inserção em determinados circuitos. Ainda assim, também impõe pressões e desafios significativos relacionados à imagem corporal, à saúde e à diversidade da mulher brasileira”, diz a estrategista.

Ou seja, no fim das contas, sobra para a população feminina do país, que acaba tendo que lidar com o ônus de termos a nossa beleza entendida socialmente como uma commodity. “Não há nenhuma expectativa em relação à nossa inteligência, à nossa capacidade de escrever um livro, de desempenhar no teatro. Como a expectativa é a de aparência e sexo, se a mulher estudou, não importa. A brasileira não pode colocar no mercado essas outras capacidades, tal como uma sueca ou uma portuguesa. O mundo olha para a brasileira apenas como um corpo”, opina Denise. “Cria-se uma pressão estética. Você se torna prisioneira do mito, e por algo que é falso.”

O argumento é de que o Brasil tem capacidade para ser lembrado pelo mercado de beleza mais do que por seus bumbuns redondos e corpos sem pelos. “À medida que o mundo valoriza cada vez mais a diversidade de raça, tipo de corpo, gênero e idade, as marcas brasileiras têm a oportunidade de liderar pelo exemplo, expandindo a representação da beleza e desafiando definições estreitas e antigas”, diz Clarissa. “A sustentabilidade e as práticas éticas estão se tornando fatores críticos de tomada de decisão para os consumidores em todo o mundo. As marcas brasileiras estão numa posição única para inovar nesse espaço, utilizando a abundante biodiversidade do país para desenvolver produtos de beleza ecológicos e sustentáveis, por exemplo.”