Estranho, assustador, imoral, diferente. Esses adjetivos podem ser usados para descrever qualquer vilão de filmes de terror. E também são insultos que uma pessoa LGBTQIAP+ provavelmente teve que ouvir em algum momento da vida.
Quase sempre escondidos, seja na escuridão da noite, seja dentro de um caixão ou em um armário, usando máscara e disfarce para se misturar na multidão, certos personagens macabros ressoam de maneira diferente para alguns grupos minoritários. Afinal, assim como acontece na ficção, o resto do mundo já quis – ou, em alguns casos, ainda quer – exterminá-los.
“Nossa comunidade sempre teve que ser subversiva para existir, sobreviver e prosperar. Embora as coisas estejam se movendo na direção certa, o progresso é assustadoramente lento, e os esforços para vilanizar pessoas queer sempre reaparecem – e nenhum grupo entende isso melhor agora do que a comunidade trans. O horror, por sua vez, tem sido um gênero que oferece espaço para pessoas LGBTQIAP+ se enxergarem nas histórias, se identificarem e serem empoderadas pelo monstro ou pela mocinha que sobrevive no final”, explica Joe Vallese, escritor e professor associado à Universidade de Nova York.
“Os enredos desses filmes costumam ser simples e familiares, mas muitas vezes transbordam de subtexto e comentário social. Se alguém não está interessado em enxergá-los, pode simplesmente relaxar e curtir a adrenalina. Mas, se você for curioso – e acredito que muitas pessoas queer são, já que sempre tivemos que nos localizar na sociedade e na arte –, há muito a ser descoberto.”
Apaixonado por esse universo desde pequeno, Vallese (que tinha Freddy Krueger como seu amigo imaginário) decidiu compilar ensaios que ilustram essas reflexões no livro It came from the closet (um trocadilho com a expressão “come out of the closet”, ou seja, sair do armário), publicado em 2022. “É o livro que eu sempre quis ler, mas que ainda não existia. Há muitos trabalhos acadêmicos e críticos maravilhosos publicados, mas sonhei com um livro em que escritores da comunidade considerassem sua identidade e suas experiências através da lente de um longa de terror em específico. Queria que cada uma dessas histórias pudesse ser a favorita de alguém, e acho que conseguimos isso”, diz.
Em um dos 25 ensaios, o próprio editor compartilha a jornada traumática que enfrentou ao lado do marido para realizar o sonho de ser pai por meio de uma barriga de aluguel. “Isso nos foi vendido como um milagre da ciência e como um processo relativamente simples. Mas a realidade para nós foi algo muito mais sombrio. Nós nos vimos presos em um padrão de perda e ansiedade por meia década”, conta.
“Como escrevo na antologia, que considera nossa vivência em diálogo com um filme independente de 2009 chamado Grace (sobre uma mulher que amamenta seu bebê natimorto de volta à vida e depois descobre que a criança zumbi precisa de sangue, e não de leite, para sobreviver), a experiência alimentou nossas inseguranças e medos, pois nada mais lembra você de maneira tão agressiva da recusa da natureza em acomodar corpos queer do que tentar construir uma família juntos.”
Joe Vallese, editor do livro It came from the closet, publicado em 2022.
Ainda que historicamente o horror esteja marcado por exemplos misóginos, homofóbicos e transfóbicos, principalmente entre os anos 1930 e 1968, quando o Código Hays estava em vigor nos Estados Unidos, censurando qualquer tipo de representatividade mais direta, existe um resgate sendo feito por pessoas que são apaixonadas o suficiente pelo gênero para virar essas narrativas de cabeça para baixo e depois reivindicá-las como suas.
“Tem sido divertido ver certos filmes de terror mais antigos, como Psicose (1960) e Acampamento sinistro (1983), entrando para o cânone queer. Também acho que a reavaliação de Garota infernal (2009), que a autora Carmen Maria Machado aborda tão brilhantemente em seu texto para o livro, como um clássico contemporâneo LGBTQIAP+ e feminista, tem sido gratificante, já que o filme foi injustamente ignorado em seu lançamento. Acredito que muitas franquias com vilões extravagantes e espirituosos, como A hora do pesadelo, Hellraiser, Brinquedo assassino e O massacre da serra elétrica, acabaram inevitavelmente se tornando camp, então agora elas pertencem a nós”, pontua Vallese.
Outra forma de entender a ligação entre essas obras e os fãs é observar seus criadores ou o contexto em que estavam inseridas. Na literatura, três dos principais nomes que ajudaram o horror a se consolidar têm algum nível de proximidade com a comunidade. Mary Shelley, que escreveu Frankenstein (1818), era progressista e vivia cercada de pessoas que iam contra as normas impostas pela época. Além disso, ela confessou em cartas uma suposta atração por mulheres após a morte do marido. Oscar Wilde, autor de O retrato de Dorian Gray (1890), foi condenado e preso ao assumir que amava alguém do mesmo sexo. Bram Stoker, que era próximo de Wilde, publicou Drácula (1897) pouco depois da sentença do amigo. Posteriormente, foi descoberto que ele também trocava correspondências com outro homem, nas quais expressava seu desejo de ser livre.
Nas telonas, Alfred Hitchcock teve que driblar a censura em Rebecca, a mulher inesquecível (1940) e Festim diabólico (1948), dois filmes carregados com subtexto homoerótico, enquanto a adaptação do musical The rocky horror picture show (1975) abalou qualquer visão heteronormativa por meio do personagem Frank-N-Furter, um cientista maluco eternizado no cinema por Tim Curry (e depois por Laverne Cox, no remake de 2016). Nos anos 1980, foi a vez de A hora do pesadelo 2: a vingança de Freddy (1985) entregar o primeiro e único homem protagonista da franquia, vivido por Mark Patton, que grita e faz de tudo para reprimir o vilão dentro do seu próprio corpo – uma metáfora para a negação da sua orientação sexual, confirmada apenas anos mais tarde pelo roteirista.
Em exemplos mais recentes, a direção e o roteiro estão buscando ser cada vez mais diretos e empáticos na hora de abordar e representar minorias. É o caso da trilogia Rua do medo (2021), que coloca um casal lésbico no foco do enredo, Hellraiser (2022), que escalou a atriz trans Jamie Clayton para ser a nova versão do demônio sadomasoquista Pinhead, e I saw the TV glow (2024), dirigido por Jane Schoenbrun, cineasta não binário que explora temas sobre identidade de gênero na juventude.
Na TV, não é diferente, com destaque para as produções que Mike Flanagan tem feito para a Netflix; Chucky (2021-2023), criada por Don Mancini, que soube transformar o boneco possuído em arma contra a homofobia que ele sofreu no passado; Yellowjackets (2021), que acompanha um time de futebol feminino tentando sobreviver após um acidente de avião – mesmo que para isso elas tenham que comer umas às outras; e a versão seriada de Entrevista com o vampiro (2022), que tornou a relação entre os imortais Lestat e Louis ainda mais conturbada, sexy e gay do que o longa homônimo dos anos 1990, estrelado por Tom Cruise e Brad Pitt.
“Ainda não há representação LGBTQIAP+ suficiente no horror, mas se alguém tivesse dito ao meu eu adolescente que, no futuro, haveria personagens abertamente queer e trans em filmes e séries de terror e que eles não necessariamente teriam um destino horrível na história, ou seriam automaticamente o vilão, ou pior, serviriam como o alvo de uma piada homofóbica ou transfóbica, não sei se eu teria acreditado”, completa Vallese.
Susto à moda brasileira
Foi durante a pandemia que Luiz Machado, Alvaro de Souza e João Neto se conheceram pela internet e criaram juntos o Esqueletos no Armário, um podcast semanal, que completou cinco anos em outubro de 2024 e discute o terror sob uma perspectiva LGBTQIAP+.
“Não havia muitos espaços como esse antes. Anos atrás, as opções para quem queria falar de terror eram sempre as mesmas. Nossa ideia foi criar um projeto queer por necessidade de abordar esses temas da nossa maneira, e isso acolheu muitas pessoas. O público se identifica e tem uma relação muito carinhosa com o podcast”, diz Luiz Machado.
“O podcast abriu muitas portas, tanto pessoais quanto profissionais. Nossa intenção é que ele continue crescendo, não necessariamente em números, mas no fortalecimento das relações que estamos construindo com nossos ouvintes,” acrescenta João Neto.
Alvaro de Souza, João Neto e Luiz Machado, criadores do podcast Esqueletos no armário.
Alvaro de Souza também explica que o público em geral se identifica com dois arquétipos: o monstro, frequentemente marginalizado, e a final girl, que luta intensamente e sobrevive até o fim. “Em ambas as visões, há um forte sentimento de empoderamento,” diz ele.
Assim como o escritor Joe Vallese, os apresentadores acreditam que, apesar dos avanços e da quantidade de produções sendo realizadas nos últimos anos, o gênero ainda está longe de alcançar seu potencial, pelo medo dos estúdios de afastar a audiência conservadora ou simplesmente pela falta de interesse em temas relevantes à comunidade. No entanto, uma nova cena de artistas está ganhando força por abordar o terror e as questões ligadas à vivência LGBTQIAP+ de um jeito inovador e sensível.
“Lá fora, hoje, existem nomes como Jane Schoenbrun, cineasta não binário, e Yann Gonzalez, diretor de Faca no coração (2018). No Brasil, temos Juliana Rojas e Marco Dutra, de As boas maneiras (2017), e Matheus Marchetti, de Verão Fantasma (2022)”, ressalta Alvaro.
Matheus Marchetti, por exemplo, tem chamado a atenção por criar histórias focadas em personagens masculinos no espectro LGBTQIAP+, muitas vezes adaptadas de textos clássicos e tornando explícito o subtexto queer que estava presente na versão original. “Minha ideia é resgatar esses textos, que sempre foram queer em algum ponto, mas acabaram sendo cooptados por uma visão heteronormativa em outras adaptações para o cinema”, afirma o diretor.
Em contato com essa temática desde criança, quando frequentava locadoras e ficava encantado com as capas das fitas VHS na sessão de terror, Marchetti passou a se identificar com os filmes de monstros porque no fundo eles tinham sentimentos humanos e eram perseguidos por serem diferentes. “O horror me atraiu pela sua transgressão e me conquistou como um espaço em que eu podia encarar meus medos de maneira catártica, se transformando em uma espécie de refúgio para mim”, relembra.
Na adolescência, ele se apaixonou pelos filmes de vampiras lésbicas dos anos 1960 e 70, especialmente Rosas de sangue (1960). “Eu me identificava com aquelas mulheres atormentadas, que sentiam culpa por sua natureza monstruosa — e isso reverberava em mim, que ainda estava no armário aos 14 anos. Em 2017, decidi fazer meu próprio filme de vampiros, O bosque dos sonâmbulos, sobre dois garotos que precisam abraçar sua monstruosidade para ficarem juntos. Foi uma maneira de contar minha própria história, homenageando os filmes que me fizeram abraçar quem eu sou.”
O cineasta Matheus Marchetti.
Com seis longas no currículo e um sétimo em produção (todos realizados independentemente e com apoio de amigos, que colaboram no set e atuam), Marchetti está trabalhando em Labirinto dos garotos perdidos, previsto para estrear em 2025. Descrito por ele como uma mistura de Alice no País das Maravilhas (1865) com Cruising (1980), a trama acompanha um jovem tímido, que tenta perder a virgindade na cidade grande enquanto um serial killer ameaça a comunidade gay local. “É um conto de fadas urbano sem exatamente uma mensagem, até porque não gosto de martelar nenhuma moral em cima do público. Muito pelo contrário.”
Mesmo sem ter furado a bolha, o diretor se sente acolhido pela comunidade brasileira de fãs de terror. “Percebo que esse gênero celebra a diversidade mais do que qualquer outro, pois é justamente nesse espaço que as pessoas que já se sentiram esquisitas e diferente da maioria encontram a identificação.”