Vinte anos atrás, questionar o reinado da televisão talvez fosse considerado heresia. Hoje, é difícil encontrar um veículo de comunicação que não tenha ainda decretado a “morte da TV”, acelerada pela força disruptiva das redes sociais. Há indicadores que amparam essa argumentação: a Geração Z dedica uma pequena fração de seu tempo à TV tradicional, enquanto investe quase duas horas por dia no TikTok, frequentemente preferindo a plataforma chinesa a qualquer outra forma de entretenimento audiovisual. “A televisão não conversa mais com os jovens”, “a TV precisa se reinventar”, “o celular virou a primeira tela” são manchetes que ecoam por aí, anunciando a suposta obsolescência de uma das maiores forças culturais do nosso tempo. Não por acaso, o CEO da Netflix declarou em 2020 que seu verdadeiro rival não era a HBO e a Disney, mas o TikTok e o YouTube.
Será mesmo que estamos presenciando o fim de uma era, com a programação televisiva sendo substituída pelo “caos criativo” do TikTok? Eu tenho uma sensação diferente, que nasceu como uma piada entre amigos, mas que vejo se fortalecer a cada novo scroll: o TikTok, na verdade, não representa um rompimento com a televisão. Ele é, cada vez mais, a sua réplica.
No começo, havia as dancinhas, as dublagens, as costuras. Formatos de fato únicos e digitais, que fizeram a fama da plataforma. Mas o perfil foi mudando com a chegada de mais pessoas em busca da atenção promovida por um algoritmo que parecia trabalhar a favor do criador, e não contra. De repente, uma proliferação de entrevistas de rua — sobre trabalho, música, dinheiro, política —, que não consigo tirar da cabeça, que é um grande “povo fala” repaginado. Às vezes, uma ou outra pergunta ousada pode dar a impressão de inovação, mas, essencialmente, o formato pouco se desvia do tradicional recurso do telejornalismo que recorre à opinião popular para aproximar as reportagens do dia a dia da população. Acho engraçado pensar que essa seja uma das maiores tendências do TikTok, adotada por influenciadores e marcas de todos os tamanhos e setores como uma estratégia de conteúdo inovadora.
“O TikTok, na verdade, não representa um rompimento com a televisão. Ele é, cada vez mais, a sua réplica.”
Depois que me dei conta disso, foi como se uma cortina caísse e passei a fazer um jogo mental de ligar os pontos todas as vezes em que abria minha For You. Acompanhe comigo: Gabb assume abertamente sua inspiração no Fashion Police da época de Joan Rivers. O projeto Faxina Milgrau, de Ellen Milgrau, remete à série documental Acumuladores compulsivos, lançada pela A&E, em 2009. Quando influenciadoras de moda querem expandir seu conteúdo, frequentemente criam quadros imitando talk shows ou revelando a intimidade de celebridades, algo na linha do Estrelas, da Globo. Creators de gastronomia, conforme ganham notoriedade, passam a convidar outros para participar de seus vídeos, transformando-os em programas de bate-papo à la Ana Maria Braga. Há ainda pegadinhas no melhor estilo Silvio Santos, esquetes de humor que remetem ao Zorra total e perfis que colecionam videocassetadas do Faustão. Comece a olhar a sua página inicial dessa forma e prometo que você não vai mais conseguir desver.
Alguns foram ainda mais longe, como a Hype House, que durante três anos, inspirada diretamente no primeiro reality show da MTV, The real world (1992), reuniu TikTokers em ascensão em uma mansão para viverem juntos e criarem conteúdo de sua vida. Também não dá para deixar de fora os cortes de transmissões esportivas que inundam a rede — em 2023, os três perfis mais populares da plataforma foram Barstool Sports, ESPN e House of Highlights. Em resumo, parece que o TikTok já é uma grande programação de TV, só que agora o controle remoto é o dedo na tela, deslizando a poucos centímetros dos olhos.
Um exemplo que segue à risca essa ideia é Adam Faze, criador da produtora Gymnasium, e reconhecido por sua habilidade de criar programas originais curtos, filmados na vertical, que atraem milhões de visualizações no TikTok, como Keep the meter running e Clockwork dynasty. Para qualquer um que queira replicar o seu sucesso, o conselho do produtor é o seguinte: “Trate os seus canais de vídeo como se fosse a televisão”. Faze acredita que é preciso apostar em formatos replicáveis, com personagens e episódios. E isso vale não apenas para os criadores individuais, mas também para as marcas, que ele enxerga como as novas emissoras de TV.
Essa abordagem vem de sua experiência de uma década trabalhando em Hollywood e de suas próprias observações sobre as mudanças nos hábitos de consumo. De acordo com Faze, não há por que não recorrer a formatos “evergreen” que já foram testados e comprovados para alcançar uma nova geração de espectadores, que, embora já não fique mais na frente de um televisor, consome muito conteúdo no celular. Não por acaso, sua mais nova aposta é o programa Boy room, em que quartos de garotos bagunçados são examinados, uma clara referência a Room raiders, da MTV.
“Há algo de novo e disruptivo nesse modelo, uma pessoa sozinha no banheiro de sua casa contando a sua história. Mas também há muito da herança da TV tradicional.”
Interessante notar também o retorno do apelo da TV diante do cansaço que o streaming vem causando: escolher algo na Netflix, por exemplo, pode ser tão exaustivo que ver o que já está passando em algum canal acaba parecendo uma opção atraente. Isso também nos ajuda a entender a popularidade do TikTok, que, diferentemente do começo do YouTube e do Instagram, desde o princípio entrega uma variedade quase infinita de conteúdos de perfis conhecidos ou desconhecidos sem que seja preciso clicar para assistir ou se inscrever em qualquer canal, capturando nossa atenção justamente porque na maior parte do tempo não sabemos o que queremos ver.
O que me leva a outro fenômeno intrigante que venho acompanhando: a prática de assistir a filmes ou séries (quase) inteiros no TikTok, em clipes curtos e com botões de “próximo”. Parece contraintuitivo e até pouco prático, mas faz sentido: é grátis (pelo menos até ser derrubado), aparece direto na sua tela, você não perde 25 minutos escolhendo e ainda é possível pular as partes sem ação (é claro que isso é bem discutível em termos de qualidade). Quem sobe os clipes normalmente são fãs, mas algumas companhias já estão atentas ao movimento. À parte as que disponibilizam clipes de seus programas com legendas e corte vertical, o que já virou comum, há quem esteja indo além, como a Paramount Pictures que disponibilizou o filme completo de Meninas malvadas para os espectadores por um dia no ano passado (em 23 partes).
Energia de protagonista
Para quem já teve a vontade ou pelo menos a curiosidade de participar da economia da atenção das redes sociais, é inegável que o TikTok despertou (e de certa forma permitiu) ainda mais o desejo de se enxergar na pele de uma personagem como Carrie Bradshaw, ela mesma narradora da própria vida. Com isso, uma nova camada na simbiose entre a plataforma e a televisão se revela: a linguagem dos roteiros e arcos narrativos, com expressões como “eventos canônicos”, “nesta temporada da minha vida” e “energia de protagonista” têm se tornando parte do vocabulário tanto dos novos criadores quanto do público nos comentários.
Muitas vezes, esses vídeos – vlogs ou relatos pessoais enquanto alguém arruma o cabelo – funcionam como “reality shows caseiros”, produzidos a custo zero, mas que se tornam fenômenos de visualização e monetização. Diferentemente de outras redes sociais, em que era fundamental conquistar seguidores, criar thumbs atraentes e manter um feed visualmente bonito — o que gerava uma barreira de entrada maior —, no TikTok os criadores sabem que sempre haverá alguém assistindo. Com isso, se o conteúdo tiver o potencial de prender a atenção, exigir horas de dedicação do público em uma “odisseia” de vídeos pode ser uma vantagem, quase como uma série de várias temporadas, em que o tempo de engajamento vira um benefício, e não um problema. Um exemplo é a história viral de Tareasa Johnson, lançada no início do ano e intitulada “Who TF Did I Marry?”. Com 50 partes, a série alcançou impressionantes 335 milhões de visualizações.
Há algo de novo e disruptivo nesse modelo, uma pessoa sozinha no banheiro de sua casa contando a sua história. Mas também há muito da herança da TV tradicional. Não à toa, uma adaptação da história de Tareasa para a telinha já foi confirmada, com a atriz Natasha Rothwell produzindo e estrelando a produção.
A TV no TikTok ou o TikTok na TV?
Apesar de abraçarem o digital, parece que, quanto mais sucesso fazem, mais os criadores aumentam a produção, deixam os celulares de lado para investir em câmeras profissionais e buscam a confirmação de seu êxito online em um convite para participar de (ou, se possível, estrelar) um programa de televisão. É como se o TikTok fosse apenas uma etapa — um trampolim.
O que sinto que veremos em breve são os canais de TV disponibilizando cada vez mais seus programas inteiros no TikTok, enquanto as estrelas nativas da plataforma miram o estrelato na televisão. No fim, ambas as mídias devem convergir para uma única forma híbrida e achatada. É que, se no passado havia o receio de que a TV reduziria a qualidade da produção cultural em relação ao cinema, o TikTok definitivamente intensifica essa questão, apresentando formatos reconhecíveis/confortáveis para nos alimentar com doses rápidas e viciantes de entretenimento ultrassimplificado.
A mídia tradicional sempre teve guardiões — o editor, o chefe de rede, profissionais que decidem quais vozes e rostos estarão em destaque. No TikTok, qualquer pessoa pode contar sua história, o que aumenta o senso de identificação com o público. A ironia é que muitos usuários se veem fugindo da “TV dos executivos” e consumindo “gente de verdade”, sem perceber que o próprio TikTok está replicando esse poder. Aos poucos, a plataforma se torna o gigante que prometeu superar.
O cerne da questão é que, diferentemente dos apresentadores de TV que diziam “fique conosco, não troque de canal”, o TikTok não precisa pedir: seu algoritmo faz o trabalho de manter o usuário preso, oferecendo conteúdos cada vez mais extremos, segmentados e polarizadores. No fim, a falta de experiências compartilhadas, somada ao isolamento informacional e à manipulação algorítmica, cria um cenário confuso e perigoso, em que é difícil encontrar pontos de convergência que, bem ou mal, eram oferecidos quando todos assistiam à mesma televisão.