Foi só no mês passado que Blake Lively voltou ao Instagram, após dois meses de uma tempestade midiática. Tudo começou em agosto. Na estreia do seu novo filme, É assim que acaba, sobre a violência doméstica, a atriz incentivou o público a ir ao cinema vestindo roupas florais e, nas entrevistas sobre o longa, evitou o tema central, aproveitando o momento para lançar uma linha de produtos para o cabelo. Logo foi acusada de romantizar o abuso. Em meio a notícias de bastidores de que ela e o seu colega de cena e diretor do filme, Justin Baldoni, não se davam bem, a crise subiu um degrau quando a atriz virou também alvo de fofocas sobre a sua suposta antipatia com funcionários. A cereja do bolo foi a viralização de um vídeo de uma entrevista sua em 2016 em que dá respostas ríspidas à jornalista com quem conversa.
Blake, que ficou famosa por sua atuação na série Gossip girl, é só o mais recente alvo da “cultura do cancelamento” nos Estados Unidos, país ao qual é atribuído o epicentro desse movimento de julgar e responsabilizar via redes sociais pessoas e marcas por falas e comportamentos supostamente equivocados, fazendo pressão para que sejam punidas financeira ou judicialmente, sofrendo boicotes ou a perda de contratos.
O Brasil também tem seus casos emblemáticos, por vezes proporcionados pela participação de celebridades em reality shows como o Big Brother Brasil. Impossível não se lembrar imediatamente de Karol Conká, eliminada da edição de 2021 do programa com uma rejeição recorde (99,17%).
Diante da contundência, a rapper tomou um caminho diferente ao da maioria dos famosos que se veem cancelados. Em vez de se recolher para esperar a poeira baixar, falou abertamente sobre o assunto, o que rendeu o documentário A vida depois do tombo (2021, Globoplay).
Um ano depois, relembrou o momento em entrevista à ELLE: “Assim como exagerei nas minhas atitudes, pessoas aqui fora também exageram no cancelamento. Percebi que quem mais sofreu com essa cultura, com essa moda, fui eu, pelo impacto que foi gerado com o meu nome e com os memes. O cancelamento foi real”.
Das bruxas ao MeToo
O cancelamento em seu modus operandi de linchamento virtual e seu status de cultura é creditado a um desdobramento do movimento MeToo nos EUA, popularizado em 2017, quando, entre milhares de relatos de abuso sexual no então Twitter, o megaprodutor de Hollywood Harvey Weinstein foi acusado de assédio por mais de 70 mulheres, o que incluiu várias atrizes, e acabou levado ao tribunal.
A dinâmica da mobilização justificada pela relevância do tema naquele momento, então, passaria a ser replicada posteriormente nas mais diversas situações para julgamentos via internet. Mas a prática de condenar publicamente alguém por atitudes reprováveis, no entanto, não nasceu com o episódio. “Se a gente for pensar no histórico da humanidade, há outros jeitos de cancelamento muito mais violentos, digamos assim. A gente pode lembrar, por exemplo, de pessoas que não se adequaram ao comportamento julgado correto no processo da Inquisição relacionados às bruxas”, avalia Maria Fernanda Moro Barbieri, psiquiatra e professora voluntária da PUC-SP. “O cancelamento sempre esteve presente na sociedade, mas com as redes sociais isso ficou mais em evidência porque a gente consegue ter acesso a esse julgamento, a quem errou. O movimento MeToo foi muito forte e deixou isso bem à mostra quando começou a expor casos. Não acho que o cancelamento nasceu ali, mas foi quando de fato migrou para esse formato”, completa.
“O cancelamento sempre esteve presente na sociedade, mas com as redes sociais isso ficou mais em evidência porque a gente consegue ter acesso a esse julgamento, a quem errou.”
Maria Fernanda Moro Barbieri
Nos últimos anos, a chance de observar as 24 horas do dia de alguém em situações limite de um reality show – numa longa competição que testa a resistência e convivendo em confinamento com desconhecidos, tendo que racionar comida ou em festas regadas a álcool – é um banquete para o tribunal da internet.
A influência dos fandoms
A própria dinâmica das redes acaba por ser um ambiente que propicia manifestações dessa natureza, avalia Flávio Santos, autor do livro Economia da influência (2022) e CEO da MField (especializada em marketing de influência e que conecta influenciadores e marcas). “Em alguns momentos, a internet acaba sendo uma propulsora ou aceleradora de movimentos coordenados, tanto positivos quanto negativos. Os positivos formam brand lovers (fãs de marcas), pessoas que constroem a base de fãs, os fandoms, e os negativos entram nesse formato de cultura de cancelamento.
Orlando Nascimento tem no seu currículo de gestor de crise – profissão que parece ter ganhado protagonismo na mesma proporção do cancelamento – inúmeros casos que ganharam a atenção midiática na última década (e que por questões contratuais não pode comentar). Para ele, os fandoms hoje têm impacto determinante nos rumos de um cancelamento. “Às vezes, entre artistas, um fala algo do outro e a fanbase de um já vai lá destruir a do outro. Ou um não cumprimenta o outro numa premiação e a fanbase já dá um show na timeline. A gente vê casos em que faz sentido todo o movimento e outros em que realmente é uma fanbase engajada. O artista pode estar fazendo o que for que ela não deixa de apoiá-lo. Fica em cima, quase chata. Acha que o ídolo nunca está errado.”
“Não vou dizer que os fandoms são uma coisa negativa. Muito pelo contrário, eles são um exemplo de movimentação social, de como é possível se mobilizar no ambiente digital. Mas eles podem usar isso para tudo, para engajar um trabalho e também para o hate.”
Orlando Nascimento
Ou seja, em alguns grupos, basta um comando, por vezes baseado em uma notícia falsa, para amplificar uma mensagem ou “levantar hate” (xingar alguém) em ataques coordenados, sem que a veracidade da informação seja checada. “Não vou dizer que os fandoms são uma coisa negativa. Muito pelo contrário, eles são um exemplo de movimentação social, de como é possível se mobilizar no ambiente digital. Mas eles podem usar isso para tudo, para engajar um trabalho e também para o hate. Já vi muitas situações de artistas com medo do próprio fandom, quase perdendo o controle pelo fato de eles fazerem coisas por si só, atacarem outro grupo ou outro artista”, avalia.
Em julho, no lançamento da Boca Rosa, Bianca Andrade precisou lidar, se não com um cancelamento, com uma onda de reclamações de consumidoras via redes sociais sobre a qualidade de algumas embalagens de sua marca de cosméticos. Sem medo de ser cancelada, afirma, escutou as críticas para reavaliar processos. “Tivemos 3% de falhas, que fizeram com que a gente escolhesse voltar alguns passos. Ouvir o público é a chave para criar um relacionamento de confiança com o consumidor, e disso não abro mão”, diz. “Tem uma frase que minha mãe fala que mexe muito comigo: ‘Não tenho medo de ser cancelada, tenho medo das pessoas estarem certas’. Então, é sempre importante a gente ouvir as críticas e entender se elas fazem sentido. Se sim, temos que fazer o possível para melhorar. Se não fazem, percebo que são só comentários de ódio gratuito – o famoso hate, que entendo que dizem mais sobre quem falou do que sobre mim.”
Canceladores profissionais
Entre os canceladores usuais, Nascimento vê também outros dois grupos: um deles parece ser “profissional” do ramo do cancelamento, embora paradoxalmente são pessoas que têm em comum o fato de não parecerem ativas nas redes sociais, explica. “Elas não postam as próprias fotos ou compartilham suas vidas online. São pessoas que assistem o movimento da rede social, muito para criar hate. Pode ser um post de política, cultura, esporte, ela vai xingar. Gente que não engaja (acrescenta) nada. Se você vê o perfil da pessoa, ela não segue nada, não gosta de nada. É um perfil só para ela ver o que está passando no mundo e deixar lá uma raiva usando essa máscara que a internet dá, de xingar muito e provavelmente nada acontecer.” O segundo grupo, segundo ele, são os internautas “reais”, com vidas “reais” no mundo virtual. “São pessoas que, quando veem uma situação de crise real, participam da discussão, mas têm uma vida digital ‘saudável’. Elas não ficam só criticando. Naquele momento, elas reclamaram para demonstrar ali o que consideraram a insensatez da outra pessoa.”
Se por vezes pessoas públicas ou marcas acabam por se posicionar de maneira insensata sobre temas sensíveis, esbarrando em racismo, machismo ou homofobia, julgamos com prazer, afirma Maria Fernanda, por mais que apontar o erro soe quase como fazer justiça social. “As pessoas falam que o amor nos une, mas o ódio parece unir mais. Essa coisa meio sádica é da nossa natureza, meio animal. E não é de hoje que o ser humano gosta de tragédia. A gente não vê mais alguém sendo enforcado em praça pública. Olha a pena de morte nos Estados Unidos, que até pouco tempo atrás era tratada como um espetáculo. E o ser humano gosta disso.”
Para a psiquiatra, outro sentimento também pode estar atrelado ao gosto pelo cancelamento. “Embora seja normal e muito condenada, a inveja é um sentimento que todo mundo tem. A gente quer estar no lugar do outro. Antigamente a gente não tinha muito como ficar olhando o jardim do nosso vizinho. Só se a gente subisse no muro. Hoje em dia, a gente consegue ver tudo, de todo mundo, o tempo todo, e obviamente a pessoa que tem uma vida muito boa do ponto de vista financeiro, principalmente, vai despertar os olhares”, analisa.
Quinze minutos de cancelamento
Nesse contexto, a possibilidade de um cancelamento é contabilizada quando se pensa na exposição de uma marca ou artista em uma campanha. “A gente tem um cuidado muito grande de fazer um disaster check (avaliação do impacto daquela ação) para entender quais são os riscos, as eventuais polêmicas ou os problemas que esses influenciadores já enfrentaram. E qual é o risco que a marca tem de se associar ou ele de ter a imagem emprestada para aquele produto, para aquele serviço”, conta Santos. “Com isso, de certa forma, a gente mitiga, tenta evitar maiores problemas, mas a creator economy (o ecossistema econômico dos criadores de conteúdo) é um organismo vivo. Os influenciadores que hoje estão com um disaster check positivo podem se envolver numa polêmica futura. As marcas podem se posicionar com uma questão adversa a algo em que a sua comunidade acredita”, opina. Até porque, Santos lembra, a comunicação é 100% humana. “CNPJs também são feitos por CPFs, e os influenciadores são pessoas físicas. A gente tem, sim, o risco de em algum momento eles mencionarem alguma coisa que não agrade à comunidade, o que não justifica obviamente esses movimentos coordenados.”
Há quem defenda que a máxima atribuída a Andy Warhol na década de 1960, de que no futuro todos teriam seus 15 minutos de fama, nos anos 2020 se tornou “todos terão seus 15 minutos de cancelamento”. A prática se tornou uma questão de tempo para os 20 milhões de pessoas que se declaram influenciadoras no Brasil, segundo dados da YouPix, com movimentos coordenados de fanbases e a possibilidade de que alguém em algum momento faça ou diga uma bobagem digna de críticas? “Não acho. Em algum momento, a comunidade pode questionar esses diálogos, mas a melhor maneira de se restabelecer na crise é entrar na discussão, ser assertivo no ponto de vista de que estamos abertos a conversar. ‘Se errei, quero aprender’, ‘se não agradou, peço desculpas’. Se essa comunidade não está de acordo, como a gente pode se juntar e dar as mãos? Quanto maior a audiência, maior o risco de uma comunicação ter falhas e gerar controvérsias, mas daí a ser cancelado é um oceano azul de possibilidades que acredito que não seja o caminho para todos”, diz Santos.
“Acho que o cancelamento é, sim, uma possibilidade para qualquer pessoa pública.”
Bianca Andrade
Bianca concorda em partes: “Acho que o cancelamento é, sim, uma possibilidade para qualquer pessoa pública. Somos observados, julgados e algumas vezes mal interpretados. Mas, justamente por isso, precisamos ser ainda mais responsáveis e cuidadosos com nossas opiniões, falas e ações. Sempre brinco que gosto de errar coisas diferentes, porque quando erramos, temos que entender o que aconteceu, consertar e não repetir”, diz. “Para mim, o jeito com que a gente lida com o cancelamento é o que define de verdade a nossa trajetória. É super importante dar um passo para trás, observar o cenário e entender o que de fato dá para melhorar e o que é onda de ódio. As pessoas podem errar, aprender e se reinventar. E faz toda a diferença a forma como você lida com a sua responsabilidade.”
Para Nascimento, além de se cercar de profissionais que possam ajudar a prever cenários, figuras públicas devem contar com o próprio bom senso como um aliado importante para evitar crises. Mas, uma vez que ela se instala, é hora de resolver o problema de forma transparente, e não só pedir desculpas. “Já virou meme aquele discurso de quem, de camiseta branca, sem maquiagem, faz um vídeo e fala ‘desculpa a quem se sentiu ofendido, estou aprendendo’. Não dá para ficar pedindo três desculpas por ano na rede social, fechando o perfil e achando que, depois de uma semana, você abre e está tudo certo.”
Fotos: Rede Globo e Getty Images