O dia 30 de setembro de 2015 marca o início de uma nova era no mundo da beleza. Na data em questão, Kylie Jenner lançou oficialmente sua marca de maquiagens, a Kylie Cosmetics – e o sucesso da influenciadora, agora empresária bilionária, fez com que outras personalidades vissem no segmento a oportunidade de ganhar dinheiro. Nos anos seguintes, com outras empreitadas ainda mais bem-sucedidas, como a Fenty Beauty, de Rihanna, e a Rare Beauty, de Selena Gomez, a categoria “marca de celebridade” foi atualizada e potencializada. Um levantamento feito pela revista The Cut revelou que, até 2022, já havia mais de 60 delas lançadas só nos Estados Unidos. São cantores, atores, apresentadores, atletas e modelos investindo em maquiagem, skincare e produtos para o cabelo – mesmo sem nenhum envolvimento prévio com o assunto.
No Brasil, o movimento aconteceu de forma um pouco diferente. em vez de grandes figuras do entretenimento, quem está à frente da maioria das marcas são influenciadoras que já produziam conteúdo sobre beleza – seguindo o exemplo das estadunidenses Glossier, de Emily Weiss, e Huda Beauty, de Huda Kattan. Bianca Andrade, Bruna Tavares, Julia Petit, Mari Maria, Mariana Saad, Vic Ceridono, Niina Secrets, Rosângela Silva, Camila Coutinho, Franciny Ehlke e Karen Bachini são nomes à frente de marcas de beleza lançadas por aqui desde 2016, algumas de forma independente e outras em parceria com grandes empresas de cosméticos.
Ainda que sejam bastante diferentes entre si – tanto em formato de negócio quanto em portfólio e público –, o que essas marcas têm em comum é a atenção do público. Do ponto de vista de um negócio, a vantagem competitiva é gigante: é como se elas já nascessem com uma comunidade disposta a, no mínimo, falar sobre os produtos – algo que uma empresa comum pode demorar anos para conquistar. Não à toa, as marcas de beleza mais comentadas no Brasil hoje em dia são justamente as de influenciadoras.
A atenção, contudo, é uma faca de dois gumes – especialmente na era digital. Se por um lado o lançamento da Mascavo, da influenciadora Mariana Saad, era um dos mais aguardados dos últimos tempos, visto que sua linha anterior com a Océane foi uma experiência de absoluto sucesso, ele foi também um dos mais criticados. Em outubro deste ano, ela divulgou seus novos produtos, que incluíam um bronzer e um contorno. Ambos estavam disponíveis em apenas duas cores – nenhuma delas adequada para peles negras. A internet, com razão, não deixou barato e a empresária precisou vir a público responder às alegações de racismo.
Mascavo de Mariana Saad Foto: Reprodução/@mascavo
Outro exemplo dessa dicotomia aconteceu em 2019, quando as redes sociais foram inundadas por postagens criticando o mau funcionamento da base da Boca Rosa Beauty, marca da criadora de conteúdo Bianca Andrade, que precisou fazer um recall e repensar o produto em um novo formato. O problema de embalagem se repetiu mais uma vez este ano com os primeiros produtos do relançamento da marca após a separação da Payot, empresa que era responsável pela sua produção e distribuição. As expectativas pelo novo momento de Boca Rosa eram enormes, então, quando alguns dos sticks lançados deram problema, a internet não perdoou e centenas de vídeos reagindo às falhas viralizaram.
Boca Rosa de Bianca Andrade Foto: Reprodução/@bocarosabeauty
Algo similar aconteceu com a base da We Pink, da influenciadora Virgínia Fonseca, lançada em 2023. As primeiras críticas que começaram a surgir nas redes sociais diziam respeito principalmente ao alto preço (200 reais), em comparação com a baixa performance. Um dos vídeos que mais viralizaram na época foi o da influenciadora Karen Bachini, que chegou a mais de 5 milhões de visualizações no YouTube – a título de comparação, a média do canal é de cerca de 150 mil para os conteúdos de maquiagem. O alto engajamento desses primeiros conteúdos fez com que cada vez mais pessoas começassem a falar mal do produto – um verdadeiro efeito avalanche. Alguns criadores de conteúdo, inclusive, admitiram que sabiam que o produto não era bom, mas que comprariam mesmo assim só para poder fazer parte do viral e se beneficiar desses números.
WePink de Virgínia Fonsceca Foto: Reprodução/@wepink.br
Em entrevista ao Volume 02 da ELLE Beauté, Bianca confessa que uma das coisas mais difíceis do seu trabalho é separar os comentários das redes sociais entre o que é crítica legítima, que deve ser levada em consideração, e o que é barulho por engajamento. “Tudo o que é negativo chama mais a atenção e isso também se aplica ao conteúdo de internet: existe um incentivo para falar mal. E isso não necessariamente significa que o produto é ruim, nem que a pessoa que fez a crítica vai deixar de usá-lo”, opina. Ela ainda afirma que grandes empresas de cosméticos usam exatamente a mesma embalagem “cancelada” que a dela, mas que nunca se tornam alvo de hate. “Hoje entendo que, para mim, a régua sempre vai ser mais alta”, afirma.
Tanto no caso da Virgínia quanto no da Bianca, apesar de boa parte das críticas ser acertada, o tipo de conteúdo que ganha destaque beira o sensacionalismo: pessoas aplicando enormes quantidades de base na pele, jogando demaquilante no rosto só para o produto escorrer e forçando a embalagem até ela quebrar. Na edição 26 da ELLE View, na matéria “Truque por view”, o editor de beleza Pedro Camargo faz uma reflexão que cabe perfeitamente aqui: o quanto vale “forçar a barra”, e até mesmo mentir, por likes e views na comunidade digital de beleza?
Pode, sim, colocar na conta do algoritmo, que fez com que a internet se tornasse um verdadeiro ringue, onde o absurdo é o espetáculo, e o prêmio, o engajamento. É exatamente o que teorizou o economista, psicólogo e cientista social Herbert Simon quando cunhou o termo “economia da atenção”, que se refere a como a atenção humana é capitalizada como mercadoria e disputada entre empresas, criadores de conteúdo e plataformas digitais. O pensamento é: com a quantidade enorme de informações disponíveis, como eu posso me destacar? O caminho, infelizmente, por vezes, está na distorção de fatos para que eles se tornem mais impactantes, apelando para a reação exagerada, emocional, de quem está do outro lado.
No caso das marcas de influenciadoras, isso ganha proporções ainda maiores, visto que quem está do outro lado é uma figura pública, o que gera ainda mais interesse por parte da audiência. E, quando a quantidade de publicações cresce e viraliza, quem é alvo se sente na obrigação de se posicionar – respondendo ou pedindo desculpas –, o que aumenta a atenção para o assunto e leva ainda mais views para os conteúdos de crítica. É um ciclo que se retroalimenta.
Esse cenário coloca em xeque uma das principais características que fizeram com que a criação de conteúdo na internet, especialmente a de beleza, se tornasse tão relevante: as resenhas sinceras de marcas e produtos. A primeira geração de criadores de conteúdo na internet, na época conhecidas apenas como “blogueiras”, foram responsáveis por quebrar a comunicação verticalizada produzida pela mídia tradicional, democratizando a informação e tornando-a mais pessoal. Mas esses, que eram pontos positivos, são justamente o que tem facilitado a disseminação de fake news.
O preço maior quem paga, acredite, não são as influenciadoras, que, apesar de serem o alvo das críticas, também ganham com a repercussão – não à toa, a Virgínia faturou 325 milhões de reais com a We Pink só em 2023, quando o conteúdo sobre a sua base dominava a internet. No fim das contas, os mais afetados são os consumidores, que são constantemente direcionados de acordo com o humor das redes sociais, tornando suas compras cada vez menos críticas e conscientes.