Como fazer batida de cachaça old school

Sucesso nos anos 70, o aperitivo retorna em versões que recuperam o preparo tradicional, sem leite condensado.


batida de caju
Batida de caju de Rogério Rabbit. Foto: Divulgação



Quem não é dos dulçores extremos talvez já tenha passado perrengue chique num quiosque de praia. Que coquetel escolher, quando qualquer batida chega saturada de leite condensado e se à beira-mar não tem Fitzgerald ou Basil Smash? Partir para a Caipirinha? Melhor deixar bem claro suas preferências, caso você goste de pouco açúcar – ou melhor, de uma receita equilibrada.

Nem sempre foi assim. A batida, hoje empurrada para a categoria da “baixa coquetelaria”, já teve seus dias de glória. Obviamente não levava leite condensado em sua origem, que é difícil de identificar, mas presumível. Num país que sempre produziu cachaça, açúcar e frutas aos borbotões, é natural que alguém tenha tido, logo cedo, a feliz ideia de unir os três elementos.

Roberto Costa, no livro Traçado Geral das Batidas, de 1974, define a bebida: “Aperitivo gelado, feito basicamente com cachaça, açúcar, frutas, sucos ou essências e gelo. Batido com batedeiras manuais ou liquidificadores. O mesmo que bate-bate ou colete”.

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O mixologista Rogério Rabbit, ao abrir um quiosque de batidas e caipirinhas na Praia do Gonzaga, em Santos, decidiu voltar ao passado. Prepara batidas sem leite condensado, à moda old school, e confessa que, no começo, teve receio de que o público viciado em leite condensado virasse a cara. “Algumas pessoas acham estranho não ter leite condensado e perguntam a razão. Respondo, gentilmente: ‘Se você não gostar, pode devolver’. Até hoje não voltou uma”, conta, confiante.

A treta do leite condensado na coquetelaria

A discussão sobre o uso do leite condensado na coquetelaria é treta certa entre bartenders. Há quem o demonize, há quem defenda seu uso com parcimônia, há quem diga que é assim mesmo, uma questão estrutural. Rabbit explica que não pretende catequizar ninguém, apenas propõe uma provocação com suas batidas, o resgate de uma cultura que andava meio perdida e uma “nova” maneira de vê-la, como nosso patrimônio de sabor.

“Se você vai a Veneza, quer tomar um Bellini. Se vai a Florença, pede um Negroni. Em Havana, vai de Mojito ou Daiquiri. Então por que raios o setor de hospitalidade e os bares de alta coquetelaria não oferecem batidas e caipirinhas? São drinques que, infelizmente, carregam o estigma da cachaça, de bebida de botequim”, diz.

Quanto ao leite condensado, há quem pondere sobre sua posição em nossa cultura etílica. “Ele já faz parte da nossa história e há como usá-lo em momentos adequados, em receitas corretas, evitando o abuso. Qualquer ingrediente em excesso, em qualquer receita de comida ou coquetel, não cai bem, seja leite condensado, molho inglês, mel, shoyu ou tucupi”, diz o mixologista Marco De la Roche, pesquisador da coquetelaria brasileira e editor do site Mixology News.

Doces e batidas transformados

Houve tempos melhores para nossos drinques brazucas, como me contou o bartender Derivan de Souza (1955-2023) em depoimento ao site O Bar Virtual. Recordava os primórdios de sua carreira em São Paulo, no começo dos anos 1970: “Os estrangeiros, em sua maioria, queriam beber Caipirinha. Entre o público brasileiro, as batidas é que eram elegantes. Do final dos anos 1960 até os 80, elas tiveram uma força absurda – já tínhamos o Rei das Batidas, o Mestre das Batidas, o Cu do Padre… Foi aí que aquela empresa suíça enxergou a oportunidade de colocar nas batidas o leite condensado. Antes, eram feitas com frutas naturais e açúcar. Houve concursos de batida patrocinados pela Nestlé no Brasil inteiro”.

O caso que Derivan conta coincide com a campanha exitosa que a Nestlé arquitetou, a partir dos anos 1960. Em contato acirrado com consumidoras de todo o país, por meio de livros de receitas e muita propaganda, a empresa naturalizou a presença do leite condensado na doçaria brasileira. Um dos primeiros livros chamava-se Doces brasileiros de verdade, obra da nutricionista Débora Fontenelle e sua equipe, que trazia adaptações de receitas tradicionais com o ingrediente cremoso. Pudim de leite, beijinho, canjica, papo de anjo. Eles também existiram antes do leite em latinha. Brigadeiro não conta, já surgiu na era condensada. Localizada em 2020, aos 83 anos, pelo site O Joio e o Trigo, que criou texto e podcast sobre o tema, Débora fez um mea culpa: “Vou conversar com São Pedro quando chegar a hora”.

A empresa contava, num desses livros, a história de Sinhazinha, moça de fazenda mineira de olhos românticos (e bem bocó, vamos combinar). Por errar o ponto do doce de leite que preparava para o noivo e deixar um vento frio trincar a compoteira, nunca mais teve coragem de encarar o rapaz que lhe era prometido. Morreu solteirona. “As sinhazinhas de hoje não correm esse risco. Elas podem preparar um doce de leite, tão gostoso quanto o de antigamente, sem precisar de tachos, trempes e mucamas”, avisa o livreto.

A Sinhá moderna (daqueles tempos) precisava manter a pose de dona de casa exemplar, prestimosa, e segurar o marido com suas artes culinárias. Queria aproveitar as maravilhas e praticidades da indústria no pós-guerra: leite condensado, caldo de carne em cubinhos, palha de aço, eletrodomésticos possantes. 

Refazendo tudo

Com a coquetelaria não foi diferente. A cremosidade instantânea virou regra e pouca gente quer saber de preparos longos, a não ser bartenders mais rigorosos. Rogério Rabbit explica que a boa batida deve ser preparada pelo menos um dia antes de ser servida. “A mistura deve ser mantida na geladeira e, durante esse tempo, o açúcar condensa e dá corpo à receita.” Por que esperar um dia se, com leite condensado, na taça ou no pudim, consegue-se a textura desejada imediatamente?

Ao menos como exercício cringe, é interessante preparar hoje uma larga partida de batidinha para a festa de amanhã. O pre-batch, como se diz em mixologês moderno, permite que o aperitivo esteja pronto quando os convidados chegarem e será um charme apresentá-lo numa jarra bonitona, servi-lo em copinhos, copões ou taças bacanas, com gelo. Pense na batida de limão que tomamos antes do bufê de feijoada. Foi o que resistiu da tradição comunitária desse estilo de coquetel. “A batida é nosso grande drinque coletivo. Está para o Brasil como o punch está para os ingleses”, diz Rabbit.

Antigos livros e folhetos consultados por Rogério Rabbit e Marco De la Roche trazem diversas versões tradicionais de batidas sem leite condensado. Caso do raro ABC de Cocktails, escrito por Fery Wünsch, maître tcheco que trabalhou durante 40 anos no Copacabana Palace, a partir da década de 1930. O leite condensado começa a aparecer na literatura de coquetelaria brasileira na virada dos anos 1960 para 70, correndo junto à transformação da nossa doçaria pelos manuais da Nestlé. Com ajuda dos bartenders pesquisadores, compilamos algumas receitas.

Algumas têm proporções tipo manada, para uma festa de muitos amigos. Outras são versões individuais. Divida ou multiplique-as de acordo com a quantidade de gente que vai receber. Elas duram bem até dois dias na geladeira, menos as que levam limão, fruta que oxida e amarga com rapidez. Teste algumas delas até descobrir seu possível talento para batidas, fáceis de fazer e de improvisar. Em pouco tempo estará craque, criando as próprias batidas. Se decidir pelo leite condensado, quem cuida do seu copo é você.

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Batida Paulista 

batida paulista

Paulista: limão, cachaça e açúcar. Foto: Divulgação.

Releitura de receita extraída do livro ABC de Cocktails (1ª Edição, 1937), é a batida mais básica. Comece por ela e parta para variações, com limão-siciliano, limão-cravo ou misturas de variedades cítricas. Se achar a quantidade de açúcar muito alta, reduza-a. Rabbit, porém, adverte que menos açúcar deixará a batida mais rala e não causará o efeito de condensação que se espera.

Ingredientes
750 ml cachaça branca
750 ml de xarope de açúcar
750 ml de suco de limão fresco

Modo de preparo
1. No liquidificador, bata intensamente todos os ingredientes sem gelo.
2. Transfira para uma garrafa limpa e armazene-a na geladeira da noite para o dia.
3. Mexa a garrafa antes de servir. Sirva em copo baixo ou copo americano de 300 ml com gelo em cubos.

Preparo do xarope de açúcar
Numa panela, misture partes iguais de água e açúcar e leve ao fogo brando. Mexa até dissolver. Espere esfriar e guarde na geladeira.

Batida de caju

batida de caju

O caju inteiro faz parte do drinque. Foto: Divulgação.

Releitura de Rogério Rabbit de receita do folheto Roteiro das Batidas (1° Festival Brasileiro de Batida 1970). Ela é especialmente bonita por levar um caju inteiro, que é servido dentro do copo e mordiscado enquanto se bebe o coquetel. O tempo de descanso sugerido faz as frutas ficarem bem embebidas de cachaça.

Ingredientes
1 litro de cachaça branca alambique
1 litro de xarope de açúcar
1 litro de suco fresco de caju
20 cajus frescos

Modo de preparo
1. Bata intensamente no liquidificador a cachaça, o suco de caju e o xarope de açúcar.
2. Num pote grande, armazene a batida e os cajus inteiros. Deixe descansar na geladeira por 48 horas.
3. Mexa a batida antes de servir. Sirva em copos americanos de 300 ml com gelo e um caju inteiro.

 

Batida de café

batida de café

Batida de café: mais sofisticada. Foto: Divulgação.

Releitura de Rabbit de receita do livro Coffee Drinks and Desserts (1ª edição, 1966). Já é uma batida com um belo upgrade, bem complexa, precedida pelo preparo de um “leite” de castanhas e adição de ingredientes importados, como o vinho do Porto e o licor de laranja. Dá um trabalhinho, mas o resultado compensa.

Ingredientes
500 ml de café especial coado de sua preferência
1 litro de cachaça envelhecida
100 ml de licor de laranja (Rabbit recomenda o Grand Marnier Cordon Rouge, mas você pode usar um triple sec mais básico)
100 ml de xarope com mix de castanhas (amendoim, castanha de caju e castanha-do-pará)
100 ml de vinho do Porto (Rabbit indica o estilo LBV)
6 gemas de ovo caipira
Noz-moscada para finalizar

Modo de preparo
1. No liquidificador, bata intensamente todos os ingredientes sem gelo e transfira para uma garrafa limpa.
2. Armazene na geladeira por 24h no mínimo.
3. Sirva em taças coupe ou taças altas e rale um pouco de noz-moscada por cima para finalizar.

Preparo do xarope de castanhas
Coloque 100 g de amendoim, 100 g de castanha de caju e 100 g de castanha-do-pará – todas sem sal! – em 1 litro de água. Bata tudo muito bem no liquidificador e deixe da noite para o dia na geladeira. No dia seguinte, coe a mistura e substitua a água descartada por 1 litro de água nova. Dissolva a mesma parte de açúcar nesse líquido. Mantenha o xarope na geladeira antes de preparar a batida.

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Batida de beterraba e pêssego

batida de beterraba

Beterraba e pêssego: combinação inusitada. Foto: Divulgação.

Diferentona, esta receita é sugerida por Marco De la Roche a partir de um livreto de coquetelaria lançado pela marca de pneus Pirelli em 1974. Sua cor é linda e o pêssego traz o frutado ao paladar. Se quiser preparar antes e em maior quantidade, guarde na geladeira de um dia para o outro. Só tome cuidado com o limão, que pode oxidar.

Ingredientes
4 pêssegos frescos descascados e sem caroço
1 beterraba cozida
Suco de 2 limões-taiti
60 ml de cachaça
2 colheres de sopa de mel
Gelo picado a gosto

Modo de preparo
1. Bata tudo muito bem no liquidificador com gelo.
2. Coe para uma taça com ajuda de uma peneira fina.

 

A Titular

Do mesmo do catálogo da Pirelli, esta é uma opção bem tutti-frutti. Melhor prepará-la em maior quantidade e deixar descansar na geladeira até o povo chegar.

Ingredientes
1 fatia de abacaxi
1 fatia de goiaba
135 ml de suco de manga
1 colher (sopa) de açúcar
135 ml de cachaça
135 ml de suco de pitanga
Gelo picado a gosto

Modo de preparo
1. Bata tudo muito bem no liquidificador com gelo.
2. Coe para uma jarrinha com ajuda de uma peneira fina.
3. Coloque gelo nas taças e sirva.

 

Bate-Bate de maracujá

Arilza Soares, autora do blog Vento Nordeste, conta que aprendeu a tomar bate-bate com Vó Joaquina, que preparava uma grande quantidade da receita e a deixava em um filtro de barro em sua varanda no Recife, durante os dias de Carnaval. Oferecia a batidinha de maracujá e mel a todos os foliões que a visitassem. Arilza recuperou a singela receita com Alice, neta de Vó Joaquina.

Ingredientes
750 ml de cachaça branca
380 ml de suco de maracujá fresco e coado
190 ml de mel

Modo de preparo
1. Vó Joaquina batia os ingredientes vigorosamente com uma colher de pau, mas você pode usar o liquidificador.
2. Se tiver um filtro de barro dedicado a guardar batida para o próximo Carnaval, beleza. Caso contrário, guarde o bate-bate numa garrafa, na geladeira.

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