O que esperar da próxima temporada de alta-costura?

Entre os dias 5 e 8 de julho, as marcas irão apresentar as suas coleções de inverno 2021 de alta-costura e nós listamos todos os momentos imperdíveis desta temporada.


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Fantasia, sonho e tule abundante. Para muitos, a alta-costura já costuma ser sempre empolgante, mas, no calendário de inverno 2021, existem ainda outros motivos para esperar ansiosamente por essa temporada, que acontece entre os dias 5 e 8 de julho. Além de boas estreias e retornos, há ainda a volta às passarelas. “Eventos físicos poderão receber convidados de acordo com protocolos de saúde específicos e conforme as medidas determinadas pelas autoridades públicas”, explicou o comunicado oficial divulgado pela Fédération de la Haute Couture et la Mode (FHCM).

Ou seja, agora, a extravagância será híbrida: cada marca poderá escolher entre um desfile presencial, uma apresentação digital ou ambos. A Chanel foi a primeira a anunciar sua preferência por um show físico. A marca francesa receberá os seus convidados no Palais Galliera, museu de moda que atualmente está apresentando a primeira retrospectiva de Gabrielle Chanel, em Paris. Dior e Armani Privé também irão apresentar as suas coleções presencialmente, sem deixar de lado as transmissões ao vivo. Já entre as que optaram pelo formato digital, se destacam Schiaparelli, Fendi e Maison Margiela.

Um momento de destaque será a coleção de Jean Paul Gaultier assinada por Chitose Abe, diretora criativa da Sacai. O desfile já deveria ter acontecido há cerca de um ano, mas precisou ser adiado duas vezes devido à Covid-19. A estilista japonesa, que fundou a sua etiqueta em 1999, é a primeira de um time de estilistas convidados a assumirem a linha de alta-costura do francês. Do sutiã cone de Madonna à alfaiataria que desafia o gênero, há um dos arquivos mais ricos para Chitose explorar e mostrar que a etiqueta Jean Paul Gaultier não vai desaparecer.

No dia 15 de julho, uma semana após o término da semana oficial, a Valentino irá apresentar a sua coleção de alta-costura em Veneza. Em nota, Pierpaolo Piccioli afirmou que a cidade italiana “gera vibrações na arte, arquitetura, cinema e tudo que tem a ver com criatividade”.

De volta ao calendário, há ainda outros dois momentos que, talvez, sejam os mais importantes dessa vez: a estreia da Pyer Moss, marcando a primeira vez em que um estilista negro estadunidense se apresenta na temporada, e a volta da Balenciaga à alta-costura após mais de cinco décadas afastada.

Pyer Moss

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Pyer Moss, verão 2020.Getty Images

A maior parte das marcas de luxo que conhecemos hoje foram fundadas como casas de alta-costura. Chanel, Dior, Givenchy e Saint Laurent são algumas delas. No entanto, lá pelo início da década de 1950, após o fim da Segunda Guerra Mundial, isso já não parecia fazer tanto sentido. É aí que o prêt-à-porter nasce. Algumas décadas depois, já bem consolidado, surge uma outra geração de estilistas, como Miuccia Prada, Helmut Lang e Jil Sander, para contestar as velhas noções do belo.

A alta-costura é um negócio caro, de clientela exclusivíssima, escala artesanal e, embora ainda sobreviva, talvez opere, hoje, muito mais como uma forma de posicionamento e exibição das habilidades técnicas e criativas das etiquetas. É que com o tempo também dá para acumular poeira e se, lá atrás, novas propostas já começavam a estourar, imagine no cenário atual. Temporada após temporada, a sua relevância é questionada e, agora, a Fédération de la Haute Couture et la Mode começa a demonstrar uma atenção maior à renovação desse segmento centenário.

Prova disso é o convite feito à Kerby Jean Raymond. O fundador da Pyer Moss irá integrar o calendário desta próxima edição como membro convidado. A participação sela a primeira vez em que um estilista negro da América irá se apresentar durante a semana de alta-costura. A conquista não é pouca coisa. A FHCM segue uma lista rígida de padrões e requisitos e, embora os membros convidados não precisem estar de acordo com cada uma das qualificações, ainda assim têm as suas operações minuciosamente examinadas.

Fundada em 2013, a Pyer Moss é, para Kerby, mais como um projeto de arte ou um experimento social do que apenas outra marca de roupas. Usando a sua voz e plataforma para desafiar as narrativas dominantes, muito de seu trabalho evoca o diálogo acerca da justiça racial. Em sua estreia na New York Fashion Week, em 2015, o designer abriu o seu desfile com um vídeo de 12 minutos sobre a brutalidade policial. Na época, multimarcas cancelaram os seus pedidos e ele foi ameaçado de morte por movimentos supremacistas brancos. Em depressão após tais acontecimentos, pensou até em encerrar a etiqueta. Mas Kerby não desistiu. Pelo contrário, renasceu mais forte.

No verão 2019, a coleção apresentada imaginava “como seria a vida das pessoas negras caso elas não tivessem sido molestadas”. Em um look branco, vestido por um modelo negro, apareceu o questionamento “see us now?” (em tradução livre: “você nos vê agora?”). Já em uma camiseta, com parte do lucro revertida para exonerar pessoas negras erroneamente condenadas, foi bordada a frase “stop calling 911 on the culture” (em tradução livre: “pare de ligar para o 190 denunciando a nossa cultura”).

A sua visão central em torno do ativismo é traduzida a partir de estampas gráficas vibrantes e, claro, inúmeros códigos de roupas esportivas que ressoam entre a juventude. Kerby também entende, como poucos de sua geração, o poder que é fazer um bom show. Para o desfile de verão 2020, o último pré-pandemia, a marca colocou em seu palco um coro completo que cantava sucessos de Donny Hathaway à Cardi B. Ou seja, para a sua alta-costura, pode esperar, pelo menos, um pouco de teatralidade e música.

Desde esse desfile, a Pyer Moss não se apresentou novamente, nem mesmo em formato digital. A alta-costura marca o seu esperado retorno às passarelas e a novidade foi recebida com entusiasmo. É que, ao longo desses oito anos, Kerby construiu uma base de fãs a partir de uma relação quase simbiótica nas mídias sociais. Zendaya, Tracee Ellis Ross e até a vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, fazem parte disso.

O momento parece também importante para o estilista em um lugar mais íntimo. No ano passado, ele foi nomeado vice-presidente da direção de criação da Reebok e, em entrevista recente à Interview Magazine, comentou: “Tem sido muito difícil equilibrar as necessidades da Reebok e, ao mesmo tempo, me dedicar a Pyer Moss. Estou muito grato pela oportunidade (…), mas estou preocupado que as sementes que estou plantando saiam pelas lentes da branquitude”.

Uma apresentação de sua marca própria, em todo o seu protagonismo, durante uma temporada de alta-costura é a oportunidade de Kerby Jean-Raymond fazer história e começar a reescrever as regras, lançando luz a esse segmento que, por tanto, esteve fechado para ele e para os seus. Talvez, entre o cruzamento das formas esculpidas e da bravura das ruas, a Pyer Moss lembre que o belo pelo belo já é uma ideia falida na moda contemporânea e, caso as ideias acerca da haute-couture não sejam redefinidas, outras falidas virão.

Balenciaga

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Getty Images

Cristóbal Balenciaga foi um dos grandes mestres da moda do século 20. Enquanto Elsa Schiaparelli se dedicava a investigar o surrealismo e Madeleine Vionnet reinventava a maneira como as mulheres se vestiam, ele possuía um design um tanto mais abstrato. O seu domínio e controle das formas era, claro, exímio, assim como os dos outros nomes da alta-costura da época. Porém, o estilista esculpia o corpo feminino a partir de tecidos pesados, as silhuetas eram rígidas, marcadas por ombros expressivos e colos delineados, muitas vezes em referência à sua origem espanhola.

Limite não era bem uma palavra integrada ao seu vocabulário. Dominando o ofício da costura, Cristóbal desenvolvia construções complexas, dignas da ascensão de uma nova linguagem não só estética, como também técnica. Peças em forma de balão, babydolls volumosos e criações retas, quase arquitetônicas, foram só algumas de suas muitas contribuições que, pouco tempo depois, já haviam se tornado fonte de referência para tantos outros, incluindo Hubert de Givenchy, de quem foi mentor, e Azzedine Alaia.

Há exatos 53 anos, no entanto, Cristóbal Balenciaga fechou as portas de seu ateliê e, desde que a marca retomou as atividades, a alta-costura passou a ser uma área intocada. Respeito ao seu fundador? Foco em outras demandas comerciais? Não se sabe ao certo quais seriam os reais motivos para a decisão ter sido mantida até hoe. No próximo dia 07, a etiqueta reviverá a sua alta-costura, agora, sob o comando de seu diretor criativo Demna Gvasalia.

O retorno da Balenciaga à temporada de couture foi anunciado em janeiro de 2020 e, de imediato, os haters de Demna já estavam criticando o seu desempenho em uma coleção ainda nem mesmo apresentada. No meio disso, você-sabe-o-quê aconteceu e as temporadas passaram a ser online. “Não acredito na alta-costura digital. Não consigo mostrar em uma tela, é algo que precisa ser visto na realidade”, comentou o estilista em entrevista ao WWD. A tal volta foi então adiada por um ano e, finalmente, vem aí.

As criações de Cristóbal e Demna podem parecer estar a quilômetros de distância. Mas, talvez, só pareçam mesmo. Gostando ou não, pontos de encontro entre os seus trabalhos não são tão raros assim – e ambos possuem ainda um bom interesse em comum: quebrar as regras.

Por parte do atual diretor criativo, nem é preciso explicar muita coisa. Afinal, estamos falando sobre o estilista que colocou Crocs de salto em seu último desfile e foi o precursor de muitas das tendências e movimentos mais estranhos da década. Já por parte do fundador, a sua própria relação com a alta-costura era complexa. Por muito tempo, Cristóbal se recusou a aderir às rígidas diretrizes do Chambre Syndicale de la Haute Couture (hoje chamada de Fédération de la Haute Couture et de la Mode), se rebelando e fazendo moda em seus próprios termos.

Em sua estreia na alta-costura, Demna Gvasalia promete atacar com força. Desde que assumiu a direção criativa da Balenciaga, em 2015, o georgiano vem lançando uma nova luz sob a herança da etiqueta. A sua primeira coleção apresentada mais se assemelhava a um estudo da alfaiataria presente no arquivo da marca. Mantendo os ombros esculpidos e quadris arredondados, Demna propôs uma série de ternos perfeitamente bem cortados acompanhada por elementos street vindos de seu próprio repertório.

Alguns anos depois, durante a temporada de inverno 2017, tivemos, provavelmente, o exemplo mais convincente de que o georgiano poderia estar pronto para a alta-costura. Embora sejam ainda prêt-à-porter, os vestidos que encerram a apresentação oferecem um olhar mais concreto em torno da silhueta proposta por Cristóbal, ao longo da década de 1950, com camadas em forma de balão. Esse jogo de formas será essencial na sua estreia, e aproveitar a oportunidade para revelar um maior manuseio artesanal também.

O momento de volta às origens é ainda duplo: a Balenciaga restaurou o salão original em que Cristóbal trabalhava. Embora ainda mantenha sua loja no térreo, o andar superior da sede, localizada na avenida George V, em Paris, estava fechado há mais de cinco décadas. Agora, será reaberto com uma réplica idêntica ao espaço original do fundador para a apresentação de Demna. Ou seja, esqueça a atmosfera futurística das ambientações feitas pelo georgiano em seus desfiles.

Além da locação à altura, a apresentação da Balenciaga promete partir de uma perspectiva fluida. “Quero apagar a identificação de gênero. A alta-costura não precisa ser apenas para mulheres ou mulheres mais velhas que têm dinheiro para pagar”, explica o estilista em entrevista ao WWD. A etiqueta também não seguirá a sazonalidade já tradicional deste calendário. “Faremos uma vez por ano. Precisamos aprender novamente a ter paciência para esperar por coisas especiais”, comenta.

Por mais que de diferentes modos e em contextos quase opostos, Demna Gvasalia é uma força disruptiva, assim como Cristóbal Balenciaga foi. Para quem espera que ele se mantenha fiel ao legado do fundador, é bom ter em mente que quebrar regras também faz parte disso. Em contrapartida, é válido destacar que para um estilista projetar para a alta-costura é necessário que ele a reverencie. Afinal, se não, existem maneiras muito mais fáceis de fazer uma boa peça de roupa. Contamos com você, Demna.

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