Do realismo funcional da Prada aos travesseiros de JW Anderson, o que importa nos desfile masculinos de Milão
Na Milan Fashion Week, as coleções de inverno 2023 chegam objetivas, com formas simples, silhueta seca e de olho nas vendas.
Tenho um certo prazer velado por releases, aqueles textos meio informativos e meio marqueteiros que jornalistas recebem sobre algum assunto, pessoa, evento, lançamento ou novidade qualquer. Os de desfiles mais ainda. Gosto de ver a sintaxe, como palavras são usadas para construir narrativas, estabelecer uma linguagem e dizer o óbvio sem parecer, assim, óbvio.
O da Gucci falava de improviso: “Quando os impulsos das mentes individuais se entrelaçam, expressões coletivas são concebidas”. É um jeito poético para dizer que a marca se encontra, por ora, sem diretor criativo e o que se viu na passarela foi um potpourri de best sellers e interpretações do passado no lugar de uma proposta ou visão bem direcionada e distinta.
O da Fendi ia para o lado do conforto: “O estudo definitivo do conforto sofisticado, da opulência do cotidiano e da elegância do inesperado”. Ou seja, uma forma mais elaborada para o fato de que a coleção de inverno 2023 da casa romana é cheio de peças texturizadas, com destaque para lãs, tricôs e cashmeres, em tons neutros e silhuetas alongadas, mais próximas do corpo.
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Na Prada, Miuccia e Raf Simons são resolutos como as roupas que apresentaram ao falarem sobre realidade: “A coisa mais honesta que podemos fazer é criar algo útil para as pessoas hoje”. Tipo ternos sequinhos em azul marinho ou preto, cardigans coloridos com golas de camisa pontudas, bem 70’s, e bolsas tote com garrafas térmicas.
Outro sincerão, ou quase, é Jonathan Anderson, que, depois de algumas estações bem malucão, voltou mais objetivo, mas não menos lúdico. “O suéter é o suéter, a calça é a calça, a jaqueta é a jaqueta. Não tem nenhuma explicação exagerada sobre o look”, disse em entrevista coletiva, após seu desfile em Milão.
É que ninguém tem mais tempo para nada. E nem dinheiro. Ou não tanto dinheiro. Quem ainda tem algum tá cada vez mais esperto e criterioso sobre onde colocá-lo. Se você não sentiu o custo de vida apertar o bolso (ou a bolsa), pode se considerar privilegiado real-oficial.
E o que fazemos em tempos bicudos? Primeiro, poupamos, cortamos excessos, o desnecessário. Depois, trabalhamos. Ou tentamos. Nem sempre depende só da gente. Quando rola, não é raro o sentimento de que o lado pessoal é engolido pelo profissional. Aí, só o travesseiro salva. O tão aguardado momento descanso (descanso?), a desconexão do sono, cada vez mais intangível para muitos.
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Miuccia Prada e Raf Simons, juntos e separados, têm um interesse especial sobre como a ocupação de cada um influi no vestuário individual e na vivência coletiva. Não à toa, desde que se tornaram codiretores de criação da Prada, os uniformes são pontos de referências recorrentes. Para a coleção de inverno 2023, eles usaram a palavra arquétipo para falar dessas roupas que servem como identificadores ou demarcadores sociais. No fundo, é quase a mesma coisa.
Minimalismo?
O terno segue como a grande estrela, e ainda mais reduzido. Os estilistas estão dedicados a um exercício de subtração já faz algumas coleções. Dado o histórico da marca, é fácil enquadrar tudo como minimalista. Só que não é bem por aí. Não dá para dizer que um cardigan com gola destacável à la anos 1970 são um produto do minimalismo. Nem uma regata branca com aparência acolchoada ou uma jaqueta bomber inflada como um balão.
Tem mais a ver com reducionismo ou, em último caso, simplicidade. É o que Miuccia e Raf vivem falando sobre moda, quer dizer, design de moda: é importante que as roupas atendam a alguma função e não sejam meramente decorativas. Manter esse controle de limitação ao essencial não é fácil. Precisa de disciplina, ordem, controle. Palavras bem complicadas e muito dadas a práticas detestáveis.
Enfim, não é muito diferente de quando a gente precisa conter gastos, cortar despesas. Tem sempre uma tentaçãozinha desgraçada. E dá-lhe foco, força e fé para garantir os boletos pagos no fim do mês. Fé, na real, pode ser substituída por trabalho.
Achei difícil não pensar nisso, no rigor militar, na precisão cirúrgica, ao ver os vestidos de camurça com ombros apertados e silhueta quase constritiva. Ou não sentir o peso da invasão do trabalho na vida e corpo nos ternos slim, com parte de baixo aberta, simulando o desenho de uma gravata sobre o torso nu. É uma realidade, não é? Não deixa de ser uma consequência da roupa que exerce sua função por demais. Ou exerce uma função imposta sobre quem a veste.
Outra curiosidade é que o tecido daquelas golas pontudas são do mesmo algodão usado para fazer travesseiros. Aquele refúgio ou porto seguro onde o trabalho não pode (ou não poderia) chegar. Além do duvidoso sapato de sapo, que Jonathan Anderson fez rodar a internet, um dos looks mais repostados do inverno 2023 da JW Anderson foi o da camiseta com um travesseiro costurado na parte da frente.
Depois de algumas temporadas imersas em conceitos surrealistas ou desdobramentos dos efeitos socioculturais das redes sociais, a impressão é de pé no chão. No chão de casa mesmo,do próprio quarto até, onde dá para andar de cueca – no caso, de tricô ou couro – bem à vontade, abraçado na roupa de cama ou usando aquela peça que dificilmente interage com outras pessoas.
A reedição de alguns clássicos da marca reforçam outro caminho importante no momento: a afirmação e reforço da identidade. As bermudas de couro com babados na barra foram um hit dos primeiros desfiles do irlandêns na semana de moda de Londres. Dá até para traçar um paralelo entre os ternos de proporções reduzidas com os looks pijama do início de sua carreira.
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Já faz um tempo que consumidores estão preferindo roupas menos espalhafatosas, que não cansam ou se “queimam” depois do primeiro dia de uso. Pode ser cansaço da superexposição nas redes sociais, mais atenção e cuidado com a conta bancária ou o entendimento do que realmente faz a diferença no seu corpo, no seu guarda-roupa, na sua vida. Não tem muito como saber. Fato é que essa realidade acendeu um alerta para quem acompanha os altos e baixos da economia.
Desde meados do ano passado, gurus do mercado preveem que 2023 pode ser economicamente pior ou, para os mais otimistas, igual a 2022. Inflação, guerras, instabilidades políticas, Covid-19 com tudo na China e a ameaça constante de uma recessão global deixou muita marca com medo da água bater na bunda. Daí o que se viu na semana de moda milanesa.
É mais garantido ter um produto menos expressivo, sem tanta identidade, e mais “clássico” na sua loja. Aquele blazer meio quadradão, alongado, levemente oversized, que dá para usar no trabalho, numa festinha ou como terceira peça em um evento mais arrumado. O suéter de tricô, bom para ficar em casa e para sair também, uma boa camisa, um camisetão.
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É só colocar uma regata ou blusa de um ombro só (Fendi), uma saia (Gucci), um vestido (Prada), um corset sobre o terno (Dolce & Gabbana) ou uma versão mais robusta e atualizada da bolsa que todo mundo ama (todas elas) e pronto. Agradou o cliente que só quer resolver seu dia a dia (bem luxuosamente) e o que quer fazer unboxing, vídeo tipo “se arrume comigo“.
E tudo bem. Não tem nada de errado com isso, faz parte. Moda é essencialmente sobre vendas, comércio. E tem bastante roupa para admirar e desejar nesta estação. O problema é só caber nelas. Diferentemente dos desfiles femininos (não que eles sejam uma grande maravilha nesse sentido), os masculinos parecem cada vez mais apegados a um biotipo alto e magro. Os blazers alongados, as partes de cima encurtadas para ressaltar a cintura marcada, ajustadíssima, as modelagens rentes ao corpo, as proporções reduzidas, tudo é pensado para um corpo esguio, às vezes quase infantil.
Se a intenção é atrair mais e mais consumidores, tá aí algo que precisa ser revisto o quanto antes.
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