O que há por trás da reedição de looks históricos de grandes marcas de luxo?

Nas passarelas, Gucci, Dolce & Gabbana, Ferragamo, Prada e Stella McCartney mergulham em seus arquivos para mostrar a força da tradição para a nova geração e garantir vendas.


Dolce & Gabbana, verão 2023.
Dolce & Gabbana, verão 2023. Foto: Getty Images



Ainda na adolescência, com a mesada que ganhava do pai, Kim Kardashian começou a garimpar roupas de marcas famosas em brechós. Com olhar afiado, esboçou ali o que definiria seu estilo mais tarde. Entre tantas opções, havia uma etiqueta que se destacava das demais e se conectava com a influenciadora e empresária de maneira especial: Dolce & Gabbana. Sem perceber, ela montou um acervo impressionante com looks da casa italiana. Até seus cachorros ganharam os sobrenomes dos estilistas Domenico e Stefano, respectivamente.

No ano passado, Kim se viu imersa mais uma vez em um acervo repleto de peças da casa italiana. Na verdade, ele era todo de peças Dolce & Gabbana. Afinal, era o acervo da própria marca. À convite dos diretores de criação, a Kardashian selecionou suas peças favoritas de coleções passadas da grife para serem editadas como parte do desfile de verão 2023.

Dolce & Gabbana, verão 1999.

Dolce & Gabbana, verão 1999. Foto: Getty Images.

Dolce & Gabbana, inverno 2023.

Dolce & Gabbana, inverno 2023. Foto: Getty Images.

Deu tão certo que na temporada seguinte, a de inverno 2023, tudo se repetiu. Da primeira fila, a estrela, com top e saia longa, uma versão atualizada de uma criação de 1994, assistiu ao desfile repleto de referências vintage, com muita alfaiataria e itens derivados de lingeries.

A Dolce & Gabbana não caminha sozinha nessa estrada. Voltar ao passado é um caminho fundamental para entender a moda de hoje. Mais ainda para garantir que as vendas sigam estáveis. Por isso, na mais recente maratona de desfiles, terminada em 07 de março, não foram poucas as marcas que apostaram na reedição de clássicos ou hits de outrora.

Em Milão, numa espécie de show de transição enquanto Sabato de Sarno não estreia na direção criativa, a Gucci revisitou silhuetas e cores da era Tom Ford, com destaque para o fim dos anos 1990 e começo dos 2000. A icônica bolsa Shoulder, assinada pelo texano, é um exemplo desse museu de novidades. 

Bolsa Gucci, verão 2004.

Gucci, verão 2004. Foto: Getty Images.

Gucci, inverno 2023.

Gucci, inverno 2023. Foto: Getty Images.

Sob comando do estilista Maximilian Davis, a Ferragamo não só recuperou sua relação com a indústria cinematográfica de Hollywood, como reeditou uma sandália com salto de ouro 18 quilates criada em 1956. Além da versão atualizada, ele desdobrou alguns de seus elementos em diversas peças da coleção. O melhor exemplo, são as cordas douradas, originalmente usadas para prender o calçado, que agora aparecem em bolsas, casacos e vestidos.

A dupla de diretores criativos da Prada, Miuccia Prada e Raf Simons, estão nessa onda revisionista desde a chegada do belga, em 2020. Menos preocupado com a obsessão esportiva na moda, o duo olhou para o minimalismo funcional dos anos 1990 para mostrar coleções focadas em design elaborados de peças cotidianas. E foi um sucesso, vide os lucros da empresa no último ano – 776 milhões de euros, 59% maior do que em 2021.

Em Paris, Stella McCartney olhou para seu passado na Chloé, grife que pilotou entre 1997 e 2001, para confeccionar tops de correntes, que acompanhavam a rigorosa alfaiataria confortável da designer inglesa e uma série de looks com estampas de cavalo. Movimento, aliás, que teve início na temporada de verão 2023. 

Sandália Ferragamo, com salto de ouro, criada em 1956.

Sandália, Salvatore Ferragamo de 1956. Foto: Getty Images.

Ferragamo, inverno 2023.

Sandália, Ferragamo, inverno 2023. Foto: Getty Images.

E isso sem contar nas celebridades que, já faz algum tempo, preferem vestir vintage do que a última novidade – um rolê diferente, embora conectado com o das reedições de clássicos. No tapete vermelho do Grammy, em fevereiro, Anitta escolheu um vestido do verão 2003 de alta-costura da Versace. Antes da cantora carioca, foi a supermodelo Eva Herzigova que brilhou com o look. No ano passado, Kim Kardashian esteve no centro de uma polêmica ao eleger o vestido que Marilyn Monroe usou em 1962 para cantar parabéns para o presidente estadunidense John F. Kennedy para cruzar o red carpet do MET Gala. 

“Acredito que esse momento tem a ver com a natureza humana de sempre buscar o equilíbrio”, diz a consultora de moda e stylist Manu Carvalho. “Em um cenário digital, de inteligência artificial desenhando textos e modelos, esse resgate é essencial. As marcas precisam comunicar suas origens. É um recurso para reafirmar e celebrar a força autoral de cada casa, estabelecendo trajetórias e histórias.” 

Paula Acioli, pesquisadora e analista de moda, acredita que revisitar arquivos era uma prática restrita, tornando-se mais comum a partir da década de 1990, com a aposentadoria e falecimento de alguns estilistas e com o surgimento dos conglomerados de luxo. “O mergulho nos acervos passou a ser uma ferramenta de revitalização para as maisons, algumas em declínio ou sem o glamour de outrora. Esse revival é uma forma de deferência com toda a trajetória que assegurou a solidez e reconhecimento que essas marcas possuem globalmente”, comenta Paula.

Prada, verão 1995.

Prada, verão 1995. Foto: Getty Images.

Prada, inverno 2023.

Prada, inverno 2023. Foto: Getty Images.

É um movimento importante, porém cada vez mais dominante na indústria. Ao ponto de quase se sobrepor  à inovação e criatividade. No documentário Reino dos sonhos, os mecanismos pró-lucro são esmiuçados com bons exemplos e depoimentos de profissionais do meio. Agora, ante uma possível recessão global, o foco no passado, na história e essência de determinada casa é, sobretudo, redução de riscos e minimização de danos. É muito mais fácil vender um item clássico do que uma novidade ainda não bem compreendida.

“Depois dos efeitos de ações controversas de várias marcas, da Balenciaga à Yeezy, o mercado percebeu que talvez estivesse dando um tiro no próprio pé, brincando com fogo e perdendo de vista o legado que nos trouxe aos dias de hoje”, observa a jornalista Lilian Pacce. “Na era do clickbait, é muito simples perder de vista a essência pela aparência. Mas a aparência, diversas vezes, vai contra a essência, desvirtuando e desvalorizando a moda em si. Não parece contraditório que no tempo em que se discute sustentabilidade na indústria, a própria estimule o look efêmero?”   

Segundo Lilian, é saudável o resgate dos arquivos, que são a base sólida das marcas. “Acervos são baús preciosos que devem ser revisitados e reinterpretados para os desejos e necessidades contemporâneos. Atingir um equilíbrio entre o passado e o futuro significa entender o presente.” Paula finaliza: “Essa tendência é, acima de tudo, uma inteligente estratégia para ser colocada em prática, sobretudo na direção dos consumidores das novíssimas gerações.” 

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