O que há por trás da tendência do feito à mão no Brasil

Estilistas reapropriam raízes da costura nacional e transformam artesania em passarelas descoladas de estereótipos.


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Catarina Mina Foto: Roberta Braga e Cláudio Pedroso



Já reparou como o trabalho manual anda valorizado no Brasil? Basta olhar para os lados e constatar que pontos de crochê, linha, tricô e a vasta gama de rendas do país estão nas roupas e nos acessórios de muita gente – de fashionistas a leigos no assunto. Agora, já parou para perceber que parte importante dos criadores desse tipo de moda genuinamente brasileira tem endereço, plataforma de desfiles e o interesse crescente da cultura internacional?

O Festival Dragão Fashion Brasil, que aconteceu no final de maio na Praia de Iracema, um dos cartões-postais de Fortaleza, no Ceará, a renovação do calendário da São Paulo Fashion Week, no início deste mês, e a própria ideia de cultura popular aplicada à moda encontram na produção do Nordeste uma de suas maiores potências de novidades.

Não que a utilização dos traços da cultura nordestina não permeasse há muito tempo a criação de roupas, mas, finalmente, eles hoje chegam às vitrines sem aquela pecha de artesanato que desconectava o desejo dos saberes manuais.

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Dendezeiro.Foto: Kevin Oux

Duas das marcas que estrearam na SPFW N53 são nordestinas. A baiana Dendezeiro, uma das mais festejadas da nova geração, traduziu as cores e elementos do tabuleiro de Acarajé numa coleção carregada de referências às religiões de matriz africana. Martha Medeiros, por sua vez, mostrou as várias possibilidades das rendas que compõem a paisagem de sua Alagoas natal e as araras de sua marca homônima, que já cruzou as fronteiras de diversos países.

Contudo, foi a Catarina Mina, em Fortaleza, que mostrou, na passarela do Dragão, a união singular que o Brasil vem empreendendo para tornar artesanato em artigo de luxo. Conhecida pelas bolsas de palha que ganharam mercados europeu, americano e árabe, todas produzidas em parceria com as comunidades de artesãos e pescadores do Ceará, a designer Celina Hissa apresentou sua primeira coleção de roupas junto a rendeiras da região do Trairi, todas do projeto Olê Rendeiras.

O bilro, um tipo de renda que usa diversos cruzamentos de linha, foi o motor dessa coleção que explora efeitos ópticos por meio dos desenhos. É preciso olhar de perto cada trama para perceber que as texturas tratam, na verdade, do tecido manual costurado à mão.

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Marina Bitú.Foto: Roberta Braga e Cláudio Pedroso / Divulgação

A mesma passarela do DFB, que revelou o baiano Vitorino Campos, ex-Animale e atual diretor de estilo na Água de Coco, abriu as portas para Marina Bitú, que mostrou um trabalho precioso de plissados apoiado em crochê com precisão matemática. Vestidos que abrem como sanfonas, a referência básica do repertório da coleção, se estruturam com geometria e um senso de elegância ensolarada se desenrolam nos conjuntos mais leves de alfaiataria.

Assim como na maioria das marcas que se arriscam em traduzir o horizonte nordestino, a da Marina apresentou tons terrosos, alaranjados e matizes de vermelho em meio ao sereno off-white. São coleções genuinamente brasileiras envoltas em uma capa de glamour aristocrático que, embora carreguem traços de eurocentrismo, ampliam o dicionário da moda nordestina com um olhar para fora da bolha fashionista.

Orgulho e preconceito

A mescla de elementos da chamada artesania local com técnicas de modelagem usadas em favor de um guarda-roupa prático resume a fórmula que torna possível ao consumidor encarar suas raízes sem medo de parecer antiquado. Um desajuste que é fruto do preconceito ainda enraizado no país.

Ronaldo Fraga costuma dizer que, por aqui, o que é feito por pobres é visto como coisa de pobre aos olhos da elite. Por isso, o artesanato feito em lugares às margens das capitais e, em sua maioria, em um Nordeste que por muitos anos foi alvo de políticas econômicas que impediram o desenvolvimento de seu povo, deixaram esses saberes nas mãos de mulheres desassistidas.

O cenário começou a mudar com a abertura de redes de cooperativas que passaram a incentivar e organizar o trabalho dessas pessoas, como a Artesol, fundada em 1998 pela ex-primeira dama Ruth Cardoso. Com novas políticas sociais e um Ministério da Cultura atuante, o conceito de Economia Criativa ganhou tração e essas técnicas começaram a ganhar relevância no cenário cultural.

“A grande diferença é que vivemos tudo isso que mostramos nos desfiles, enquanto outras marcas fazem apenas releituras do que acreditam ser a cara do Nordeste.” – Cláudio Silveira, idealizador e diretor do Festival Dragão Fashion Brasil

Ao mesmo tempo, os polos têxteis de Santa Cruz do Capibaribe e Toritama, no agreste pernambucano, e as confecções do Ceará, Paraíba e Rio Grande Norte expandiram tentáculos. Apesar de abastecer a indústria, o Nordeste ainda era visto erronamente como chão de fábrica e sua produção de moda parecia vinculada aos pequenos ateliês de artesãos da Feira de Caruaru, em Pernambuco, e ao trabalho de poucos estilistas que começaram a despontar com um trabalho baseado em saberes e estéticas regionais.

Entre eles estavam Eduardo Ferreira, contemporâneo de Fraga no Phytoervas Fashion (embrião da SPFW), e, depois, Melk Z-Da, um dos nomes fortes do extinto Fashion Rio. Nos primórdios dos 2000, todos eles foram tachados de regionalistas, adjetivo usado para categorizar o estilo artesanal vindo de áreas específicas do país. O que só ampliou o abismo entre o brasileiro e sua cultura de moda.

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Ateliê Mão de Mãe.Foto: Marcelo Soubhia / Agência Fotosite.

O que ocorre agora, porém, é um movimento contrário. Na São Paulo Fashion Week, que um dia foi dominada por grifes de jeanswear – que fazem falta como retrato da diversidade do estilo nacional –, o penúltimo desfile do calendário consagrou o crochê da Ateliê Mão de Mãe. A marca dos baianos Patrick Fortuna e Vinícius Santana testou uma técnica de misturar crochê em cima de crochê para criar uma nova base. Costurada, ela ganhou formato de shorts, vestidos e peças utilitárias, sendo que algumas demoraram mais de duas semanas para ficarem prontas.

Destaque na programação do evento, a marca deu um show de brasilidade em meio às referências complexas de uma semana de moda marcada pela preocupação com os rumos políticos do país. A bem da verdade, tratar das origens de nossa costura não deixa de ser um ato político diante do desmonte cultural dos últimos anos, não é mesmo?

Cultura em foco

Por isso, também é preciso olhar como a coleção de David Lee amadurece as questões sobre a beleza da textura manual brasileira e como suas roupas tratam diretamente as nuances da produção cultural. Em parceria com o artista Narcelio Grud, ele transformou em estampas as obras cujas linhas e a engenharia remetem à arte cinética.

As roupas recebem o acabamento da alfaiataria reconhecível de Lee com toques texturizados do crochê, a matéria-prima básica do repertório do designer. A cartela em tons de laranja remete ao nascer do sol, uma imagem icônica do horizonte cearense e pedra fundamental do olhar ensolarado do estilista para as cores de sua cidade.

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David Lee.Foto: Roberta Braga e Cláudio Pedroso / Divulgação

Nome proeminente da nova geração e integrante da segunda edição do Movimento ELLE, Lee ganhou em 2019 um espaço generoso na Somerset House, em Londres, dividindo as salas do prédio com 15 estilistas da cena global. Suas criações representavam, segundo a curadoria do Conselho de Moda Britânico, os novos olhares da cena internacional de moda.

É preciso dizer, o interesse em torno da costura nordestina chega atrasado se comparado ao de outras vertentes da cultura. No cinema, nomes como os de Cláudio Assis (Piedade), Karïm Ainouz (Vida Invisível) e, mais recentemente, Kleber Mendonça Filho (Bacurau e Aquarius) já são incontornáveis como vitrine do país internacionalmente. Pelo viés da música contemporânea, a maranhense Pabllo Vittar e a pernambucana Duda Beat já são nomes quentes da nova safra do pop.

Mesmo o sucesso retumbante da paraibana Juliette Freire, vencedora do BBB 21, parece simbolizar o interesse do mainstream em oferecer aos brasileiros personagens – e, por meio deles, produtos– cada vez mais conectados às raízes. Vale lembrar, a cantora é rosto da L’Occitane Au Brésil e imagem escalada para representar a linha Mandacaru.

Para voltar à moda, Fortaleza ganhou um endosso global que agora ajuda a firmar a cidade como epicentro da reapropriação cultural engendrada pelos estilistas. Em 2019, a capital cearense acumulou o título de Cidade Criativa da Unesco na categoria Design, numa lista que hoje engloba 180 municípios apontados por essa entidade, vinculada à ONU, como polos de economia criativa.

Sol, mar e aridez

Tratar da moda cearense é entender que a iconografia natural de Fortaleza mistura a orla azul-esverdeada, a areia e o sol, bem como as regiões afastadas do centro urbano, com suas paisagens semiáridas. A Sau Swim, de Yasmin Nobre e Marina Bitú, por exemplo, conseguiu combinar, na passarela do Dragão Fashion Brasil, a força manual do Ceará com amarrações, crochês e telas que remetem às redes de pescadores de forma harmônica. As linhas sinuosas que servem de guias para a modelagem e estamparia remetem às dunas do entorno.

A força do beachwear brasileiro também encontra na Rio de Jas um paralelo com o melhor que o país oferece nesse estilo. Sem se prender aos básicos, Sara Brasil e Mariana Lima mostraram como as combinações de macramê, camisaria e roupas de banho podem criar uma praia urbana, que vai do concreto à areia com propostas para muito além da lycra.

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Sau Swim.Foto: Roberta Braga e Cláudio Pedroso / Divulgação

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Rio de Jas.Foto: Roberta Braga e Cláudio Pedroso / Divulgação

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Hand Lace.Foto: Roberta Braga e Cláudio Pedroso / Divulgação

Esse jogo de tecidos compõe também a moda da Hand Lace, de Edina Morais, que cresceu em Recanto, no Sertão cearense, de onde retirou as lembranças das plantações de arroz e algodão, além de linhas e cores do entorno árido. Passearam por aquela passarela as peças de pegada sexy que já foram usadas pela cantora Anitta e a atriz Juliana Paes, mas a estilista adicionou geometria às barras dos conjuntos, texturas às calças soltas e um trabalho de proporções feito em moulage que revela sua costura afiada.

Regente dessa orquestra de grifes, o idealizador e diretor do DFB, Cláudio Silveira, acompanhava tudo enquanto gerenciava as engrenagens da estrutura que recebeu, durante cinco dias, milhares de pessoas naquele pedaço da Praia de Iracema.

Quando parou para assistir a um dos desfiles, já cansado da correria de manejar o vaivém de políticos, encontros com a indústria e seus vários apoiadores, Silveira resumiu a ELLE o que acredita ter feito a moda nordestina, mais especificamente a do Ceará, porta-voz de tanto desejo. “A grande diferença é que vivemos tudo isso que mostramos nos desfiles, enquanto outras marcas fazem apenas releituras do que acreditam ser a cara do Nordeste”, reflete. “Acho que a coragem de mostrar um feito à mão de um jeito diferente e o fato de que muitos desses estilistas aprenderam em casa, com as próprias mães, a arte de costurar, revela a força criativa daqueles que realmente gostam daquilo que faz. Essa receita tem um valor inestimável.”

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