SPFW Sem Filtro: Misci, Another Place e João Pimenta

Gastando muita gasolina e com altas emissões de gás carbônico, o que pensa o time ELLE sobre os destaques do segundo dia da semana de moda.


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Misci. | Foto: Agência Fotosite



Por volta das 10h da quinta-feira, 17.11, o designer Airon Martin, da Misci, estava na Sala São Paulo falando sobre gasolina. Entre muitos pensamentos – mas muitos mesmo –, Airon lembrou do adesivo infame que foi colado em vários carros de machistas durante a alta dos preços em 2015. Para quem não lembra, era uma imagem da presidente Dilma Rousseff de pernas abertas que ia logo acima da boca do tanque. Sim, péssimo.

O estilista e arquiteto matogrossense falou ainda sobre como o combustível serve como termômetro social e carta política – vide a mais recente disputa eleitoral e os atos golpistas que teimam em não aceitar o resultado das urnas. Na sequência, emendou na associação inevitável com a indústria automobilística, pulou para os conceitos básicos do design – forma, função e estética para solucionar problemas – e mencionou o design vernacular, uma vertente da criação, projeto e produção que engloba práticas e soluções cotidianas, muitas vezes ligadas às culturas regionais. Ufa.

Tudo isso para justificar a inspiração do automobilismo no inverno 2023 da Misci. E, aproveitando a deixa, rolou um argumento sobre a capacidade do Brasil ser muito mais do que um produtor e exportador de commodities. Na real, desde que lançou a grife, em 2018, Airon fala sobre sua vontade de construir uma marca de luxo nacional, por isso o papo de reindustrialização. Fato é que ele tem sido muito bem-sucedido nessa jornada. Bem mais do que outras grandes etiquetas que almejam tal posto. E com mais verdade.

Enfim, de volta à coleção…

Depois de um desfile estrelado na temporada passada, com um show ostentação de materiais nacionais de alta qualidade, com construção e acabamento de dar inveja, o estilista e arquiteto matogrossense repete o feito. Tudo bem que o impacto visual (apesar da cenografia) foi menor. Ainda assim, ficou bem acima da média do que temos visto até agora.

Todo investimento e pesquisa em matéria-prima brasileiras continua, principalmente em tecidos com base de algodão, seda e denim. O couro também entra nessa jogada, principalmente nos acessórios e em alguns detalhes das roupas. Os jacquards, que Airon vem aperfeiçoando a cada estação, segue presente e ainda empresta seus desenhos para algumas estampas.

Os anos 1970, década que fornece inspiração constante para a marca, seguem presentes, porém agora de forma mais sútil – e isso vale especialmente para o masculino, onde as referências ao estilo daquele período muitas vezes chegavam a ser literais demais, quase caricatas. 

Há uma limpeza maior nas formas, e os looks brancos do início são a melhor amostra do que estamos falando. A alfaiataria continua como carro-chefe, com recortes assimétricos e uma sensualidade que bebe na fonte do modernismo brasileiro, mas, assim, só de leve. Os looks jeans mais estruturados e seguindo o desenho do corpo vão pelo mesmo caminho e trazem uma certa contemporaneidade casual muito bem-vinda ao repertório da Misci.

 

Nos acessórios, a principal novidade fica por conta da bolsa em formato de galão de gasolina. Daí a verborragia sobre o assunto antes do desfile. O curioso é pensar em como a gasolina e a indústria automobilística moldaram o perfil socioeconômico do Brasil. Somos um país extremamente dependente de rodovias e do transporte sobre rodas. No início do século 20, as maiores cidades brasileiras foram transformadas para melhor acomodar os carros – e não as pessoas –, num movimento focado em incentivar o consumo dos mesmos.

Deu no que deu. Do abandono da rua e da circulação e interação de pedestres à poluição e engarrafamentos homéricos. Como o que muita gente que estava no centro de São Paulo, na Misci, enfrentou até chegar no shopping Iguatemi, pouco tempo depois, para as apresentações das marcas Lilly Sarti e Relow. Entre essas gentes, estavam um tanto de modelos e maquiador Helder Rodrigues, que só nesta edição da SPFW está encarregado de cerca de 12 desfiles. Nesta quinta-feira, foi ele o responsável pelas três primeiras apresentações do dia – uma na Sala São Paulo, outra na Faria Lima e depois na Mooca. Ah, e os intervalos quase não chegavam a 1h no fim das contas.

Foi uma confusão. A equipe de produção estava em pânico com o vislumbre de uma bola de neve de atrasos; as estilistas, desesperadas, ligavam sem parar para bookers para saber o paradeiro de suas modelos; e os convidados se aglomeravam na frente do espaço sem saber muito o que fazer.

Dada hora, alguém gritou que as modelos teriam que entrar na passarela sem maquiagem. Felizmente não foi preciso. Mas foi por pouco. No fim, os desfiles rolaram como esperado, como conta a redatora-chefe Renata Piza:

“As irmãs Sarti foram de dobradinha e apresentaram dois desfiles em sequência, na sala montada no shopping Iguatemi – o primeiro, da Lilly Sarti, marca que já faz parte da história da SPFW, e o segundo, da Relow, etiqueta comandada por Renata, que fez sua estreia em formato físico. 

Lilly investiu em um modelo see now, buy now, com roupas de verão que desembarcarão imediatamente nas lojas. Uma espécie de mini guarda-roupa de balneário, com peças de linho e sandálias rasteiras daquelas que não dão vontade de tirar do pé. Simples, mas que cumprem bem o objetivo. Do dia para a noite, chegam ainda paetês e lamés, ecoando a vida de uma mulher que vai do pós-praia aos beachs clubs, bem o público target da marca.

Já na Relow, o clima muda e fica bem menos feminino, afinal de contas, essa é uma marca que nasceu para ser agênero. A coleção pincela elementos grunge aqui e ali, junta skate, esporte praticado pela própria estilista, e coloca algumas peças em vinil, frutos da colaboração com a influencer Jordana Maia – uma jogada de marketing de olho na GenZ. Mas confesso que achei o resultado um tanto quanto estranho, meio allien nesse planeta de tracksuits e moletons.”

Outra coisa que chamou a atenção da nossa redatora foram os saquinhos plásticos com frutas: Lembrou muito o trabalho do fotógrafo sul-africano Purienne“.

Mais quase duas horas de trânsito depois, no Komplexo Tempo, na Mooca, o segundo dia da SPFW não animou muito. Bons discursos, boas ideias e má execução, sabe como? Pois é. Foi só lá pelas 20h30, com 1h30 de atraso, que o cenário começou a mudar..

Numa vibe parecida com a de Airon, o diretor criativo da Another Place, Rafael Nascimento, gastou alguns minutos contando sobre a história de amor (sem final feliz) que embala a coleção. Basicamente, a ideia é mostrar como o amor não é uma coisa só e, principalmente, como não é sempre algo fofinho e romântico. Daí o nome Love Hurts (o amor machuca).

Conceitos à parte, o desfile é uma retomada e evolução do estilo da marca. É que faz quase três anos que a Another Place não desfila uma coleção só sua. Todas as apresentações que rolaram até aqui (digitais e presenciais) foram em parceria com alguma marca, colocando algumas balizas no processo de criação.

De conhecido tem as calças cargo, os jaquetões, as camisetas e malhas justinhas, as assimetrias, transparências e estampas psicodélicas. Mas não fica só nisso, não. As lingeries, que antes eram bem esportivas, agora estão mais sexy ou românticas, quase sempre com rendas pretas. O jeans, que vinha crescendo em demanda, aparece corsetado ou com uma resina metálica. Tudo naquele jogo bem fluido, sem essa de roupa de menino ou menina.

Depois de temporadas numa pegada mais urbana, street e até futurista, a Another Place chega mais quente, carnal, apaixonada e até humana. Coisa boa, afinal são coisas desse tipo que a gente tá querendo. 

 

E tarde noite, coube a João Pimenta o respiro criativo em meio a dois dias de apresentações com forte tino comercial. A palavra, é da repórter Giuliana Mesquita:

“João Pimenta fechou o segundo dia de SPFW com uma coleção que começa em tons esmaecidos e termina com vinhos e marrons mais fechados. Depois de seu cortejo fúnebre da temporada passada, que fechou a tríade de desfiles sobre a pandemia, esta coleção é uma espécie de renascimento. Daí vêm as referências históricas das ancas largas e dos sobretudos com detalhes no peito.

Neste desfile, o estilista conta que decidiu olhar mais atentamente para o seu cliente, mais maduro e maior do que aquele corpo que estamos acostumados a ver na sua passarela. No entanto, o que se viu não fez jus ao discurso. Entre os modelos, haviam apenas dois gordos. Ainda assim, o casting de homens mais velhos surpreendeu.

João diz que, no lugar de sua base clássica de alfaiataria, decidiu partir de um degagê, essa silhueta proposta através de drapeados arredondados que decoram jaquetas, calças e camisas. As estampas e pinturas à mão de músculos, órgãos e esqueletos remetem ao nome da coleção, Das Tripas Coração, e brincam com a noção de que todos somos iguais por dentro.

Após várias temporadas explorando o mix de texturas e tecidos pesados e supertrabalhados, o estilista experimenta, de leve, com uma imagem mais limpa, ainda que no geral ela seja bem carregada. E, nesse caso, não podia faltar um toque à la João Pimenta, como decotes drapeados que deixam as costas de fora. O estilista encontrou na subversão seu mercado, e é assim que ele continua alimentando seus clientes com algumas das peças masculinas mais interessantes do momento.”

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