Todas as silhuetas de Kim Kardashian

O editor de moda Lucas Boccalão analisa o impacto de Kim Kardashian na moda mundial no dia de seu aniversário de 41 anos.


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Foto: Getty Images



No dia 14 de outubro de 2007, estreou o primeiro episódio de Keeping Up With the Kardashians. Na época, o programa foi só um “tapa buraco” para o cancelamento de uma série com os Lohans, a família de Lindsay Lohan, que por algum motivo havia desistido do reality show. Naquele, o sobrenome de Kim, Kourtney e Khloé tinha pouca relevância em Hollywood.

A própria Kim era mais conhecida como a amiga chaveirinho de Paris Hilton e pelo vazamento de uma sex tape, feita com seu então namorado Ray J. Além disso, o nome Kardashian era lembrado pelo escândalo nacional do julgamento de O. J. Simpson, acusado pelo assassinato de sua esposa, Nicole Miller. Robert Kardashian, patriarca da família, era amigo de infância do acusado e foi seu advogado durante todo o processo.

Depois de 20 temporadas e quase 15 anos no ar, a série é uma das mais bem sucedidas da história da TV estadunidense. A família ganhou status de A-lister em Hollywood e suas participantes, de referências de estilo. Porém, em quesito de star power, Kim Kardashian tem posição de destaque.

Podemos colocá-la no mesmo patamar de integrantes da família real britânica ou dos Kennedy, anos atrás. A maneira como Kim é perseguida por paparazzis, loucos por uma foto de seus looks, não é muito diferente do que acontecia com Carolyn-Bessette na década de 1990. As roupas que usa somem das araras da mesma maneira – senão mais rapidamente – do que as de Kate Middleton e Meghan Markle.

Mais do que isso, Kim Kardashian foi responsável por dar o tom – e o corpo – para alguns dos principais acontecimentos de moda dos últimos anos. Exemplo mais recente é a renovação do desejo por estilistas icônicos dos anos 1980 e 1990.

 

Quando ela começou com suas pesquisas por tesouros vintage, uma de suas escolhas recorrentes eram as famosas peças de tule transparente com estampas-tatuagem de Jean Paul Gaultier. Elas foram uma obsessão na época de ouro do estilista, na década de 1990, e, depois que Kim começou a usá-las, novas versões passaram a pipocar por aí. Fashionistas raíz resgataram suas originais e rolou até uma collab com Lil Nas X. Também não é coincidência que exista uma turma de designers da nova geração claramente influenciados pela estética e prints do estilista francês, vide os looks de Pierre-Louis Auvray, Aune Collective e Charlotte Knowles.

Kylie Jenner, Kim Kardashian (de Thierry M\u00fcller) e Kendall Jenner, no baile do MET, em 2019.

Kylie Jenner, Kim Kardashian (de Thierry Müller) e Kendall Jenner, no baile do MET, em 2019.Foto: Getty Images

O icônico Thierry Mügler é outro que, depois de 20 anos sem desenhar para sua marca homônima, reconheceu o poder e influência da Kardashian e decidiu criar seu look para o baile MET de 2019. Em um episódio do reality show, ela conta como fez inúmeras viagens para Miami, onde o estilista mora atualmente, para o visitar, entender sua visão e, assim, colaborar com ele, um dos seus favoritos desde a infância.

Se observarmos as mulheres consideradas ícones de moda ao longo da história, podemos perceber que todas colaboraram com estilistas que entendiam seu universo visual ou que até criaram um novo para elas. Audrey Hepburn e Hubert de Givenchy, Yves Saint Laurent e Catherine Deneuve e Cher e Bob Mackey.

Obviamente, em 2021, uma parceria jamais duraria tanto tempo. Somos alimentados por uma quantidade tão monumental de conteúdo visual que um estilo se esgota rapidamente. Talvez o segredo de Kim seja, justamente, saber se renovar dentro de seu universo e ainda assim servir quase que anualmente – ou a cada temporada de seu reality show – um novo caminho para sua imagem.

Kim Kardashian, de Givenchy por Riccardo Tisci, em 2013.

Kim Kardashian, de Givenchy por Riccardo Tisci, em 2013.Foto: Getty Images.

Kim Kardashian de Balmain, em 2014.

Kim Kardashian de Balmain, em 2014.Foto: Getty Images

Sua primeira colaboração com um grande estilista foi com Riccardo Tisci, o primeiro nome de uma marca de luxo a aceitar vesti-la. Na época, ele ainda era o diretor criativo da Givenchy. Depois, veio a fase dos vestidinhos decorados de Olivier Rousteing, da Balmain, e a fase Yeezy, em que ela praticamente só usou roupas da grife de seu ex-marido, Kanye West.

Em 2019, ela conheceu Thierry Mugler, que a convidou para vestir dois looks do seu arquivo de alta-costura para a abertura da exposição Thierry Mugler: Couturissime, em Montreal – atualmente em exibição em Paris. Depois veio sua paixão por Vivienne Westwood, que rendeu vários looks exclusivos, como o longo usado na reunião de encerramento do último episódio do reality show.

Se alguém quer saber de onde veio o comeback dos corsets e dos bustiês, é daí. Graças a essa influência, agora uma peça da rainha do punk, estampado com as clássicas pinturas dos mestres renascentistas, pode chegar a até seis dígitos no mercado de luxo vintage .

Kim Kardashian com vestido Vivienne Westwood.

Kim Kardashian com vestido Vivienne Westwood.Foto: Getty Images

De volta para 2021, chegamos a mais polêmica e recente parceria. Após seu divórcio e começo da vida pós-vacina, Kim e Kanye se juntaram a Demna Gvasalia, diretor de criação da Balenciaga. No caso de Kanye, ele usa a marca em todos os eventos de lançamento do seu novo álbum Donda. Junto a Kim, combinam looks que incluem a famosa máscara estilo balaclava, cobrindo todo o rosto.

Desde o primeiro evento de Donda, passando pelo Met Gala até a participação de Kim no Saturday Night Live, na semana passada, vimos vários desdobramentos do look preto, justo e todo coberto. Por que? O que isso significa? O mundo inteiro fez essas perguntas sem ter uma resposta direta de nenhum dos envolvidos. Ainda assim, dá para arriscar algumas interpretações.

Demna é um estilista bastante reservado e misterioso. No início de sua carreira, ele só aceitava dar entrevista se as câmeras o filmassem do pescoço para baixo. Segundo ele, por timidez. Sem focar em seu rosto, conseguia falar e elaborar melhor suas ideias. Lembrem que Alexander McQueen fez a mesma coisa quando começou a ficar famoso e isso gerou ainda mais curiosidade sobre sua figura e marca.

Não podemos esquecer também que Demna é fã confesso de Martin Margiela, com quem já trabalhou, e usa vários códigos do mestre nas suas criações. O belga foi o primeiro estilista a cobrir o rosto de suas modelos e trabalhar o conceito de anonimato na moda. O estilista raramente aparecia, era fotografado ou saia ao fim de seus desfiles. Ele segue vivendo no anonimato e todo esse mistério alimenta, até hoje, a aura intocada da marca e o desejo pelos seus produtos.

Ainda falando sobre identidade e anonimato, o resort 2022 da Balenciaga começa com uma sequência de looks com rosto coberto por véus. Um pouco depois, percebemos que todas as modelos são clones digitais da artista e musa de Demna Eliza Douglas. Mais recentemente, durante a temporada de desfiles de verão 2022, em Paris, o estilista fez o desfile da marca em um tapete vermelho, com modelos e convidados caminhando simultaneamente, sem muita distinção em quem era convidado e quem estava ali para trabalhar e apresentar a nova coleção. A linha tênue entre real e virtual, verdadeiro ou falso, autêntico ou representação foi, genialmente, apagada – ou pelo menos camuflada.

Kim Kardashian e Demna Gvasalia no baile do MET de 2021.

Kim Kardashian e Demna Gvasalia no baile do MET de 2021.Foto: Getty Images

Outro código importante no vocabulário do estilista georgiano é o fetiche. Quando falamos sobre roupas fetichistas, é tudo sobre o toque do tecido na pele. Seja couro, látex ou, no caso dos looks criados para Kim, Spandex. A primeira máscara Balenciaga usada por ela tem zíperes na boca e nariz como alguns modelos de BDSM. Cobrir o corpo inteiro e escolher o que revelar é um ato de poder extremamente sexual. É estranho e fascinante pensar sobre essa ideia de se cobrir. Se a silhueta nua está desenhada, como ainda podemos dizer que não vemos nada?

Kim tem a silhueta mais reconhecível do mundo. Se a mulher mais famosa e fotografada do planeta escolhe pisar no tapete do Met Gala com o corpo inteiro coberto e ainda assim ser reconhecida, o questionamento de Demna segue firme e forte: o que é fake na moda ou não? Era mesmo a Kardashian ou só uma representação daquilo que conhecemos como ela? E o que conhecemos, é mesmo ela ou apenas uma construção imagética?

Resposta certa ainda não há, mas para quem se interessa – por Kim, por cultura pop, por moda ou todas as anteriores – fica aí essa reflexão.

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