Morte de Virgil Abloh encerra e abre capítulos da história da moda

Seu trabalho no resgate da narrativa e da renovação do streetwear como movimento negro é legado histórico e importante.


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Virgil Abloh, presente. Uma vida e tanto, 41 anos e um câncer no meio do caminho, no coração. Um silêncio de quem talvez não quisesse nenhuma compaixão de ocasião, uma morte vivida em silêncio, durante uma escalada profissional impressionante.

A história de Virgil na moda deixa marcas bastante inéditas e impressionantes. Muito menos porque ele esteve em grifes como Fendi e Louis Vuitton e mais pelo que fez com suas próprias mãos nesse meio.

Na Vuitton vinha ganhando enorme prestígio como designer das coleções masculinas e influência crescente depois que o grupo LVMH comprou 60% da Off-White, marca que o estilista criou em 2013.

Virgil já não opinava somente em suas criações, mas foi chamado a estender sua visão criativa aos demais empreendimentos do grupo. Nesse sentido, a LVMH precisava muito mais dele do que o contrário.

O estilista ascendeu na moda no crew de Kanye West, com quem desenvolveu uma parceria criativa ampla, que foi de identidade visual de discos e shows até o fenômeno de vendas da grife Yeezy. Em parceria com a Adidas, a Yeezy entrou no mercado de sneakers derrubando tudo com designs que já se tornaram icônicos.

Engenheiro civil e arquiteto, Virgil é filho de imigrantes que chegaram aos EUA, vindos de Gana, país da África ocidental. Muitas vezes citou a influência de sua mãe Eunice, uma costureira, em sua carreira como designer, assim como o que aprendeu em suas formações acadêmicas.

O raciocínio de Virgil nem sempre pôde ser alcançado por seus pares da indústria da moda. Certa vez ele falou sobre o poder da música em seu pensamento, de como a cultura dos DJs havia dado a ele a inspiração da engenharia dos samples. Mais do que juntar pedaços, estabelecer entre eles novos fluxos, uma conversa em que o resultado vai além da soma das partes, em que a origem empresta algo ao que surge como novo e é ressignificada por ele em um movimento multidirecional.

Virgil foi de fato um arquiteto. Não só de produtos, embora suas peças de roupa e acessórios deem notícia disso, basta olhar.

No mercado de luxo teve de lidar com as contradições. Muitas vezes seu discurso sobre representatividade da comunidade negra na moda foi confrontado no sentido das parcerias com conglomerados bilionários e preços altíssimos. Virgil admitia essa batalha interna, o que está inclusive na base de muitas de suas ações.

De suas contratações e shows aos projetos para apoiar artistas e criadores negros, de suas escolhas estratégicas aos fundos para financiar bolsas de estudo. Virgil foi um homem com um plano. Não o definitivo, não o sem defeitos, mas o dele. Em termos do que se pode fazer na moda, um dos mais bem-sucedidos da história.

Desde o final dos anos 1970, a dita alta moda tentou e conseguiu de todas as formas sequestrar o streetwear. Tornando-o evidentemente branco.

Streetwear, um dos maiores, senão o maior movimento da história do estilo. Criado por comunidades pobres e trabalhadoras de negros e latinos nos EUA.

O plano de Virgil chamava esse resgate. De autoria, mas também de ligação significante, de recontar a história. Há uma conexão dele com movimentos políticos, por mais que não fosse direta.

Se hoje sua Off-White entrou para a lista das marcas mais reconhecidas e pirateadas do mundo é porque algo do que ele fez foi efetivo. É porque o streetwear estava se reconectando ao seu berço histórico que a Gucci teve de reconhecer sua “homenagem” ao pioneiro Dapper Dan e devolver a ele seu lugar ao sol, à altura de seus feitos.

Antes do termo “decolonial” ser sugado inclusive pelos novos colonialistas Virgil já pensava e pesquisava o uso da roupa em vários países africanos. Pensava em seu conforto, em seus enfeites, em sua fluidez, seu não-binarismo ao lidar com gênero.

Em seu filme de apresentação da coleção de inverno 2021 da Vuitton, Virgil fez algo memorável. Agora pensamos que era a obra de um homem já ameaçado por um câncer agressivo, mas agressividade e a ameaça de morte não é algo exatamente estranho a um homem negro em um país racista, embora sejam obviamente coisas diferentes. O caso é que Virgil estava honrando sua visão, usando seus meios e o poder que havia conquistado.

Chamou o poeta afro-americano Saul Williams e o colocou em um cenário estranho, feito um sonho influenciado pelas construções de Mies Van der Rohe, povoado por homens com casacos de shapes inusuais e mulheres com roupas-espelho. O poeta vai dizendo nomes: Akhenaton, (Frida) Kahlo, (Walt) Whitman, (James) Baldwin, (Allen) Ginsberg, (Patrice) Lumumba, Gandhi, (Billie) Holiday, (Miles) Davis, (John) Coltrane, (Toni) Morrison, (Janis) Joplin, (Jimi) Hendrix, (Duke) Ellington, Nefertiti, evoca um mosaico de imagens e inspirações, mais ou menos óbvias, que convidam a uma costura mental de discursos e obras.

O texto que seguia era inspirado em Stranger in the Village, escrito por James Baldwin em1953. O original era sobre a experiência do autor em um vilarejo na Suíça onde jamais haviam visto uma pessoa negra. Embora as altas rodas da moda tenham visto outras pessoas negras ganharem destaque, Virgil chegou mais alto que todas elas. O resultado desse filme é também bem acima e fora da curva marqueteira sobre diversidade e “inclusão”.

Na moda se fazia assim: rouba-se o streetwear, bota-se nele uma cara branca, para-se de chamá-lo de gueto ou roupa de pobre, faz-se dele cool e desejável. A cereja do bolo é transformá-lo em coisa cara que pobres, incluindo a maioria negra, precisam querer e não podem ter.

Virgil retomou o streetwear e disse: isso que vocês querem foi criado por negros e está sendo renovado por um designer negro e seus parceiros. Sempre foi extremamente cool e criativo, não importa o que vocês tenham ouvido dos brancos. Quem sabe um “a” de história da moda sabe também que isso não é pouca coisa. Vejam, não estou dizendo que ele fez sozinho, mas fez ecoar a construção de milhões de designers e empreendedores negros num meio e com um alcance ao qual eles jamais tiveram acesso.

Ok, ele não resolveu a parte de ser caro e inacessível, não resolveu a idolatria de grifes, mas por que alguém poderia exigir isso de uma pessoa? Aliás, por que isso não é tirado a limpo com os donos dos grupos de moda que estão entre os homens mais ricos do mundo, com lucros astronômicos?

Se ele podia ter feito mais ou diferente nesse quesito é algo pode ser discutido, mas é bom observar bem em que termos. Virgil já disse bobagens mas nunca disse ser um militante radical, reivindicava antes a honestidade de seus propósitos. De suas crises internas e embates mais pessoais não sabemos, mas podemos, no contexto de suas ações, ver a importância coletiva de seus passos – que fizeram marcas, farão falta e serão início para outros pés e novos caminhos.

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