Olimpíada 2024: só sente falta de ídolos no esporte quem ignora as mulheres
Trazendo medalhas em vez de posturas controversas, as atletas brasileiras reescrevem o mito do “país do futebol” e mostram que há muito mais no esporte do que o tradicional clube do Bolinha.
Aconteceu, virou manchete. No dia 11 de fevereiro de 2024, a Seleção Brasileira masculina de futebol – atual bicampeã olímpica e símbolo máximo de hegemonia nacional esportiva – perdeu para a Argentina e foi eliminada dos Jogos de Paris. A notícia, claro, foi recebida com incredulidade. A última vez que tal tragédia havia nos acometido foi em 1964, quando ainda era permitido fumar dentro de aviões e computadores transmitiam informações via papel. Enquanto a imprensa esportiva se contorcia de decepção e rapazes inconformados ameaçavam queimar suas camisas de tanto desgosto, parecia até que a Olimpíada de Paris tinha decretado seu fim ali mesmo, antes de começar. Seria trágico se não fosse cômico. Daqui do futuro, não há espaço para lamentações.
A judoca Beatriz Souza com sua medalha de ouro. Foto: Getty Images
Das 20 medalhas conquistadas pelo Brasil nos Jogos, doze foram trazidas por mulheres. Se considerarmos a performance decisiva de Rafaela Silva na disputa de equipe mistas no judô, esse número sobe para treze. Com menos de 48 horas para o encerramento da competição mundial, Ana Patrícia e Duda entraram em quadra na sexta-feira (09.08) e levaram o ouro no vôlei de praia. No sábado (10.08), além da final do futebol feminino que nos trouxe a prata, a equipe de vôlei feminino enfrentou a Turquia na luta pelo bronze.
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É a primeira vez, desde 1896, que as Olimpíadas acontecem com 100% de equidade de gênero. Apesar do desempenho olímpico excelente e da grandeza inquestionável das atletas brasileiras, falácias como “foi-se o tempo que o Brasil dava orgulho no esporte” ou “não se fazem mais ídolos como antigamente” continuam ecoando por aí. A maestria da judoca Beatriz Souza no tatame trouxe a primeira medalha de ouro. A ginasta Rebeca Andrade fez do solo céu e superou a maior ginasta dos últimos tempos. Rayssa Leal, skatista desde os 6 anos, é a medalhista olímpica mais jovem da história do Brasil. O rosto e o nome de todas elas foram exibidos exaustivamente em todas as grandes mídias, inclusive internacionais. Mesmo assim, alguns insistem em não dar a devida importância a talentos sem cuecas e se recusam a cantar vitória sem ter um homem de estimação para chamar de seu. Fica difícil apelar para a falta de informação. O que parece estar ausente é a disposição para reconstruir referências.
As medalhistas Julia Soares, Flavia Saraiva, Rebeca Andrade, Lorrane Oliveira e Jade Barbosa, da ginástica artística. Foto: Getty Images
O machismo existe, está aí, sempre esteve — mas o contexto atual prova que é preciso avançar na discussão. É fácil entender porque Marta não é valorizada da mesma forma que Pelé, difícil é desafiar as estruturas que perpetuam essa desigualdade. Enquanto existirem barreiras institucionais e culturais, como a falta de patrocínio para as atletas, comitês coniventes com assédio e escassez de uma cobertura midiática justa, para além dos esporádicos Jogos Olímpicos, continuaremos a ver discrepâncias no reconhecimento e valorização dos esportes femininos.
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É momento de fazer barulho, sim, mas não só pela empatia. Sozinha, ela não transforma a realidade. De que nos vale esperar a declaração de Neymar sobre o desempenho de suas colegas de profissão? O que muda, na prática, com essa validação? As boas intenções são legítimas, mas nenhum centavo dos 2,5 milhões que ele fatura por dia será enviado gentilmente para o bolso delas – que não ganhariam esse valor nem somando 12 meses de salário. Em um cenário de mulheres protagonistas, pouco deveria importar (ou surpreender) a indiferença masculina. É o que se espera.
O time de futebol feminino comemora na semi final contra a Espanha. Foto: Getty Images
Reconfigurar é preciso, entender o mundo que estamos, também. Tão importante quanto proporcionar condições de trabalho dignas e equivalentes para as atletas em atividade, é permitir que meninas possam sonhar com um futuro no esporte. Aqui, identificação faz diferença, reconhecimento – no sentido de olhar para outra pessoa e se enxergar nela – muda tudo. Daí, a importância de se destacar, muitas vezes e quantas outras forem necessárias, que a maior parte das medalhas do Brasil foi conquistada por mulheres negras. Isso não é identitarismo, é reforço de possibilidade. Em um país marcado pela desigualdade racial e de gênero, é relevante, sim, colocar em caixas altíssimas que mulheres negras brasileiras, capacitadas majoritariamente por projetos sociais, fazem parte da elite do esporte mundial.
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O Brasil ainda é o país do futebol, do vôlei, do judô. É o país da ginástica desde Claudia Magalhães, Luísa Parente, Daiane dos Santos, Daniele Hypolito. É o país do atletismo também, com Flávia Maria de Lima disputando os 800 metros em meio à luta judicial contra uma acusação infundada de abandono parental. É o país da esgrima de Nathalie Moellhausen, única representante brasileira da modalidade, que competiu bravamente após receber um diagnóstico de tumor no cóccix. É da surfista Tatiana Weston-Webb, da nadadora Ana Marcela, da jogadora Cristiane Rozeira, da boxeadora Beatriz Ferreira.
Não faltam ídolos, faltam homens. E quem quiser falar de medalhas e coragem na Olimpíada de 2024, vai ter que aprender a conjugar vitória no feminino.
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