Met Gala 2024: Vale a pena vestir de novo?
O tapete vermelho do Met Gala deste ano mirou no respeito à história e acertou no conservadorismo.
O tema da exposição do Costume Institute do Museu Metropolitano de Nova York (Met) neste ano é “Sleeping beauties: reawakening fashion” (belas adormecidas: despertando a moda). Composta de itens antigos e/ou frágeis demais para serem usados (a se questionar pelos looks de alguns convidados), a mostra explora a efemeridade da moda, a importância da história, sua manutenção e como tecnologias de agora podem contribuir para tudo isso.
Para a festa de abertura, o Met Gala, o dresscode oficial era “O jardim do tempo”, mesmo nome do conto de 1962, de JG Ballard. E é aqui que o fubá começa a engrossar. A obra do escritor nascido na China e radicado na Inglaterra narra a vida do Conde Axel e sua esposa, em uma mansão cercada por muros e com jardins exuberantes de flores cristalinas. Do lado de fora, uma multidão revoltada ameaça o paraíso do casal. O B.O é evitado pela colheita de uma flor que faz o tempo retroceder – até que elas acabam.
Na primeira segunda-feira de maio, dia 6, a vida imitou a arte de mais de uma maneira. Profissionais da editora Condé Nast, principal host do evento, planejavam uma manifestação para reivindicar a sindicalização de seus funcionários. Os termos do acordo foram aceitos horas antes do início da recepção de convidados. Rolaram ainda protestos pró-Palestina e toda a confusão da possível proibição do TikTok, um dos anfitriões da noite, nos EUA. Vanessa Friedman, crítica do The New York Times, escreve bem sobre os paralelos entre a literatura e a realidade.
Tyla sendo carregada no Met Gala 2024. Foto: Getty Images
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Teve também representações de uma moda parada no tempo. De um ponto de vista otimista, a abrangência do tema desta edição permitiu uma interpretação mais livre para os convidados. Os looks iam do esplendor à decadência, bem como imaginou JG Ballard, até pérolas do passado – uma penca de Alexander McQueens e quase toda a coleção de alta-costura da Maison Margiela.
De um ponto de vista pessimista, impressiona a quantidade de roupas impraticáveis. Não precisa de muita pesquisa para encontrar vídeos e fotos de pessoas carregadas, seguradas ou movimentadas por assistentes devido à falta de mobilidade do que vestiam. Já aconteceu antes, sempre tem uma ou outra convidada que não consegue subir as escadas porque o vestido é justo demais ou que caminha em câmera lenta e com muito esforço, tamanho é o peso e comprimento do tecido que arrasta por onde passa.
Volumes estruturados do pescoço para cima, cabeças e rostos cobertos – junto aos florais, plissados e drapeados – foram tendência no tapete vermelho deste ano. Além da pré-estreia da exposição, o Met Gala oferece um jantar. Como faz para comer desse jeito é um dos mistérios da fé. E se as imagens lembram trajes religiosos constritivos ou vestes de tempos de repressão feminina, pode não ser mera coincidência.
Cardi B. no Met Gala 2024. Foto: Getty Images
Faz algumas temporadas que acompanhamos propostas e discursos pró-criatividade, anti-mesmice pasteurizada. Criações sem filtro andam escassas, são coisas raras. As que fazem sentido, emocionam e têm apelo e potencial comercial, tudo junto, nem se fala. Daí o baque da apresentação John Galliano para Margiela em janeiro.
Que bom ver gente se arriscando e experimentando com visuais fora do padrão. Bora lá, sem parar. Só não pode esquecer que ano é hoje. Diz que moda é sobre novidade, né? Então não dá para voltar sei lá quantas casas para quando roupa desconfortável, aprisionadora e limitante era aceita e almejada.
Liana Padilha cantou que “mulheres mascaradas enclausuradas invadiram a passarela”. Era a trilha do desfile de inverno 2003 do André Lima, e a frase foi retirada de uma crítica negativa à outra coleção do estilista, publicada dois anos antes. Na virada do milênio, as experimentações e liberdades comportamentais, culturais e sexuais que definiram os anos 1990 começavam a conquistar o mainstream.
Zendaya de Maison Margiela no Met Gala 2024. Foto: Getty Images
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Era a época da cintura baixa, barriga de fora, frente única, calça skinny, microminissaia, bronzeamento artificial e marquinha de biquini o ano inteiro. O guarda-roupa – e as passarelas – acompanhavam as mudanças aceleradas nas vidas das pessoas. De lá para cá, a velocidade de transformação só aumentou, aí freou e agora parece querer engatar a marcha ré.
No último sábado, dia 04 de maio de 2024 – DOIS MIL E VINTE E QUATRO –, em show histórico na praia de Copacabana, Madonna provocou reações idênticas às de sua primeira apresentação no Brasil, em 1993 – MIL NOVECENTOS E NOVENTA E TRÊS. No fim da década de 1980 e início da de 90, a artista desempenhou papel crucial na batalha por liberdade, emancipação e liberdade feminina – em todos os sentidos.
Que tem uma onda conservadora ganhando força aqui e no mundo não é novidade. Talvez seja apenas discreta ou despercebida. Muita gente cansou do engajamento e compromisso social depois de outubro de 2022. Foi puxado mesmo. Mas direitos humanos, civilidade, respeito e coexistência não se limitam ao debate político, nem podem entrar na lógica de raciocínio binário nada eficiente que virou regra nas redes e na vida.
Madonna em show histórico no Rio de Janeiro. Foto: Getty Images
São nas miudezas cotidianas, nas banalidades do dia a dia que o conservadorismo se manifesta de maneira mais expressiva e influente. Está na rejeição aos temas de identidade de gênero e sexualidade na novela das nove, um remake da produção que causou polêmica 30 anos atrás (mesmo ano em que Madonna foi manchete de jornal por dizer “bunda suja” no palco do estádio do Morumbi). Está na intolerância a comportamentos que contrariem mandamentos religiosos. Está na reprovação de estilos musicais, ou manifestações culturais como o funk, o rap e, por que não, o próprio Carnaval. Está na inconformação com a liberdade, independência e poder de uma mulher de 65 anos.
Está também em quem é aplaudido no tapete vermelho, nos palcos, nas passarelas, o comentado e compartilhado nas redes sociais, o que é enaltecido como tendência e até escolhas pessoais, seja uma curtida, seja uma compra inofensiva (será?) naquela marca nova, que está todo mundo falando.
Olhar para o passado, estudar e respeitar a história é essencial. O problema é querer viver de novo o que deu ruim.
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