O alfaiate, a padoca, o barbeiro: as histórias de Pelé em Santos
Nos arredores da Vila Belmiro, o atleta mais famoso do planeta se sentia em casa. A jornalista e santista Carolina Muniz relembra as marcas que o rei deixou pela cidade.
Magnificente na genialidade, Pelé era grandioso também na simpatia. Quando chegava ao ateliê de seu alfaiate, que ficava nos fundos do casarão da minha tia-avó (e madrinha) Rosa, lá na década de 1970, a Rua Saturnino de Brito, em Santos, parava. Não demorava muito para que a vizinhança notasse o carro estacionado na porta – todo mundo na cidade, claro, conhecia o dele.
Bastavam poucos minutos e uma multidão se fazia ali. Vinha gente com camisetas, pôsteres, fotografias e bloquinhos de papel a tiracolo pro Camisa 10 autografar. Num tempo em que o celular ainda levaria décadas para estar ao alcance das mãos, a letra do Rei do Futebol registrava e eternizava o encontro. Era a selfie da vez. E Pelé atendia a todos, sem exceção, com sorrisão, abraços e a peculiar caligrafia, perfeitamente arredondada – até o acento agudo, no segundo E, no formato de uma bola de futebol, não poderia ser mais acertado.
“Depois de provar os ternos que o seu Sílvio fazia sob medida para ele, Pelé aceitava a xícara de café que a madrinha Rosa passava, religiosamente, toda vez que ele aparecia”, relembra minha mãe, Ana, a quem ele carinhosamente chamava de lorinha. “Oi, lorinha, vem cá!”, dizia. “Sua mãe, serelepe, sempre corria dele! Vinha se esconder atrás de mim ou da sua madrinha”, reconta minha avó, Lou, quase 50 anos depois dessas cenas, gravadas na memória. Não saberia dizer quantas vezes ouvi vovó e minha mãe contarem essa história, ao longo da minha infância.
Pelé com seu Fusca, em Santos, na década de 1960. Foto: Getty Images
Anos mais tarde, ouviria, na redação do jornal, ainda foca (recém-formada em Jornalismo, pela Universidade Católica de Santos): “Ligaram avisando que o Pelé tá cortando o cabelo lá no Didi. Vamos!”. E lá iam o repórter da editoria de Esportes e o fotógrafo bater um papo com ele, enquanto o topete era milimetricamente aparado por seu fiel cabeleireiro. Foram mais de 60 anos frequentando o mesmo salão, em frente ao estádio Urbano Caldeira, na Vila Belmiro – a Vila a que Pelé deu o tamanho de um país.
Para além dela, o Menino da Vila adotou Santos como casa. Do pãozinho do café da manhã às preciosidades (chuteiras, camisas, troféus etc.) que compõem o acervo real do Museu Pelé, na região central da cidade, quase tudo por aqui tem muito dele. Batizada de A Santista, a padoca no Canal 4, que é reduto de torcedores e ex-jogadores do Santos Futebol Clube, inaugurou, em 2011, uma estátua do craque. Pelé esteve presente nesse dia e, imitando a própria escultura, repetiu o inconfundível gesto das comemorações de seus gols de placa.
Aliás, não era raro estar por ali e vê-lo passar de carro, buzinando e acenando. Agora, é ao redor do monumento que estão parte das homenagens feitas nos últimos dias pela cidade. Pode-se ver também diferentes gerações reunidas, contando suas histórias sobre ele. Impossível nascer e crescer em Santos e não ter memórias afetivas do maior de todos os tempos.
Imenso demais para uma Vila e para uma cidade, Pelé viralizou nos quatro cantos da Terra – e olha que ainda estávamos anos-luz do YouTube, Instagram ou TikTok. Nem mesmo o termo existia quando o atacante se tornou planetário. E, também, pelo talento extraordinário, parecia ser de outro planeta – daí a homenagem da NASA, uma das mais lindas: a imagem capturada de uma galáxia espiral, nas cores do Brasil. Tão gigantesco e, ao mesmo tempo, tão nosso. Pelé era esta Vila, era esta cidade. E será sempre.
Carolina Muniz é santista, jornalista e ex-editora de reportagem de moda da ELLE Brasil.
(Foto no alto: Getty Images)
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