Novo Acordo de Bangladesh entra em vigor

Além de prever ações judiciais a varejistas cujas fábricas não cumprirem padrões de segurança do trabalho, o tratado exige que marcas ampliem diretrizes de segurança e saúde para além do país asiático. Mas isso será suficiente?


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Uma das iniciativas mais importantes após o desabamento do Rana Plaza, em 2013, foi a criação do Accord on Fire and Building Safety, também conhecido como Acordo de Bangladesh. Depois do desabamento do prédio que abrigava sobretudo fábricas de costura, e que matou mais de 1.100 pessoas, marcas e sindicatos firmaram um tratado que imputava responsabilidades legais às grandes varejistas mundiais frente a seus processos de terceirização da produção. Com validade de cinco anos, o Acordo venceu em 2018 e, desde então, iniciaram-se as negociações para garantir sua continuidade. Na quarta-feira (1.9), finalmente, ele voltou a vigorar, com novas diretrizes.

Uma rápida retrospectiva: quando etiquetas de marcas como Primark apareceram nos escombros, iniciou-se um exaustivo debate sobre quais as responsabilidades das corporações com sua rede produtiva. Embora essa conversa já houvesse acontecido – mais especificamente nos anos 90, com os primeiros casos de trabalho análogo à escravidão e trabalho infantil na produção de produtos da Nike –, foi por meio do Acordo que um movimento amplo de responsabilização legal foi alcançado. Pela primeira vez, as marcas poderiam ser processadas no seu país de origem por más condições de trabalho na produção de seus produtos em Bangladesh.

Articulado pelos sindicatos IndustriALL e UNI Global Union, o acordo foi originalmente assinado por quase 200 marcas internacionais, incluindo o grupo Inditex, da Zara. Entre as obrigações estavam a necessidade de inspeções independentes em fábricas, liberdade dos funcionários se sindicalizarem, instituição de mecanismos de denúncia e contribuições financeiras para treinamento de segurança e melhorias nas fábricas.

Elizabeth Cline, autora e diretora de defesa e política da Remake, organização da sociedade civil por trás da campanha Pay Up, afirmou à Dazed que mais de 87.000 problemas de segurança, incluindo mais de 50 fábricas que estavam em risco imediato de colapso, foram encontrados nas primeiras inspeções após a assinatura do Acordo. Ela afirmou ainda que mais de 90 por cento dos perigos originais identificados foram eliminados.

Após três anos de negociações, um contrato provisório foi firmado para dar continuidade ao Acordo inicial. Agora chamado de International Accord for Health and Safety in the Textile and Garment Industry, o novo tratado mantém a capacidade de sujeitar os varejistas a ações judiciais se suas fábricas não cumprirem os padrões de segurança do trabalho; responsabilidade compartilhada pela governança entre fornecedores e marcas; treinamento e monitoramento do comitê de segurança supervisionado pelo Conselho de Sustentabilidade RMG, com sede em Bangladesh; e um mecanismo de reclamações independente.

Entre as novas conquistas para esse acordo de 26 meses, estão o comprometimento das marcas a expandirem as diretrizes para pelo menos um outro país além de Bangladesh, a ampliação do escopo da cobertura para saúde e segurança geral, em vez de apenas segurança contra incêndio e construção, entre outras conquistas. Embora seja um tratado provisório, foi visto como vitória pelas lideranças, pois havia o medo de voltar à estaca zero, o que prejudicaria trabalhadores, principalmente após os impactos da pandemia. Já assinaram esse novo acordo a H&M e Inditex, e o esperado é que outros grupos assinem nos próximos dias.

Mas o Acordo é suficiente?

A própria demora das tratativas evidencia a importância do tratado, mas Kim van der Weerd, co-apresentadora do Manufactured Podcast, escritora, consultora e ex-gerente de fábrica de roupas, trouxe pontos pertinentes sobre alguns dos problemas do Acordo ser visto como uma solução exemplar. O primeiro deles tem a ver com colocar os fornecedores como um problema, quando a real questão é a má distribuição dos riscos e recompensas, o que deixa os fornecedores muito mais frágeis.

“Não estou dizendo que os fornecedores não são parte do problema. No entanto, as condições de trabalho inseguras não são o resultado de ‘maçãs podres’ ou policiamento ineficaz, elas são o resultado de riscos financeiros e recompensas desigualmente distribuídos”, afirmou ela em seu texto sobre o Acordo, no Medium. Para exemplificar o que Kim está dizendo, podemos pegar a pandemia e como a falta de pagamentos das varejistas aos fornecedores por pedidos já prontos quase levou a indústria confeccionista em Bangladesh ao colapso. No Brasil, um cenário não muito diferente escancarou a desigualdade entre os elos do setor e mais uma vez mostrou a situação de fragilidade das confecções frente ao grande varejo. Uma transformação para conquistas mais perenes e sólidas exige que os fornecedores deixem de suportar desproporcionalmente os custos de produção.

Outro problema é o formato de baixo para cima, que exclui fornecedores do diálogo. A tentativa mais recente de incluir a International Apparel Federation (IAF) foi malograda. Não incluir os fornecedores pode aumentar a tensão entre fornecedores e trabalhadores, algo que Karen alerta não ser particularmente ruim para as varejistas, pelo contrário: “narrativas de sustentabilidade que posicionam as marcas como protetoras dos trabalhadores, e colocam trabalhadores e gerentes de fábrica uns contra os outros, com cheiro de colonialismo, é uma tática de dividir e conquistar implantada para manter dois grupos marginalizados lutando entre si enquanto obscurecem o fato de que o “pedaço do bolo” proporcionado pelas marcas aos trabalhadores e proprietários de fábricas continua a diminuir”.

Em suma, o Acordo de Bangladesh é um avanço e, de fato, há melhorias inegáveis nas estatísticas de acidentes prediais no país. Mas ele não toca na estrutura do problema: as desigualdades entre os atores e como as práticas das varejistas em colocar nos fornecedores os custos de produção de forma adiantada e, com isso, imputar a eles o risco financeiro, tem garantido a elas maiores margens de lucro enquanto fornecedores e trabalhadores se espremem financeiramente com poucas garantias.

Nesse sentido, Karen questiona: “uma marca está disposta a assumir um compromisso financeiro igual a pelo menos 50% da demanda projetada por um período igual ao lead time total da cadeia de abastecimento? Ou, em segundo lugar, uma marca está disposta a fazer os preços de compra dependerem das variações das projeções de demanda dentro de um determinado período de tempo (o tempo total de produção do produto)?”. Caso positivo, isso realmente seria capaz de mudar a realidade de forma contundente.

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