Nas ruas, contra o feminicídio

Conversamos com a ativista Rachel Ripani, uma das organizadoras do movimento Levante Mulheres Vivas, que promove manifestações contra o feminicídio por todo o Brasil neste domingo (07.12).


feminicídio
Arte: Gustavo Balducci



Taynara foi atropelada e arrastada por mais de 1 km pelo carro do ex-namorado – ela perdeu as duas pernas. Evelin estava no trabalho quando levou cinco tiros, também do ex-companheiro. Laís sofreu ao menos 11 lesões corporais depois de recusar sexo com o namorado, o influenciador que se apresenta como “coach de masculinidade”, conhecido como “Calvo do Campari”. Allane e Layse foram assassinadas por um colega de trabalho. Mayra foi esfaqueada e morta pelo ex-marido, após meses de ameaças.

Essas são apenas algumas das manchetes que ganharam os noticiários nas últimas semanas – e estão longe de serem casos isolados. Na cidade de São Paulo, onde ocorreram a maior parte dos crimes citados, 53 casos de feminicídio foram registrados entre janeiro e outubro de 2025, o maior número desde que o crime foi tipificado, em 2015. No Brasil, segundo o Ministério das Mulheres, com dados da Senasp/MJSP e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, quatro mulheres foram vítimas de feminicídio por dia em 2024. E, apesar da brutalidade desses índices, ainda há um grave cenário de subnotificação – o que significa que o número real é ainda maior.

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Como resposta, o movimento Levante Mulheres Vivas, liderado pelas atrizes e ativistas Rachel Ripani e Livia La Gatto, convoca manifestações neste domingo (07.12) em capitais de todo o país (veja os locais e horários no perfil do movimento no Instagram). Em entrevista à ELLE, Rachel fala sobre a mobilização e comenta o crescimento dos casos de feminicídio no país.

Como surgiu o Levante Mulheres Vivas e qual é o objetivo central da manifestação deste domingo?
Fiz um vídeo sobre uma manifestação na África do Sul, onde as mulheres exigiam que o feminicídio fosse tratado como emergência nacional — lá são 14 mortes de mulheres por dia nesse contexto. As pessoas começaram a comentar “vamos para a rua?”. O post viralizou e eu fiquei esperando que algum coletivo organizasse o movimento – mas isso não aconteceu. Até que a Livia La Gatto, que é atriz e ativista, mas que também não é de militância organizada, me mandou uma mensagem dizendo: “Vamos começar eu e você?”. Abrimos um grupo no WhatsApp e colocamos nos nossos stories. Na primeira chamada, já havia 160 mulheres do país inteiro oferecendo ajuda. No dia seguinte, já eram comunidades e grupos com mais de 10 mil membros. Organizamos comitês estaduais e, em dois dias, manifestações foram confirmadas em mais de 22 capitais. 

O Levante tem alguma pauta específica para ser entregue a autoridades ou instituições públicas?
O objetivo central é mulheres vivas: parar o feminicídio. E que ele seja reconhecido como emergência nacional. Também defendemos a regulação das redes e a criminalização da misoginia. E queremos cobrar que leis e políticas já existentes sejam aplicadas — hoje, muitas não são. Há estados sem delegacia da mulher, políticas com orçamento irrisório, e partes da Lei Maria da Penha que simplesmente não são implementadas. 

Os últimos números divulgados mostram que o feminicídio segue crescendo no Brasil. Você acredita que estamos vivendo um momento específico de retrocesso cultural e social em relação às mulheres?
Na minha avaliação, sim. Esses números revelam muito do contexto atual: estamos vivendo um momento de retrocesso, agravado por uma inflamação digital que normalizou o discurso de ódio. Hoje, ouvimos pessoas dizendo coisas como “a Maria da Penha mentiu” ou “as mulheres inventam violência doméstica”, e isso mostra o quanto a violência contra a mulher foi naturalizada. Essa normalização distorce os sinais de risco e impede que muitas mulheres percebam que estão em perigo. Ao mesmo tempo, existe um movimento organizado de mentiras sobre o feminismo e sobre mulheres feministas, que alimenta um ambiente cada vez mais hostil. Há quem diga que parte do aumento dos casos pode vir de menos subnotificação, mas acredito que exista um crescimento concreto – e ele também evidencia falhas profundas na educação, que é uma das partes da Lei Maria da Penha que ainda não são implementadas. Os números de feminicídio escancaram justamente isso: um acúmulo de falhas sociais, culturais, educacionais e digitais que estamos deixando correr solto.

Onde está o principal gargalo: prevenção, atendimento, investigação ou punição?
Essa é uma ótima pergunta. Acho que a gente tem boas leis e, na minha visão, até boas intenções por parte do sistema. Mas ele ainda permite muitos buracos. A medida protetiva, por exemplo, muitas vezes vira só um papel na mão da mulher. Sem mecanismos como a tornozeleira eletrônica ou respostas rápidas às infrações, ela continua vulnerável — especialmente no momento da denúncia, quando o agressor pode reagir. Também vejo problemas na responsabilização e na forma como o Judiciário lida com esses casos. Até pouco tempo atrás, a guarda unilateral de um filho com o agressor não era automática para a vítima, o que pode gerar situações traumáticas. Além disso, faltam políticas que permitam que a mulher realmente saia da situação: creche, renda, rede de apoio. Muitas acabam revitimizadas no processo. Ao mesmo tempo, vemos parlamentares propondo leis para intimidar mulheres, como penas absurdas para “denúncias caluniosas”, mesmo já existindo previsão legal para isso. E hoje há mais de 240 tentativas no Congresso de enfraquecer a Lei Maria da Penha. Ou seja: há um ataque constante às proteções legais das mulheres, e isso alimenta a normalização da violência. Ainda não estamos protegidas como deveríamos.

Como o discurso conservador e misógino que cresce nas redes tem impactado a segurança e a vida cotidiana das mulheres, especialmente daquelas que colocam à frente dos movimentos?
Eu participo de um grupo de mulheres que produzem conteúdo feminista e é muito impressionante: muitas delas precisam ter advogado. Eu ainda não passei por nenhuma situação grave, mas morro de medo. Outras mulheres do grupo já foram ameaçadas de morte. Recentemente, uma escreveu: “fui ameaçada, aqui está o print, aqui estão os dados que consegui da pessoa — se acontecer alguma coisa comigo, vocês têm o registro”. Qualquer mulher que fale abertamente contra o machismo na internet está exposta a ameaças, distorções do que disse, ataques organizados. E isso é parte do motivo pelo qual, para nós, é tão importante regular as redes e tipificar a misoginia. Nenhuma de nós – e nenhuma mulher que conheço nas redes – está pregando violência contra homens. Nenhum grupo feminista faz isso. Mesmo assim, essas mulheres sofrem ataques todos os dias. E, quando denunciamos, muitas vezes o algoritmo responde que aquilo “não viola as diretrizes”. Ou páginas violentas, disseminando coisas horríveis, seguem no ar porque supostamente “não infringem as políticas”. As definições do que é aceitável precisam ser mediadas por pessoas, e não só por um algoritmo que sabe que quanto mais raiva gerar, mais tempo as pessoas ficam presas ali, gerando engajamento.

Na sua opinião, o que as pessoas ainda não entenderam sobre feminicídio – e que precisa ser dito com todas as letras?
Feminicídio é matar uma mulher porque ela é mulher. Vejo muitos homens questionando “como provar que esse é o motivo?”, tentando reduzir casos a “ele ficou bravo”, “foi latrocínio”, “foi uma discussão”. Mas quando olhamos para casos como o da Tainara, os sinais de misoginia são claros. O problema é que quem normaliza a violência contra a mulher desde cedo não reconhece esses sinais. O que precisa ser dito é que tudo começa muito antes da agressão física. Diminuir a mulher, desacreditar sua palavra, rir de piadas misóginas, tratar machismo como “brincadeira” — tudo isso faz parte de uma escalada que evolui da normalização para a degradação e, depois, para a violência sexual e física. Enquanto grande parte das pessoas não entender que feminicídio começa nas pequenas agressões e nos “discursos inocentes”, vamos continuar enxugando gelo.

Qual é o papel dos homens nesse debate e nessa mobilização?
No primeiro dia, naquele primeiro Zoom que abrimos, o Damien – irmão da Caroline Figueiredo, que morreu ao cair da sacada do apartamento em Belo Horizonte – participou. A família luta até hoje para que o crime seja reconhecido e responsabilizado como feminicídio, porque o agressor disse que ela “se jogou”. Quando abrimos a fala para ele, ficou muito claro: a gente não está escolhendo quem ajuda; todo mundo que chegar, a gente quer junto. E ele disse uma coisa muito forte: “Estou com vergonha de ser o único homem aqui”. Depois que perdeu a irmã, ele começou a militar e percebeu que, para cada 40 mulheres que se solidarizavam com um post, apenas um homem fazia o mesmo. Precisamos falar com os homens para que eles se impliquem. Porque, na verdade, eles são a cura para essa epidemia. A gente passa a vida dizendo para as meninas que elas têm que fazer defesa pessoal, não andar sozinhas… Mas por que não dizemos aos homens: “Parem de abusar de mulheres”? Eu acredito que o papel deles é estar junto e eles são muito bem-vindos nas manifestações. 

Como a mídia, os leitores, seguidores e cidadãos podem apoiar o movimento de forma concreta?
A gente gostaria da presença de todo mundo para pedir que as pessoas se coloquem a favor da vida das mulheres. Mas seguir e divulgar o perfil do Levante Mulheres Vivas (@levantemulheresvivas), e continuar debatendo esse tema, também já ajuda muito. Essa é nossa primeira manifestação. Não sabemos quantas pessoas vão aparecer, mas esperamos que sejam muitas, porque é importante mostrarmos que somos muitas! Acho importante tirar essas pautas da “caixinha” e falar sobre elas abertamente. Eu mesma não tenho todas as respostas, tenho muitas perguntas. E sinto falta de podermos debater, como cidadãos, temas que incomodam a todos. Independentemente do espectro político, ninguém merece morrer por ser mulher.

Se você ou alguém que você conhece está vivendo violência doméstica ou de gênero, denuncie pelo 180. O serviço é gratuito, 24 horas por dia e está disponível em todo o Brasil. Em caso de emergência, ligue 190.

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