Sonhos lúcidos: você consegue ficar no comando durante o sono?

Técnicas para se manter consciente enquanto dorme se popularizam e acendem o debate sobre os riscos e benefícios de controlar o próprio sonho. 


Sonhos lúcidos: ilustração colorida com relogio, borboletas e mulher com mãos de lagosta



Uma montanha no fundo do mar, um camelo gigante, a casa da avó. Um sonho caminha por muitas direções. Pela ótica da neurociência, psicanálise ou espiritualidade, essa dimensão do sono projeta imagens que estão incrustadas no inconsciente – pessoal e coletivo – e muito mais. Mas e se fosse possível permanecer atento quando o consciente escorrega?

Essa é a proposta das técnicas de sonhos lúcidos, ou seja, de estar consciente durante o sonho. Ao ir contra a ideia básica de que o sono é um instante sem controle e tentar tomar as rédeas desse momento, o sonho lúcido vem com a promessa de estimular o pensamento criativo, se divertir com a percepção do sonhar, aliviar pesadelos e até ajudar o desempenho esportivo.

Nenhum desses benefícios, ressalte-se, teve resultados conclusivos em pesquisas. Os riscos, variados, tampouco foram comprovados até agora.

Incertezas à parte, a curiosidade pelo assunto só cresce. Em sites como Americanas, Amazon e Submarino, é possível encontrar variados livros que ensinam a despertar no sonho. As buscas online pelo termo tiveram alta expressiva durante a pandemia.

“A gente viu um pico de interesse quando tivemos um aumento de questões como depressão, ansiedade e insônia, relacionadas ou não à pandemia”, explica o pesquisador do Instituto do Cérebro da UFRN, Sérgio Arthuro. No período de pandemia, também houve um aumento nos relatos de sonhos lúcidos, ainda que sem indução consciente, conta Arthuro. “Acreditamos que foi uma forma de defesa do organismo a pesadelos mais frequentes.”

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O termo “sonho lúcido” foi cunhado em torno de 1915 pelo pesquisador Frederick Van Eeden, mas a ideia de sonhar sabendo que se está em um estado onírico vem de muitos antes. Sócrates, Platão e Aristóteles já falavam de certo modo sobre o assunto. O budismo e hinduísmo, por exemplo, abordam um estado de consciência plena durante o sono. 

Como estimular os sonhos lúcidos?

“Uma das técnicas é despertar um pouco antes do horário em que você acorda, provavelmente no estágio REM (Rapid Eyes Movement, ou Movimento Rápido dos Olhos), fase em que muitos sonhos acontecem”, afirma o pesquisador. A ideia é não fazer movimentos bruscos ou abrir os olhos, para tentar voltar ao mesmo sonho e percebê-lo. “O problema dessa técnica é que você interrompe ciclos fisiológicos do sono, mas é uma questão da técnica, não do sonho lúcido em si”, diz Arthuro.

Outra abordagem é se perguntar, quando acordado, se aquilo que você está  observando é um sonho. “A ideia é que esse questionamento entre no sono.”

Por fim, o neurocientista Andrei Mayer, membro da Society for Neuroscience (SFN), sugere uma terceira técnica: “Acordar e ficar desperto entre 30 minutos e duas horas; depois dormir”.

Independentemente de abordagem, além do bom e velho despertador, existem opções no mercado como máscaras de dormir com LED e outros dispositivos com estímulos visuais, sonoros e táteis, que prometem ajudar no controle do sonho – de novo, nada disso tem efeito comprovado. “O objetivo é que o estímulo lembre a pessoa, quando estiver no sonho, de que na verdade está dormindo”, diz Mayer. 

Quais os possíveis benefícios dos sonhos lúcidos?

De acordo com Arthuro, os sonhos lúcidos podem ser benéficos para grande parte das pessoas e cita, por exemplo, “o prazer de ‘se ver’ voando”. Diferentes pesquisas mostram que o humor melhora ao acordar após uma experiência desse tipo. “Existe um artigo que indica a possibilidade de usá-lo como tratamento coadjuvante para depressão. Como ela é um transtorno de humor, talvez possamos estabelecer essa ligação”, pontua. “Mas esse é apenas um trabalho.”

A principal aplicação clínica da técnica seria para quem tem muitos pesadelos. O comportamento é muitas vezes relacionado ao transtorno do estresse pós-traumático (TEPT), quando o trauma é revivido dessa forma. Assim, o sonho lúcido ajudaria a pessoa a entender que aquilo não passa de um pesadelo. “Ela conseguiria ter algum aspecto de controle”, pontua Andrei Mayer.

Alguns autores sugerem até a hipótese de que, em pacientes com lesões medulares, seria possível treinar movimentos durante o sonho. Da mesma forma, esportistas poderiam aprimorar o condicionamento físico e seus desempenhos.

Produtividade até dormindo?

Assim como o pesquisador Arthuro, o psicanalista Rafael Cavalheiro também notou  uma maior busca pelo tema na pandemia, quando observou um movimento de muitos pacientes terem sonhos parecidos. “É importante essa relação: se fala mais de sonhos lúcidos num momento em que algo permeia o inconsciente de uma maneira tão compartilhada, o que produz uma série de reações.”

Para Cavalheiro, a indução de aprimoramento do sonho está um pouco ligada a uma lógica de performance e felicidade. E isso não é lá muito positivo: “Até uma produção do inconsciente precisa ser domesticada para o sujeito ter um melhor resultado. Assim a gente perde totalmente a possibilidade de pensar na singularidade, que é onde o sonho para a psicanálise vai importar”, analisa. 

A técnica dos sonhos lúcidos, por sinal, não é a única que atua nessa tentativa de controlar o que, a princípio, deveria ser incontrolável. “Temos um contexto de técnicas, como o sono polifásico (em que a proposta é tirar cochilos ao longo de 24 horas e intercalar com atividades), que parecem induzir a produção e a aceleração”, explica a psicóloga clínica Ivandra Rebeca Menezes.

Coincidentemente ou não, nesse mesmo cenário “há uma eclosão de transtornos de ansiedade, relacionados também à dificuldade de sono.” 

Quais os riscos dos sonhos lúcidos?

Supostamente, o sonho lúcido é gerado com a ativação de áreas cerebrais relacionadas a experiências de fato vividas, regiões de controle motor e processamento emocional e sensorial, explica Andrei Mayer. Uma dessas regiões é o córtex pré-frontal (atrás da testa), ligado à capacidade de raciocínio, planejamento e autopercepção.

Contudo, alternar o padrão de atividade das áreas cerebrais (agitado/relaxado) também é vital para a boa manutenção das funções do cérebro e do corpo, de reparação, aprendizado emocional e amadurecimento, lembra o neurocientista. “Se há maior agitação em uma fase do sono em que a atividade é normalmente reduzida, talvez algo seja atrapalhado”, diz Mayer.

Não há conclusão sobre os efeitos da indução em quem se encontra em quadros clínicos como a esquizofrenia, quando há dificuldade de perceber a realidade. “Alguns trabalhos indicam que beneficiaria, pois, ao treinar a consciência de sonhar, seria mais fácil perceber uma alucinação”, diz Mayer, ressaltando que isso ainda é apenas uma hipótese.

A insônia também é um impasse. De acordo com Arthuro, os estudos analisados não apontam prejuízos para quem tem insônia, a não ser nos casos da  insônia de manutenção de sono, ou seja, quando se acorda várias vezes à noite. A maior parte das pessoas, explica ele, tem a insônia de início de sono.  

Pelo sim, pelo não, Andrei Mayer desaconselha técnicas de sonhos lúcidos para quem tem dificuldades de dormir: “Não se force a fazer nada que vai atrapalhar seu sono. Tocar uma estratégia dessa é muito arriscado”. E pondera: “Não existe nada que seja bom para todo mundo. Há grupos de risco que podem não se beneficiar”. 

Como dito no início, as consequências da lucidez em um momento que deveria ser de mergulho no inconsciente não são precisas. “A comunidade científica precisa avaliar mais, não tem consenso”, diz Mayer.

 

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