2024: o ano de Naomi Campbell
De volta à ELLE, revista em que fez o seu primeiro ensaio de moda, Naomi Campbell fala dos 40 anos de carreira prestes a virar exposição, maternidade e a nova coleção da Boss.
Naomi Campbell está dentro de uma caixa, montada em um estúdio londrino, para o nosso ensaio de capa. Sessões assim demoram um dia inteiro, mas Naomi precisa parar às 15h. “Desculpe, mas tenho que ir para a escola da minha filha”, ela diz.
Quil Lemons, o fotógrafo em ascensão, é quem clica em silêncio e precisão cirúrgica. Na caixa de som toca Wizkid, enquanto Naomi posa serena. São muitas lendas e mitos que cercam a supermodelo, mas, no set, a sensação é de calmaria. Parece que os ruídos que viviam em seu encalço ficaram para trás.
Naomi Campbell, ELLE UK. Foto: Quil Lemons
Quando a primeira foto é alcançada, ela veste um roupão branco e chinelos, e vê o próximo look com Georgia Medley, stylist e editora colaboradora da ELLE. O shooting completa um ciclo para Naomi: “A minha primeira grande sessão de fotos foi com a ELLE. Faltava um mês para eu completar 16. Eu nunca vou me esquecer das pessoas envolvidas. Mesmo que a gente não tenha mais contato, elas sabem que eu sou grata, porque eu sei de onde eu vim.”
Foi a scouter de modelos, Beth Boldt, que avistou Naomi pela primeira vez, de uniforme escolar e fazendo compras com amigos, em Covent Garden. Apesar da resistência da mãe, Valerie Morris-Campbell, três meses depois, já estava em um avião, em direção a New Orleans, para o seu primeiro trabalho com a ELLE. “Minha mãe acabou concordando, e eu fui. Nas fotos, eu pulava e sorria. Eles sabiam que eu tinha formação em dança, então queriam esse tipo de pose. Eu nem sabia o que era modelar.”
Desde então, ela nunca mais parou. Hoje, alia trabalho, fama e maternidade. Na carreira, acumula 25 capas da ELLE. Ela representou, ao mesmo tempo, o glamour e as subculturas da moda britânica. Dublando “Freedom”, de George Michael, ao lado de Cindy, Lindy e Christy, virou celebridade. Fotografada de braços dados com Mandela, na África do Sul, ajudou a incorporar uma imagem de poder à mulher negra, raramente vista na mídia. Naomi representou e representa muito.
Naomi Campbell, ELLE UK. Foto: Quil Lemons
Hoje, ela se equilibra entre cuidar dos dois filhos e uma carreira para lá de bem-sucedida. Em 2021, anunciou a chegada da primeira filha, aos 51 anos. No ano passado, teve outro filho, aos 53. Em paralelo, começou a desenhar roupas, criando uma coleção para a BOSS e, em junho, será o tema da exposição Naomi, do Victoria and Albert Museum. A retrospectiva de seus quase 40 anos de carreira será a primeira desse tipo. Em termos profissionais, 2024 promete ser o maior ano da supermodelo.
E, ainda assim, ela está tentando associar esse trabalho com chegar a tempo na escola da filha. A moda é um mundo desafiador para as mães, com um calendário anual repleto de desfiles em destinos variados e eventos tarde da noite. Muitos na indústria dizem que se dedicar à moda é mais um estilo de vida do que um trabalho em si, tamanha a entrega. E, para aqueles em cargos de poder, isso talvez tenha um peso ainda maior. Mas Naomi, que desde sempre teve que lutar, seja por tratamento e pagamento iguais aos dos colegas brancos, seja defendendo uma maior diversidade no setor, não tem problema com o novo desafio.
“As coisas mudam quando você se torna mãe, e eu não sou diferente de qualquer outra”, ela diz. “Tive que tomar certas decisões. Desde que minha filha começou a frequentar a escola, me ofereceram trabalhos que eu adoraria fazer e faria se pudesse. Mas eu tenho que acompanhar o primeiro dia da minha filha na sala de aula. Isso é muito importante. Eu tenho que buscá-la. Meus filhos vêm em primeiro lugar”, conta.
E é justamente essa Naomi múltipla a inspiração para a nova coleção da BOSS, que tem a mistura exata de roupas práticas e glamurosas. Chamada de The Naomi x BOSS, ela chegou às lojas em fevereiro, em um momento em que há muita discussão sobre o número cada vez menor de designers mulheres na chefia de grandes marcas de moda. O debate ganhou ainda mais força quando Sarah Burton deixou a Alexander McQueen. Naomi literalmente entrou com lágrimas nos olhos no desfile final da designer, em Paris, no ano passado. “Foi emocionante”, ela lembra. “Sarah não é apenas uma grande amiga, como um talento enorme. A gente sabe que não há muitas designers mulheres em cargos de chefia. Seria bom que rolasse uma mudança nesse sentido também. Precisa ser igual. Vou defender sempre a Sarah e as estilistas com quem trabalhei, como a Donatella.”
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Quanto às suas roupas, Naomi diz que há algo para todo mundo. “Eu queria fazer peças confortáveis, que favoreçam o corpo”, ela explica. A coleção cápsula de 40 itens tem, por exemplo, malhas descontraídas, tanto para viagens, quanto para reuniões de trabalho. “É chique e elegante. Uma coleção simples, mas de boa qualidade.”
O seu uniforme de viagem consiste de coisas que “abraçam o corpo, com compressão, para evitar o inchaço”. E, sim, ela continua bastante cuidadosa com a higiene em voos. Há cinco anos, um vídeo de sua rotina no aeroporto, envolvendo luvas, máscaras e uma infinidade de lenços umedecidos antibacterianos viralizou. “Fui xingada de tudo quanto é nome. Eu uso máscara há mais de 20 anos, e nem lembro de quando comecei a limpar o assento do avião”, diz ela sobre outro vídeo que postou em seu canal no YouTube, um ano antes da pandemia de coronavírus.
Meses depois, ela foi fotografada usando um macacão de proteção completo, do tipo hazmat, em um voo de Los Angeles para Nova York. “A covid é uma coisa muito séria e perdemos muitas vidas. Virou o mundo de cabeça para baixo e nos deixou paralisados. Não fiz isso por diversão. Não vejo graça alguma. A minha rotina é para que eu me sinta confortável psicologicamente. Pode parecer algo radical para os outros, mas, para mim, não”, ela afirma. “Quando viajo, tenho que estar pronta para trabalhar quando chego ao destino. Não posso me dar ao luxo de ficar doente. As medidas de prevenção que tomo são para manter meu corpo saudável.”
Naomi Campbell, ELLE UK. Foto: Quil Lemons
Segundo Naomi, entra nessa lista o autocuidado. “Eu tento comer bem. Tenho lutado boxe há anos para condicionar o corpo. Não sou perfeita, mas faço o que posso”, conta. E ela também acredita em orações. “São muito importantes. Como você sabe, estou em processo de reabilitação alcoólica e o levo muito a sério. E não, não sinto mais falta de álcool. Me sinto melhor sem ele. Em qualquer lugar que seja sagrado ou ligado à espiritualidade, eu vou rezar.”, diz.
Nascida em Lambeth, Inglaterra, Naomi passou parte da infância na Itália com a mãe, que trabalhava como dançarina. Mais tarde, ela foi morar com parentes em Londres, enquanto a mãe fazia turnês pela Europa. E fica claro o quanto que a experiência da mãe, viajando e traçando um caminho para si como artista, a inspira: “Eu quero que meus filhos vejam o mundo e conheçam diferentes culturas, como a minha mãe fez comigo”.
Além da mãe, as mulheres que Naomi mais admirava enquanto crescia eram gigantes. “Josephine Baker, Iman, Tina Turner, Bethann Hardison e Diana Ross. Mulheres que demonstravam força e poder, exibiam seus talentos artísticos, permanecendo fiéis a si mesmas. Respeito aqueles que têm integridade e falam a verdade, quer a gente queira ou não”, diz.
Bethann Hardison, ex-modelo e hoje agente de Naomi, conheceu a britânica quando ela tinha 14 anos. Ela afirma que a supermodelo nunca teve medo de dar as suas próprias opiniões, um traço importante para quem crescia numa área em que o sexismo e o racismo sempre estiveram presentes. “Eu costumava chamá-la de minha soldado, porque ela lutou desde o início por sua sobrevivência”, diz Bethann. “Ela sempre soube se cuidar. Acho que é dela mesma.”
Bethann é reconhecida por seu trabalho de décadas para diversificar a indústria da moda, muito antes dessa ideia se popularizar. A sua vida e trabalho são contados no documentário Invisible beauty, do qual Naomi é produtora executiva. “Nunca me considerei uma amiga de Naomi. Me vejo como mãe. Eu era uma guia, ajudando. Se ela estivesse chateada com alguma coisa ou não concordava com o cachê oferecido, ela vinha e me falava. Eu era a mãe dela nos Estados Unidos”, diz. “Ela sempre batalhou muito. Certa ou errada, sempre se manteve firme.”
Quando Bethann fundou a Black Girls Coalition, em 1988, para celebrar a nova onda de modelos negras que surgia em uma indústria homogeneizada e desafiar o mundo publicitário a diversificar suas campanhas, ela convocou Naomi e um grupo de colegas. Há uma foto famosa do grupo numa entrevista coletiva: Naomi, Roshumba, Tyra Banks, Veronica Webb e Gail O’Neill, entre outras, ao lado de suas mentoras, Bethann e Iman. “Foi muito bom ver todas reunidas, numa área tão competitiva, e mostrar que havia uma meta comum. Eu estava educando, mostrando o que elas poderiam fazer”, diz Bethann em sua casa, no México.
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Naomi diz que Bethann a ajudou a entender o poder de reivindicar mudanças. “Ela me deu a base, me fez sentir parte de uma história que ela estava tentando mudar para melhor. A história de todas nós, as modelos na foto de 1988. Isso também me ajudou a ouvir relatos de outras pessoas e nos unirmos. Entender que eu não estava sozinha aos 18 anos, que eu tinha Iman, Gail, Karen e Veronica. Todas elas passaram por coisas idênticas, nós compartilhamos algo. Essa sensação de unidade e compreensão me fez sentir tipo ‘ok, eu não estou sozinha’. Ainda que eu me sentisse assim em alguns trabalhos, eu não estava só, porque tinha um lugar para onde ir e ser ouvida.”
Essa ideia sustentou Naomi até aqui e é a base para os projetos que prometem definir este grande ano para a modelo. Ela fundou a Emerge, instituição de moda focada em estimular a geração de novos talentos em todo o continente africano, com estágios de aprendizagem e programas extracurriculares e universitários. Um dos resultados desse trabalho é o nosso próprio shooting, cheio de talentos que Naomi apoiou, como Bianca Saunders, designer de moda masculina, e Torishéju, um jovem estilista em ascensão, cujo desfile de estreia contou com Naomi na passarela, em outubro passado. “A resposta foi imediata. Teve um impacto enorme na marca e em mim, além de abrir portas que eu nunca teria acesso”, conta o designer. “É disso que se trata”, diz Naomi. “A gente recebe uma oportunidade e tem que oferecer outras. É simples. As marcas de luxo sempre irão existir, e a gente sabe disso. Mas a gente vai precisar também de novas ondas chegando.”
Naomi Campbell, ELLE UK. Foto: Quil Lemons
Há no ar a sensação de que ela está finalmente escrevendo a sua própria história, longe dos tablóides e presente em lugares como o Museu Victoria and Albert. “As pessoas me veem em fotos, na passarela. Mas há coisas sobre mim que elas não sabem”, diz Naomi. “Quero que todos saiam da exposição conhecendo algo novo. Quero que role a sensação de intimidade. Estou tentando fazer com que a mostra pareça o mais pessoal possível”, explica.
Naomi, a exposição, cobre os quase 40 anos de carreira, das roupas que ela desfilou aos designers e fotógrafos com os quais trabalhou, abrangendo o seu relacionamento próximo com Azzedine Alaïa (designer que ela notoriamente considera como pai adotivo) e os vestidos clicados no tapete vermelho. Naomi trabalhou em estreita colaboração com a equipe do museu e afirma que foi quase uma redescoberta. “Com certeza, foi um processo emocional, em especial tocar em roupas que não via há muito tempo e sentir as memórias que vieram com elas. Ver os acabamentos e saber que eles resistiram ao teste do tempo. Essa jornada me mostrou todos os grandes criativos com quem trabalhei na vida.”
A exposição também serve como um lembrete de que Naomi Campbell continua tão relevante quanto sempre foi. Aos 53, ela é uma modelo de passarela que ainda tem o poder de seduzir o ambiente e fazer o público vibrar de felicidade. Sem mais nada a provar, por que continuar. “Eu amo, amo a moda!”, ela responde enfaticamente. “Amo trabalhar. Adoro a criatividade e ver pessoas que são apaixonadas pelo que fazem, que se preocupam com o que criam. Quero trabalhar com grandes talentos e novos talentos. E amo aprender também. Nunca é demais!”
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