As Supermodelos: os altos e baixos da nova série da Apple TV+

Com estreia em 20.09, "As Supermodelos" volta aos anos 1980 e 1990 com imagens e depoimentos inéditos sobre as trajetórias de Christy Turlington, Cindy Crawford, Linda Evangelista e Naomi Campbell, além de oferecer um registro temporal importante sobre a a moda da época.


As supermodelos Linda Evangelista, Christy Turlington, Naomi Campbell e Cindy Crawford.
Linda Evangelista, Christy Turlington, Naomi Campbell e Cindy Crawford. Foto: Divulgação



Christy, Cindy, Linda e Naomi. Dizem que não precisam de sobrenomes, mas em todo caso, é Christy Turlington, Cindy Crawford, Linda Evangelista e Naomi Campbell. Elas são o quarteto de modelos formado durante os anos 1980 e responsável pelas maiores transformações da moda nas últimas décadas do século 20. Vem daí o apelido que as acompanha até hoje, e que dá nome à nova série documental estrelada e produzida por elas: As Supermodelos.

Dividido em quatro episódios e com estreia na próxima quarta-feira (20.09), na Apple TV+, o documentário é sobre quem são, onde vivem, o que fazem, e do que se alimentam as supermodelos. Começa nos anos 1980, com relatos e imagens de quando Christy, Cindy e Naomi foram descobertas – Linda não foi descoberta, “eu escolhi”, diz –, e percorre toda a trajetória do grupo até 2022.

A partir de entrevistas, depoimentos e um arquivo de imagens excepcional, os diretores Larissa Bills e Roger Ross Williams (vencedor de dois Oscar de melhor documentário) e o produtor Ron Howard (também vencedor de Oscar) exploram as personalidades, personagens e circunstâncias que as concederam o prefixo super e as consequências e uma vida de superlativos. 

Além do quarteto, colaboram com a narrativa outros nomes importantes da moda, como Fabien Baron, Tim Blanks, Bethann Hardison, Carlyne Cerf De Dudzeele, Grace Coddington, Edward Enninful, David Fincher, John Galliano, Robin Givhan, Marc Jacobs, Calvin Klein, Suzy Menkes, François Nars, Donatella Versace e Vivienne Westwood.

A seguir, contamos mais detalhes, além dos pontos altos e baixos da série:

Imagens antológicas e depoimentos inéditos

As fotos, vídeos e entrevistas antigas, sobretudo dos anos 1990, aquele período pré-digital até hoje sem muito registro na internet, são motivos mais do que suficientes para assistir As Supermodelos. Tem as primeiras fotos de Cindy Crawford como modelo, filmagens dos bastidores do primeiro desfile de Linda Evangelista na Chanel (SPOILER: não deu muito certo), gravações das aulas e concursos de dança de Naomi ainda criança.

Tem relatos inéditos e bem pessoais das protagonistas, além de algumas curiosidades. Tipo o motivo de Cindy Crawford nunca ter mexido ou cortado o cabelo. O dia em que Naomi encontrou George Michael em uma boate de Los Angeles e negociou ali mesmo os termos para sua participação e a das amigas no clipe de “Freedom”. E a resposta de Linda ao fotógrafo Arthur Elgort que, há anos sem encontrar Naomi, pergunta se ela continua igual: “Melhor!”.

Relações com estilistas

Antes do quarteto, havia uma divisão entre modelos fotográficas e modelos de passarelas. Quem fazia um, não fazia o outro. As mais famosas, como Suzy Parker, Dorian Leigh, Jean Shrimpton e Twiggy, eram as de foto. Nos desfiles, quanto mais impessoal, melhor. 

“Elas precisavam esconder suas humanidades”, diz Robin Givhan,  jornalista e crítica de moda do jornal The Washington Post. “Elas eram cabides ambulantes. Por isso, eram chamadas de manequins.” O cenário começou a mudar quando alguns estilistas – e aqui vale um destaque para Gianni Versace e sua irmã Donatella –, perceberam que o sucesso das campanhas com Christy, Cindy, Linda e Naomi poderia ser replicado na passarela.

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E foi, com um sucesso tão grande capaz de mudar para sempre a maneira como se apresenta e comunica moda. Aquela história da moda como entretenimento ganhou um empurrãozão naquele momento. 

Para além do business e do marketing, a relação das supermodelos com alguns criadores se aproximam da ideia de família. Naomi, por exemplo, foi praticamente adotada por Azzedine Alaïa numa de suas primeiras viagens a trabalho para a cidade. Um apadrinhamento que ajudou na sua formação profissional e pessoal, sem contar no afeto e acolhimento.

As supermodelos Linda Evangelista, Cindy Crawford, Naomi Campbell e Christy Turlington ao fim do desfile de inverno 1991 de Gianni Versace.

Linda Evangelista, Cindy Crawford, Naomi Campbell e Christy Turlington ao fim do desfile de inverno 1991 de Gianni Versace. Foto: Divulgação | Apple TV+

Com Gianni Versace a conexão das quatro também foi especial. O italiano foi o primeiro a identificar o potencial e talento daquelas mulheres. E teve a influência contrária. Christy Turlington foi quem chamou as três amigas para desfilarem para Marc Jacobs, então na Perry Ellis. E fez a mesma coisa, além de ajudar na produção da primeira apresentação de Anna Sui na semana de moda de York.

Com Calvin Klein, já num esquema bem profissional, Christy deu um match perfeito. Foi com ela que o designer pautou toda uma mudança estética no início dos anos 1990 com suas campanhas com imagens naturais, leves e modelos de aparência saudável. 

Naomi Campbell: supermodelo, superpoderosa

Quando as supermodelos tomaram para si as passarelas de Nova York, Londres, Milão e Paris, parecia tudo perfeito, como diz Linda Evangelista. “Mas não estava”, continua. “Porque Naomi não estava sendo bookada.” A partir daí, ela e Christy Turlington passaram a só aceitar trabalhos de passarela se a amiga estivesse no casting.

Ao longo das quase quatro horas de documentário, o racismo se faz presente em boa parte dos registros e relatos da carreira de Naomi. Escutá-la reviver episódios traumáticos não é fácil. Principalmente quando somos lembrados de que muitas daquelas situações ainda acontecem. Ao mesmo tempo, observar e conhecer os mecanismos que lhe dão força não apenas para continuar, mas para transformar, é um dos pontos altos da série.

Influenciadoras versão beta

Christy, Cindy, Linda e Naomi não se tornaram supermodelos apenas por serem belas, altas, magras – embora os atributos físicos sejam fatores decisivos da equação. O que realmente mudou as regras do jogo foram suas personalidades e tudo mais que ajuda na construção delas. 

Apesar de origens e vivências distintas, as quatro cresceram com estruturas e figuras familiares que, antes de apoiá-las profissionalmente, lhes garantiram educação e uma boa base de ensino. Todas começaram a trabalhar por volta dos 14 e 16 anos e não deixaram os estudos de lado, mesmo com a demanda profissional crescente.

A supermodelo Naomi Campbell.

Naomi Campbell. Foto: Divulgação | Apple TV+

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Quando Naomi foi abordada por um scouter, manteve tudo em segredo. Até que a coisa ficou séria demais para continuar escondida. “Cheguei em casa, tomei coragem e fui contar para minha mãe. Ela não gostou”, diz. “Não era isso que ela esperava. Sei o quanto minha mãe trabalhou e se sacrificou por mim. Ela pagou minha escola durante todos esses anos e agora eu quero ser modelo?”, relembra. 

O início da carreira do quarteto foi de um vaivém constante entre suas cidades e grandes centros urbanos, onde aconteciam as sessões de fotos. “De repente, eu voltava para minha vida colegial em Walnut Creek, no interior da Califórnia, com mil dólares que ganhei por um dia de trabalho”, conta Christy.

A determinação em concluir o ensino médio já mostrava como prioridades e preferências pessoais começavam a se impor nas negociações. Antes das super, as modelos raramente tinham voz ativa, muito menos poder de decisão. Só que na década de 1980 o mundo estava diferente. 

A supermodelo Cindy Crawford em campanha da Pepsi.

Cindy Crawford em campanha da Pepsi. Foto: Reprodução

Sabe aquela coisa da pessoa certa na hora e local exatos? É mais ou menos isso. O boom das supermodelos aconteceu numa época de grandes transformações socioeconômicas. O mercado de trabalho começava a se abrir, tinha aquela ideia de que o sucesso só dependia de dedicação e esforço e a melhor prova de que deu certo, de que você chegou lá era a ostentação.

É nesse contexto que surgem essas mulheres de belezas exuberantes, porém em algum nível familiares, com backgrounds comuns aos de muita gente, características menos pasteurizadas e muita personalidade. Elas não eram divas do cinema, estrelas da música, nem herdeiras. Era sua colega de classe, sua vizinha, a menina esquisita da escola – que agora está tomando uma Pepsi gelada, de short jeans e regata branca, numa campanha milionária.

A supermodelo Christy Turlington.

Christy Turlington. Foto: Divulgação | Apple TV+

Essa lógica não é muito diferente da que deu fama a blogueiras e influenciadoras décadas depois. Trata-se de uma aparente relação de proximidade que confunde o mito com a realidade. Se ela pode, por que eu não?

E aí, voltamos à questão do timing. Foi entre os anos 1980 e 1990 que o culto às celebridades tal qual o conhecemos hoje começou a tomar forma. Foi naquela época também que marcas de moda perceberam as vantagens daquele fenômeno.

Sem internet e redes sociais, a vida das estrelas pareciam ainda mais distantes do que se imagina hoje. Por outro lado, as personagens que reinavam absolutas nas capas das revistas e nas campanhas publicitárias representavam um estilo de vida mais afinado com os desejos e humores do momento.

Assim, Christy, Cindy, Linda e Naomi deixavam de ser apenas modelos de moda para se tornarem modelos aspiracionais de estilo de vida, trabalho, sucesso e, claro, beleza.

Padrão de beleza?

Temas problemáticos são abordados de maneira pontual ao longo de quase toda a série. A pouca idade das modelos no início da carreira, nudez, sexualização, assédio, abuso, velhice, vícios, luxúria aparecem como que por obrigação, afinal estamos em 2023, né? 

Não que precisassem ser esmiuçados ao extremo, porém a maneira sucinta como tais assuntos são apresentados falha ao não conectá-los a alguns aspectos e práticas específicas do mercado e da indústria de moda.

O culto da magreza e à gordofobia é um desses tópicos mal resolvidos e o mais incômodo. Apesar dos poucos momentos em que as protagonistas mencionam os males que a representação de um único tipo de corpo pode causar, o último episódio evidencia que, na prática, ou melhor, na própria pele, não é bem assim.

A supermodelo Linda Evangelista.

Linda Evangelista. Foto: Divulgação | Apple TV+

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De todas as quatro, Linda Evangelista é a que mais sonhou e idealizou a profissão. Em 2020, ela fez um procedimento estético de redução de gordura que deu ruim. Devido a um efeito colateral raro, em vez do congelamento eliminar as células adiposas, ele as aumentou. Com isso, a modelo teve partes do corpo deformadas por formações de gordura localizadas.

Seu depoimento sobre o fato é o mais triste e doloroso. Linda chega a falar que sua carreira estava terminada, que ninguém iria mais fotografá-la e vesti-la, que tudo que construiu estava destruído. Em outras palavras, tomada por uma depressão, não conseguia vislumbrar um futuro.

Com ajuda de profissionais de saúde, amigos e do filho (sempre ao seu lado), a modelo aos poucos supera o trauma e começa a retomar as atividades profissionais – ainda que com desconforto visível em relação à sua imagem. Como ela mesma diz no documentário: “Nós éramos supermodelos, não super-humanos”.

Toda tendência acaba em excesso

A partir da segunda metade da década de 1990, uma nova geração de modelos começou a ameaçar o reinado das super. Primeiro vem a leva de new faces russas, todas muito parecidas: loiras, brancas, altas, aparência infantil e extremamente magras. Depois chegam outras – Kate Moss, Shalom Harlow, Amber Valetta, Erin O’Connor – com atributos mais alinhados aos de Naomi, Christy, Cindy e Linda.

A renovação se explica por um tanto de motivos. Primeiro, pelo próprio ciclo de funcionamento da moda. Segundo, por uma mudança no clima sociocultural. A crise econômica da época não tinha nada a ver com ostentação. Toda aquela plasticidade dos anos 1980 e começo dos 1990 ficou falsa demais. O discurso neoliberal de meritocracia deixou geral frustrada. E a realidade, que chegava com o pé na porta, mostrou que perfeição é uma mentira. 

Desse mix de confusão, movimentos antes considerados periféricos ou underground – pense no hip-hop e no grunge – começam a ganhar mais adeptos e respaldos do mainstream. E numa versão mais polida e elitista, o minimalismo, que ganhava força nas artes, limpou a estética ostensiva da moda e do design de luxo.

A supermodelo Cindy Crawford.

Cindy Crawford. Foto: Divulgação | Apple TV+

Um terceiro ponto tem a ver com dinheiro, negócios e publicidade. Estava tudo caro demais. As supermodelos principalmente. E eram tempos bicudos. Porém, o que pegou mesmo foi o ego ferido de estilistas e executivos de moda.

Aquelas quatro mulheres ficaram tão famosas que os desfiles que faziam se tornaram grandes eventos midiáticos. Era sempre uma grande comoção. E não exatamente para ver a nova coleção de determinada marca ou para apreciar o talento do designer. Era para ver Christy, Cindy, Linda e Naomi.

Em outras palavras, as supermodelos ficaram maiores do que as marcas que as empregavam, e isso incomodou muita gente – no caso, muitos homens em cargos de chefia. Era o momento em que grupos como LVMH e Kering (então Gucci Group e depois PPR) fortaleciam seus domínios comercias e corriam atrás de lucro de maneira obstinada e predatória. Não dava para ter quatro figuras femininas poderosas e autônomas como obstáculo. E aí disseram basta. 

A justificativa foi de que os excessos estavam afastando a moda da sua essência. E se essa história soa familiar, dado os recentes acontecimentos do mercado de agora, é sinal de que, no fundo, continua tudo igual.

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