Noites sem respostas: moda é reflexo da sociedade ou é tudo sobre dinheiro? Agora pra valer

Com repertório atualizado pelos os desfiles de inverno 2023, questionamos as causas e consequências das tendências recession core e quiet luxury.


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Ilustração: Gustavo Balducci



Feliz ano novo. Agora de verdade. Os votos de janeiro são pura educação, etiqueta, decorum. Dito isso, quero voltar à coluna anterior. Sim, de semanas atrás. Não foi o Carnaval, queria que fosse. Foi modas, cobertura de semanas de moda e fechamento. Tudo junto. Inclusive intoxicação alimentar. Enfim, fiz uma pergunta e nunca respondi. Sei que esse é o objetivo desta coluna, mais confundir do que elucidar, contudo acho pertinente um aprofundamento.

Recapitulando: era início das semanas de moda internacionais. Nas redes e nos veículos especializados, só se falava em recession core, ressaca fashionista, retorno aos valores tradicionais do métier (ui!), moda pela moda (bicha, pare), simplicidade, reducionismo e por aí vai. As explicações eram válidas, porém ingênuas. 

Anos atrás até dava para considerar as propostas de um estilista como reações genuínas ao que acontecia no mundo ou em parte dele. O que não quer dizer que a intenção primordial não era vender. A moda sempre foi comercial. Do que adianta uma roupa se nunca for vestida fora das passarelas ou do estúdio? 

Certeza que alguém vai falar que é arte. Prefiro a expressão artística, acho mais plausível e adequado. Enfim, pode ser. E se assim for, é moda? Vamos deixar essa pergunta sem resposta. Quem sabe numa outra noite.

 

A moda pode nos fazer sonhar com realidades, mundos e identidades fantásticas. Sob este ponto de vista, a relação entre roupa, corpo e indivíduo depende menos da realidade do que da imaginação. É a tal válvula de escape, a fuga da realidade, a permissividade de um universo irreal e, por que não, ideal.

Por outro lado, a moda pode ser uma ferramenta de solução de problemas, um auxílio para nos ajudar a passar o dia, todos os dias, em diferentes situações, independente do dress code. Aqui o que está em jogo é a equação, a química, a simbiose entre tecido, corte, costura e a necessidade individual. 

Independentemente de qual lado da balança você está, e mesmo se estiver no equilíbrio perfeito, é certo que precisou realizar alguma transação financeira para tanto. Em outras palavras, precisou abrir a carteira, desembolsar, passar o cartão, comprar.

A partir dos anos 1980, e mais ainda depois dos 1990, a alquimia entre inspiração, criação, demanda e oferta deixou de ser algo puramente intuitivo – por mais empírico que fosse. Não é que a moda perdeu sua capacidade de se conectar com fragmentos da realidade. Nem que as pessoas deixaram de se interessar pelo poder de expressão e comunicação das roupas. É que grande parte das nossas vidas passou a ser moldada e controlada por interesses outros, de outrem, em prol de resultados quantificáveis e, sobretudo, lucro.

Antigamente era mais difícil de perceber essa lógica. Hoje nem tanto. Quer melhor exemplo do que as suas descobertas da semana no Spotify? O filme que seu streaming favorito selecionou para você? Os posts que o Twitter, o Instagram ou TikTok colocaram lá em cima no seu feed? Então… É a mesma coisa com consumo em geral, da bolsa ao iogurte proteico com 0% de açúcar.

O que é desejo individual, pessoal? O que é vontade de fazer parte de um todo, ou de um todinho? Moda ainda é reflexo da sociedade ou é tudo sobre dinheiro? Essa última era a pergunta da coluna anterior. E a resposta, que pode ou não ser certeira, é um pouco dos dois. Se bem que não. Errei. É muito de um e pouco do outro. 

 

Como já falamos algumas vezes neste site, a tendência de roupas com aparência simples, práticas e funcionais tem origem em cálculos, análise de dados, projeções e prevenções. Dizem que tem uma recessão global para estourar no fim deste ano ou no início do próximo. Tem a ver com a escassez de matérias-primas, combustíveis e mão de obra. Tem a ver com os baques das mudanças climáticas, instabilidade política, a guerra na Ucrânia e a Covid-19, que ainda não foi embora. Vide o que rolou na China no fim de 2022. Sobretudo, tem a ver com um sistema econômico fdp.

E vejam que curioso: as coleções desfiladas entre fevereiro e março chegaram às lojas a partir de setembro. Que coincidência, hein? Timing é tudo. É mesmo. Bora antecipar?

Dados recentes de plataformas de busca, das redes sociais e do varejo mostram que as pessoas já estão comprando mais peças clássicas, atemporais, sem muita informação de moda ou sem informação marcante. É só manter, intensificar, criar um storytelling. Se der ruim de verdade, será mais fácil convencer o cliente a abrir a carteira e “investir”.

Em 2008, quando a bolha imobiliária estourou no mercado estadunidense, levando grandes instituições financeiras à bancarrota, ninguém estava preparado para aquela crise. Curiosamente ou não, a moda vinha numa onda de excessos sem limites. Mais, mais, mais. Do dia para noite, tudo que já era descolado da realidade de geral, ficou evidentemente descolado da realidade de geral. Vergonhosamente descolado da realidade de geral. Num momento em que muitas pessoas não sabiam se teriam moradia ou o que comer no dia seguinte, ostentar não era uma boa ideia. Sinal de alienação total, insensibilidade. (Já houve sensibilidade?)

A moda não pára, né? Logo inventaram um termo para o mood do momento: quiet luxury. Esse mesmo que você pode ter lido por aí recentemente. O luxo silencioso não tem logos, brilhos, bordados nem nada do tipo. É uma camisa branca, um suéter de cashmere, uma calça de alfaiataria soltinha, um blazer ou sobretudo de lã com formas precisas e caimento pesado e sapato sem salto, preferencialmente com molde masculino. Pés no chão. E tudo em tons neutros. Branco, preto, marinho, cinza e bege.

 

O que tá rolando agora não é diferente do que rolou antes. É só planejado. Se a recessão realmente chegar, melhor ter uma coleção que não vai destoar da desgraça generalizada. Finge naturalidade, escreve uma mensagem motivacional e vida que segue. Crédito ou débito?

Tá aí a origem do recession core. Aliás, que nominho, hein?

Essa é parte do muito. É muito, quase tudo, sobre dinheiro. Por sorte, existem pessoas inteligentes e bem maravilhosinhas dispostas a questionar o estado das coisas e propor alternativas, ainda que hipotéticas ou puramente inspiracionais. Como Miuccia Prada e Raf Simons, a duplinha lacração intelectual de codiretores criativos da Prada. Ou Matthieu Blazy, na Bottega Veneta e até Rick Owens do seu jeitinho diferentão.

E temos Dries Van Noten, né? E toca no ponto interessante da transição entre austeridade e exaltação que percorreu as entrelinhas desse mês de desfilas. Suas roupas eram sóbrias na modelagem, na construção, porém ricas nas decorações, nas sobreposições. Para ele, a ideia era de recuperar algo valioso do passado e adaptá-lo para o presente. No caso, um presente mais alegre, positivo, consciente do que veio antes e disposto a construir algo novo dali em diante. 

Com a profusão de tecidos, estampas, texturas e bordados, Dries aborda uma tendência forte do inverno 2023 com muita sabedoria. Os anos 1950 e a moda daquela década apareceram num tanto de coleções. Historicamente, foi uma época de renascimento e superação após os horrores da Segunda Guerra. Pelo menos do jeito que é contado sob influência estadunidense, inabalado e economicamente em ascensão com a Europa arrasada. Lá, a realidade era menos perfeitinha, nada adocicada. Levou anos para a escassez de um tudo ser superada.

Só quem podia financiar os altos custos dos metros e metros da saia rodada e da jaqueta acinturada do New Look, da Dior, ou os bordados de Pierre Balmain, experimentou em primeira mão o retorno do glamour, da alta-costura, do luxo e de conceitos e valores femininos que pareciam superados. Agora, acho que esqueceram de cortar ou editar essa parte da história. Estamos em 2023, não em meados do século passado.

Nesta temporada de desfiles, a diversidade de corpos caiu drasticamente. Acesso, inclusão e representatividade foram tratados como assuntos démodé. Revisar, recuperar e reinterpretar códigos, práticas e até tradições da alta-costura pode ser interessante, desde que seja atualizado. 

Ou será que parte da sociedade não quer mais dividir espaço? Querem voltar no tempo? O retorno da moda pela moda, dos valores tradicionais da couture interessa a quem? Como fica quem não cabe física, social e economicamente na tradição antiquada? 

Deixa para lá. Tempos bicudos. Vamos de jeans, camiseta, uma camisa e um blazer quando precisar, bem basiquinhas, clássicas. Basta, chega! Estamos cansados de nos arrumar (fantasiar?) em frente a câmera do telefone com no ring light ligado.

Relevante e inovador de fato seria aproveitar a tendência e o momento para pensar a moda como uma ferramenta para tornar a vida um pouco mais fácil. Tipo serviço, exercer alguma função, resolver problemas. No fim, é sobre isso. O design e  o design de moda. Conceitualmente, existe a possibilidade de romper a automatização repetitiva de fórmulas desgastadas e investir em individualidade e criatividade. 

Voltando aos estilistas citados anteriormente, todos sabem perfeitamente suas posições sociais, seus privilégios e quem são seus consumidores. Todos expressam uma boa dose de sinceridade em suas criações e nas ideias de onde elas vieram. Todos sabem como o que rola nas semanas de moda reverberam nas vidas de uma galera  em níveis e maneiras mil.

Ninguém está fingindo fazer roupas com apelo popular. Eles sabem quanto custa uma suéter da Prada, um casaco bordado do Dries, uma bolsa da Bottega, uma jaqueta do Rick. Nem por isso, ficam limitados aos clubinhos com door policy rigorosíssimo, só para membros e com aquela cordinha de veludo que só cai para poucos.

Que tonta. Por que as medidas de austeridade fashion seriam diferentes das políticas e econômicas? 

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