Leia com cuidado: o que você realmente precisa saber sobre os desfiles de inverno 2023 da semana de moda de Milão
Bottega Veneta, Prada, Ferragamo, Diesel e Sunnei combinam peças altamente desejáveis com novas ideias, design de qualidade, bom humor e forte sintonia com a realidade.
Uma pulseira de relógio sem o relógio. Bonita, mas sentido, né? Depende. O acessório veio junto ao convite para o desfile de inverno 2023 da Bottega Veneta – ingresso disputadíssimo entre a imprensa brasileira desde que o mercado nacional perdeu seu brilho (a quantidade de lugares de um país é diretamente proporcional ao tanto que consomem a marca por lá).
Nesta temporada, a palavra da vez (que ninguém aguenta mais ouvir) é atemporal. Ela tá pau a pau com funcional, que vem seguida de perto por simplicidadeA gente já falou disso, com inflação nas alturas nas principais economias do mundo, guerra e previsão de recessão pela frente, riscos não são bem-vindos. Melhor ficar com os clássicos, com o que é venda garantida e menos sujeito às variações de humor do consumidor.
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Segundo análises de varejo, o que mais se compra hoje são peças clássicas. Aquelas bem conectadas às heranças das grandes casas de luxo e à prova de tendência e saturação de exposição – na vida real e nas redes também. Tipo os casacos de alfaiataria e blazers da Dolce & Gabbana, alguns deles, reedições fiéis de modelos criados na década de 1990 (apesar dos pesares, não há como negar que Domenico Dolce é um dos alfaiates mais habilidosos de Milão e que a marca é uma das poucas com grade de tamanhos mais ampla e uma mínima diversidade de corpos na passarela). Ou os cashmeres, calças de alfaiataria cortadas no viés, os tailleurs acetinados, os vestidos coluna nem muito justos nem muito soltos e os sobretudos com forros de paetê da Fendi.
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Em sua segunda coleção para Ferragamo, o diretor de criação Maximilian Davisacredita que estamos vivendo em tempos excessivos. Tem excesso de tudo, inclusive de causalidade. Por isso, suas propostas combinam de maneira bem interessante elementos que fazem todo o sentido para o dia a dia, com outros que seriam limitados a ocasiões especiais.
Como no seu début, em setembro do ano passado, o ponto de partida é Hollywood dos anos 1950, período glorioso para a marca, quando seu fundador morava em Los Angeles e vestia as maiores estrelas da época. Desta vez, porém, Maximilian está mais à vontade para combinar sua visão com o legado da grife, abusando de linhas e cortes modernos, uma intensa pesquisa têxtil (não é mais só a Bottega que faz o couro parecer outros tecidos) e uma alfaiataria quase futurista (tem até terno com micro shorts).
Desfile de inverno 2023 da Ferragamo, na Milan Fashion Week. Foto: Divulgação
Quem acompanhou a cobertura dos desfiles deve ter lido coisas como “sai o vestido de festa e entra a roupa de verdade”. Ainda bem. Faz um tempinho que não ligavam tanto para questões mais técnicas, como o design em si. O problema é que despertar interesse dessa maneira é complicado. Precisa de esforço, dedicação, criatividade lá em cima e muito conhecimento de causa.
Bom humor também ajuda muito. Daí o relógio timeless, sem o marcador. Anos atrás, dizia-se que tempo era o verdadeiro luxo. Será que hoje luxuoso é ignorar o tempo por completo? Pode ser.Matthieu Blazy, diretor de criação da Bottega Veneta, no entanto, acha mais interessante falar sobre gostos pessoais. Para ele, é isso o que torna algo realmente atemporal.
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É a terceira temporada que o estilista francês parte da ideia de um guarda-roupa cotidiano para criar uma versão mais sofisticada disso. A conexão mais óbvia com as duas estações anteriores está no último look: calça jeans, camisa rosa e regata branca. Só que a calça e a camisa são de couro. Na onda trompe lóeil, tem ainda camisa e shorts brancos listrados com cara de algodão, um trench que finge ser de gabardine, um conjunto de alfaiataria cinza que você jura ser de lã, mas não, é tudo couro. Tem até couro imitando couro. No caso, couro de crocodilo, que a Bottega deixou de usar há um tempinho.
Durante o desfile, me incomodou a aparência encaixotada de algumas jaquetas com ombros e mangas quase quadradas e com a complicação desnecessária das abas laterais arredondadas, como uma quilha. De perto, no showroom, deu para ver que é só aparência mesmo. As peças têm caimentos perfeitos. A construção, da costura às partes mais estruturadas ou adicionais para melhor acomodar o corpo e seu movimento, são um show totalmente à parte.
E tem os tecidos. Lãs de altíssima qualidade, algodões, sedas e rendas levíssimos, bordados dos mais delicados e uma riqueza absurda de texturas. Melhor exemplo é o look 61, um sobretudo branco e preto todo franjado. Só que as franjas não são bordadas, como se faz normalmente, elas são resultado da própria trama do tecido.
Desfile de inverno 2023 da Bottega Veneta, na Milan Fashion Week. Foto: Divulgação
Num camarim tão disputado quanto o da Prada, Matthieu Blazy falou sobre como gosta de observar como homens e mulheres combinam e sobrepõem roupas diferentes para fazer qualquer coisa, dada hora do dia. É a ideia do guarda-roupa do dia a dia, porém um pouco mais aprofundada. Passa por questões de hábito, rotina e, de novo, gosto.
O designer também relatou estar pensando sobre encontros aleatórios. Tipo quando você tromba com alguém bem maravilhosinho na rua. Ou quando conhecemos pessoas incríveis naquela loucura louca e coletiva do carnaval, sem saber como, onde e por que.
Encontrar gente na rua, a gente encontra toda hora, mas só lembramos de quem ou daquilo que olhamos com cuidado. E cuidado foi um assunto importante entre as melhores coleções desta semana de moda de Milão.
Manuseie com cuidado
No inverno 2023 da Prada, os codiretores de criação, Miuccia Prada e Raf Simons, estavam pensando sobre redefinição de beleza. Para a dupla, isso tem mais a ver com uma ação do que com uma estética. E, no caso, essa ação é o cuidar. Tem o cuidado do amor, por exemplo, representado na adaptação para o dia de elementos de um vestido de casamento. Principalmente as saias. De seda dublada, elas são mídi ou míni, com dobraduras de flores de tecido e, vez ou outra, uma camadinha de organza. Na parte de cima, um suéter soltinho e um blazer de couro.
Tem o cuidado no sentido médico ou de enfermagem, traduzido na sequência de looks brancos inspirados em uniformes de profissionais de saúde. Todos bem alongados, alguns com a frente nas costas e vice-versa. Geral amou, momentinho vienne in pace com todas de unhas brancas à la Paolla Oliveira. Pena que o caimento não é dos melhores e as caudas, sem o menor sentido, só dificultando o andar.
Desfile de inverno 2023 da Prada, na Milan Fashion Week. Foto: Getty Images
Tem também o cuidado de proteção, visto nas peças de couro dublado e nas de algodão acolchoado, tipo uma almofada ou travesseiro de vestir. E tem outro tipo de proteção um pouco mais complicada: a militar. Como no desfile masculino, aqui tem uma série de looks de ombros bem marcados, juntinhos, com corte preciso, tudo bem rigoroso. Uma proteção meio assustadora até.
E aí que o fubá começa a engrossar.
Desde que Miuccia deu match com Raf na direção criativa, rola uma obsessão por uniformes, funcionalidade e design acima de qualquer narrativa ou espetáculo para as redes sociais. Existe uma vontade de apresentar uma roupa que faça a diferença para quem pode compra-lá, tudo bem direto e reto. O que não quer dizer que não sobre espaço para criatividade e mensagens subliminares.
A parte criativa a gente pode ver em subversões como a do vestido de noiva ou na forma como camisas de trabalho, com gravata já embutida, assumem ares sofisticados com calças de cintura alta e corte rente ao corpo. Os sapatos clássicos com dobraduras são bons exemplos no campo dos acessórios.
Desfile de inverno 2023 da Prada, na Milan Fashion Week. Foto: Getty Images
Nas entrelinhas, tem supostos comentários sociais, antes bem evidentes, agora em segundo plano para não ofuscar o design. E aí tem os decepcionados. Saudosistas dos “desfiles com história”, como se ao acordar a cada manhã escolhêssemos sair de Mágico de Oz ou de Alice no País das Maravilhas. Miuccia e Raf já disseram que não querem saber desse tipo de criação, sem desmerecê-lo, que fique claro. Eles só sentem que, no atual momento, é mais interessante e honesto falar da realidade. Ela disse estar interessada em dar importância ao que é modesto, não só ao glamouroso, ele, ao pouco valorizado.
E assim, que alívio. É difícil explicar a sensação de ver uma roupa que não precisa de explicação, não existe só dentro de uma narrativa. A gente já vive sob pressão 24/7, às vezes só queremos uma boa roupa. Não à toa, a apresentação começa com o teto claustrofobicamente baixo. Aos poucos, ele sobe. Nas colunas de aço, aparecem arranjos de lírios brancos e o cheiro floral toma conta da sala.
Desfile de inverno 2023 da Prada, na Milan Fashion Week. Foto: Getty Images
Entra The Kinks na trilha sonora com I Go To Sleep. Na sequência, vem a valsa Danúbio Azul, bem no ápice da fantasia, no apogeu do sonho. No entanto, o que se vê na passarela não são mais as flores do casamento levadas para o cotidiano. São uniformes militares, rigorosos, precisos. Que paz é essa, hein? Quem tá cuidando de quem e pra que?
Choque de realidades
>Pouco antes da Milan Fashion Week, rolaram eleições regionais aqui na Itália, vencidas pela colisão de direita. Desde de outubro de 2022, o país é governado por uma primeira-ministra de extrema direita. Seu nome é Giorgia Meloni, membro do partido Irmãos da Itália, que surgiu das ruínas do fascismo no país.Apesar das ações moderadas na economia, seus discursos seguem absurdos, discriminatórios, racistas, LGBTfógbicos, xenófobos e populistas no pior sentido. Nos últimos dias, não havia um grande jornal local sem menções ao avanço ultraconservador nas primeiras páginas.
Uma das primeiras medidas da mandante foi a repressão às festas clandestinas, como um possível pretexto para a proibição de outras reuniões e congregações coletivas. Então, foi no mínimo curioso que Raf Simons tenha convencido Miuccia a celebrar a nova coleção – cheia de referências à ordem e controle militar – com uma grande festa de música eletrônica.
O desfile da Sunnei não foi exatamente uma festa, mas lembrava muito um show. Numa pequena sala no novo QG da marca, não tinha lugar marcado, estava todo mundo em pé. A passarela era tipo um palco elevado por onde os funcionários, fazendo as vezes de modelos, caminhavam até se jogarem de costas para a plateia.
Desfile de inverno 2023 da Sunnei, na Milan Fashion Week. Foto: Divulgação
No release, o duo Loris Messina e Simone Rizzo escreve que, se é assim que você quer participar do show, tudo bem. Essa é a maneira Sunnei de mostrar a realidade, o dia a dia, a maneira como ela funciona de dentro, com seus membros e com todo mundo que faz ela acontecer. É um outro tipo de cuidado, tem a ver com confiança também, com saber que tem alguém ali para te segurar, literalmente.
Glenn Martens, diretor criativo da Diesel, estava com outro tipo de cuidado na(s) cabeça(s): o cuidado pessoal. Quer dizer, interpessoal também. No meio da sala de desfile, tinha uma montanha com 200 mil caixas de camisinhas. A etiqueta italiana sempre teve um teor sexual bem elevado. Nos anos 1990, por exemplo, tinha uma campanha com um casal gay se beijando. Quando entrevistei o estilista para o Volume 08 da ELLE, ele contou como aquela imagem foi importante para ele entender sua sexualidade.
Desfile de inverno 2023 da Diesel, na Milan Fashion Week. Foto: Getty Images
Hoje, as camisinhas no convite e no meio da sala são para celebrar uma collab com a Durex, uma fabricante de preservativos. Na passarela, Glenn continua trabalhando o jeans com técnicas mil, muitas delas artesanais. A mais interessante é o devorê, que deixa o denim meio transparente. Tipo tecido molhado colado no corpo, sabe? Às vezes entra um brilhinho no meio, e lembra também as peças que ele fez em homenagem ao Jean Paul Gaultier na Y/Project, onde também é diretor de criação.
No geral, é tudo bem justo, com muita cintura baixa, recorte e uma construção meio caótica, como se a roupa estivesse sendo tirada às pressas. Na verdade, sendo rasgadas às pressas. Outros destaques são as jaquetas shearling dubladas com jeans, os terninhos de corte reto, as estampas com fragmentos de campanhas antigas, as roupas resinadas, com cara de molhada, melada ou de camisinha usada mesmo. As conservadoras que me desculpem.
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