Será que a moda não pode mesmo ser entretenimento?

A temporada de inverno 2023 colocou em xeque a espetacularização dos desfiles, mas o que isso significa de verdade? E quais são as alternativas?


Vestido é esculpido com spray no corpo da modelo Bella Hadid ao vivo no desfile da Coperni
Foto: Estrop/Getty Images



Na temporada de inverno 2023, é tudo sobre a roupa. Demna que disse. “A moda se tornou uma espécie de entretenimento. Muitas vezes essa parte ofusca a sua essência, que está nas formas e volumes, nas silhuetas, na maneira como criamos relações entre o corpo e o tecido, como fazemos as linhas dos ombros, as cavas, como as roupas têm uma capacidade de nos mudar”. Para ele, não dá mais para continuar assim. “É por isso que a moda, para mim, não pode mais ser vista como um entretenimento, mas sim como a arte de fazer roupas”.

Será mesmo? Oito ou oitenta? O problema é o entretenimento ou o que ele comunica (ou não comunica)? É o meio ou a mensagem?

Antes de mais nada, vale dizer que esse assunto não é novo. A moda sempre flertou com a indústria do entretenimento. O relacionamento ficou sério lá pelos anos 1980 e o casamento aconteceu na década seguinte. O desfile da coleção de inverno 1995 de alta-costura de Thierry Mugler, seu vigésimo, foi um verdadeiro show, transmitido ao vivo e em horário nobre na televisão francesa. Um ano antes, o diretor de cinema Robert Altman lançou o filme Ready-to-Wear, sobre os bastidores da cobertura de uma fashion week.

Diversas modelos vestem looks icônicos da Yves Saint em meio de estádio de futebol

Desfile de Yves Saint Laurent que precedeu a final da Copa Mundial de Futebol de1998. Foto: Gerard Julien/AFP via Getty Images

Na Copa do Mundo de 1998, pouco antes da França vencer o campeonato mundial de futebol, Yves Saint Laurent celebrou seus 40 anos de carreira com um desfile composto de 300 looks de coleções anteriores, bem no meio do estádio. Tudo transmitido ao vivo para cerca de 1,7 bilhão de telespectadores ao redor do globo.

As diferenças, agora, são as plataformas, a velocidade e a intensidade. Economia da atenção é o nome dado ao modelo econômico baseado em, como o nome deixa claro, fisgar sua atenção a qualquer custo. “Enquanto rolamos o mapa do fim do mundo, checamos compulsivamente a barra de notificações e nos sentimos insuficientes quando não somos superestimulados, a vida está dispersa. É aí que, por todas as mídias, a publicidade tenta atrair a atenção da audiência das maneiras mais competitivas, em busca de desencadear reações, chocar e gerar lembranças um pouco mais duradouras. A moda, sem outras opções, precisa fazer parte do jogo”, escreveu a repórter Lelê Santhana, no Volume 10 da ELLE.

Em setembro passado, na Paris Fashion Week, a Coperni dominou os feeds e stories com seu vestido esculpido com spray no corpo de Bella Hadid. No mesmo dia da apresentação, a marca ganhou mais de 300 mil seguidores no Instagram. “Nosso app quebrou, não podíamos acreditar”, contou um dos diretores de criação, Arnaud Vaillant, em uma entrevista. E as vendas também cresceram de forma significativa após o espetáculo viral.

De acordo com o manual de sucesso nas mídias sociais, cada nova coleção, desfile ou lançamento, precisa ser maior, com volume mais alto e mais grandioso que o anterior. Ou seja, não dava para a Coperni voltar ao básico. Para apresentar a coleção de inverno 2023, a etiqueta da dupla Vaillant e Sébastien Meyer, trouxe cachorros-robô para interagir com as modelos, numa tentativa de repetir o feito da estação passada.

Na mesma temporada, Heliot Emil colocou um modelo em chamas na passarela e, na Milan Fashion Week, a Sunnei transformou seu desfile em um show. Sem assento marcado, os convidados ficaram de pé e recebiam de braços abertos os modelos, que, como rockstars, se atiravam do palco-passarela para o público.

“O entretenimento te coloca no jogo. É por meio dele que a grande maioria das pessoas fica sabendo sobre um desfile, geralmente via rede social”, afirma Patrícia Fonseca, professora do curso de moda da FAAP, em São Paulo. Para nomes menos conhecidos, essas táticas têm um peso ainda maior. “Às vezes, marcas menores dependem de estratégias de impacto mais rápidas, porque não têm grana para manter estruturas de marketing maiores”, continua ela.

A competição por atenção também pode ser enfadonha

O elemento surpresa vira clichê e o roteiro pronto nem sempre traz o retorno esperado. Principalmente quando se torna via de regra, repetido exaustivamente. Uma das soluções é a redução na apelação midiática sem profundidade de causa e o foco em narrativas fiéis e representativas ao propósito de cada coleção, marca e, quem sabe, às discussões do tempo em que estão inseridas.

Só que isso não tem nada a ver com o fim do entretenimento na moda. É só um tipo de entretenimento diferente, mais hiperbólico e espetaculoso. “O desfile é uma forma bastante eficaz da gente conseguir sair um pouco da roupa e ir para a imagem de moda”, diz Márcio Banfi, stylist e professor da Faculdade Santa Marcelina. Segundo ele, o que difere roupa (o produto) de imagem de moda, ou simplesmente de moda, é a linguagem, a narrativa. Em outras palavras, é o que aquela peça comunica em determinado contexto. “E isso envolve a música de fundo, a cenografia, o styling, a maquiagem etc.”, completa.

Na última década, cenários elaborados funcionaram como principal elemento “uau” para muitas marcas. A Chanel que o diga. Sob direção criativa de Karl Lagerfeld, a maison já colocou um pedaço imenso de uma geleira no Grand Palais, transformou a passarela em um supermercado, fazenda, praia e até em plataforma de lançamento de foguete.

Modelos desfilam em meio a um iceberg, posto no meio da passarela da Chanel

Desfile da coleção de inverno 2011 da Chanel. Foto: Getty Images

A Louis Vuitton não fica atrás. Nos tempos em que Marc Jacobs era o diretor de criação, já teve um trem e um carrossel em tamanhos reais na cenografia, e até duas escadas rolantes, tipo de shopping. Isso sem contar nas locações paradisíacas que dispensam construções mirabolantes, como muitos desfile de pre-fall ou resort e alguns de prêt-à-porter, como o campo de lavanda onde Jacquemus apresentou sua coleção de verão 2020 ou o lixão em São Paulo ao qual Cavalera levou seus convidados em 2013.

O que não quer dizer que desfiles sem nenhum chamariz na decoração ou feito numa sala escura ou toda branca não sejam capazes de entreter ou estabelecer uma narrativa. O modo como as peças são combinadas, a sequência em que a roupas aparecem, a diversidade dos corpos presentes, as feições dos modelos e mais mil detalhes são componentes que revelam uma história para além do que os olhos vêem.

“Um desfile é uma narrativa. Seu objetivo é causar diferentes sensações nas pessoas que o assistem, da beleza à estranheza”, fala André Hidalgo, fundador e curador da Casa de Criadores. “Tudo que se usa para conseguir provocar – no bom sentido – a audiência, só acrescenta. Só não pode ser uma provocação gratuita. Ela precisa ter algum fundamento, se relacionando com o que o estilista deseja falar no momento”, continua ele. “E o entretenimento pode ser fofo, pode ser agressivo, pode trazer uma questão política, uma crise existencial. Ele pode ser vários adjetivos e ter várias nuances”.

Outras formas de se apresentar a roupa

Algumas semanas de moda, aliás, já começaram a experimentar outros formatos baseados em experiências coletivas tradicionais da indústria do entretenimento, como cinema, teatro e shows. A São Paulo Fashion Week passou a vender ingressos para seus desfiles na sua edição 54. Além da comercialização da apresentação de uma coleção, há toda uma agenda de programação paralela, com palestras, imersões, exposições e outras ativações. Não à toa, a organização da fashion week passou a se referir ao evento como festival.

A roupa (só) pela roupa encontra outros meios de sobrevivência, seja num showroom, seja num catálogo. “O desfile não é a única forma de se criar um conceito. Aliás, ele é uma forma bastante cara. Uma campanha pode ser mais barata. Se a intenção da marca é extremamente comercial, de focar muito no produto, talvez ela nem faça um desfile. No Brasil, aliás, já vimos muitas marcas que desistiram de desfilar porque perceberam que não fazia sentido para elas”, diz Márcio. 

Alternativas ao desfile já são uma realidade em eventos de moda, como a Casa de Criadores. Em suas edições, já teve fashions films, apresentações virtuais, ocupações, shows e performances de dança e música. Esses desdobramentos não acontecem somente por um desejo de inovação, mas para alcançar o próprio intuito do projeto: mostrar as relações entre arte e moda. “Se eu falasse para os estilistas ‘agora é só a roupa pela roupa’ é muito provável que a Casa de Criadores acabasse”, fala André, com segurança.

Independentemente do formato, a roupa não perde sua importância. E o desfile, como um veículo para a divulgação da roupa, também não. “É uma fórmula muito bem resolvida porque você vê pessoas usando a roupa. Isso dá um entendimento do caimento. A roupa também fica em movimento, e nele não existe recurso de edição, diferentemente de uma foto ou um vídeo, por exemplo. Se a roupa é boa, você vê que é boa. Se for ruim, você vê que é ruim”, acredita André.

“O que precisamos tomar cuidado com essa questão da velocidade das redes sociais é não perder a consistência, a relevância, e virarmos uma coisa da imagem pela imagem, de next, next, next!”, alerta o curador da CdC. Como lidar então? André dá seu palpite: “A resposta talvez não seja se adaptar às redes sociais, mas propor uma coisa nova, um novo formato, que ainda não sabemos qual. E é neste momento em que a Casa de Criadores está, e que a moda em geral também está: o de se buscar e se repensar”. E, pela pluralidade do mercado, já sabemos que não vai existir uma fórmula única de sucesso para todos.

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