Por que volta-se a falar sobre o “heroin chic” na beleza?

Na contramão do crescimento do movimento body positive, essa estética que preza pela magreza extrema e dominou os anos 1990 é pauta novamente. Mas será que é possível que ela arrebate o mainstream mais uma vez?


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Corpos magérrimos, olhos distantes marcados por olheiras profundas e uma atitude “foda-se o mundo” marcou a estética que ficou conhecida como “heroin chic” – nome polêmico que fazia uma referência glamurizada à aparência de quem era usuário de heroína nos anos 1990. Ela ganhou fama por conta de modelos como a estadunidense Jaime King e as britânicas Joddie Kidd e, principalmente, Kate Moss. Fotógrafos de moda como a inglesa Corinne Day e o italiano Davide Sorrenti ficaram conhecidos por retratar esse visual em campanhas e editoriais que ajudaram a catapultar o “heroin chic” ao redor do mundo.

O visual representava uma quebra com os excessos coloridos que predominaram nos anos 1980 por trazer uma melancolia – dissidente também dos anseios do movimento grunge – que se aproximava da vida real: desconstruída e imperfeita. Nessa época, o uso de drogas tornou-se um personagem frequente de produções audiovisuais que alcançariam públicos gigantes. É o caso de clássicos do cinema como Pulp fiction (1994), Diário de um adolescente (1995) e Trainspotting (1996), e também de bandas dos EUA como Pearl Jam, Nirvana e Hole.

A estética começou a ser questionada apenas uma década depois, quando Sorrenti morreu de overdose de heroína com apenas 22 anos. Sua mãe, a também fotógrafa Francesca Sorrenti, escreveu uma carta direcionada ao mercado da moda pedindo para que eles parassem de romantizar o uso de drogas. O apelo gerou tanto buzz que até Bill Clinton, então presidente dos Estados Unidos, se pronunciou dizendo que a indústria fashion estava há anos fazendo com que o vício parecesse sexy e cool, o que não era saudável.

As críticas foram impossíveis de ignorar e logo esse visual foi substituído por um que, na época, era considerado mais saudável, personificado pela brasileira Gisele Bündchen. “Mesmo no período em que o ‘heroin chic’ explodiu, a gente não entendia direito o que aquela estética estava representando – nem mesmo os jovens, que eram mais antenados. Quando finalmente caiu a ficha, muitos de nós se afastaram de qualquer coisa que pudesse remeter à ela”, lembra Iza Dezzon, analista de tendências e comportamento.

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Gisele BündchenFoto: Getty Images

É importante ressaltar, porém, que a magreza aplaudida nos anos 1990 continuou a ser valorizada nas décadas seguintes – tanto que a ideia era de que modelos como Gisele representavam “a volta das curvas”. Ainda que sua silhueta, de fato, fosse mais curvilínea do que a das modelos do “heroin chic”, Gisele nunca foi qualquer coisa diferente de uma pessoa muito magra. Na internet, a obsessão pelo tamanho 34 também continuava em alta, permeando outras tendências da década, como o Y2K, o indie e o twee. É nessa época que começam a fazer sucesso as “Tumblr girls” – algo como uma representação digital do “heroin chic”. É essa também a época em que celebridades como Paris Hilton e Lindsay Lohan começaram a ganhar destaque na mídia festejando e usando drogas com suas calças de cintura baixa e “barrigas negativas”.

A estética hoje

Não é novidade que a pandemia teve um impacto gigantesco na saúde mental e no comportamento de todo mundo – especialmente dos mais jovens. “A geração Z viveu tudo isso bem no auge da juventude. Eles se viram presos na casa dos pais, sem encontrar os amigos, sem conseguir socializar. Existe um pessimismo muito grande com relação à vida de maneira geral”, conta a pesquisadora de tendências Nina Grando. Iza chama esse movimento de “corpo enclausurado”, que nada mais é do que essa privação física com relação ao mundo exterior.

Some isso à falta de perspectiva de uma mudança concreta no mundo (guerras despontando, aquecimento global, levante de governos neofascistas, etc.) e é claro que surge na geração Z uma vontade brutal de aproveitar a vida ao máximo, antes que chegue o fim que tanto se anuncia. “É uma atitude meio ‘foda-se tudo!’. É viver a vida sem pensar nas consequências. É aquela ideia de festejar como se não houvesse amanhã porque, de fato, pode não ser que não tenha mesmo”, diz Nina. Ainda, de acordo com Iza, existe a sensação de que todos esses problemas, criados pelas gerações anteriores, caíram no colo dos mais jovens. “Essa compreensão das injustiças e das dores do mundo que a gente vive é o gatilho para ‘ligar o foda-se'”, complementa.

Exemplo claro disso é o cigarro ter reaparecido quase como um acessório fashion: de acordo com o The New York Times, 2020 foi a primeira vez, depois de duas décadas, que as vendas de cigarro cresceram – isso sem contar o uso do vape, cigarro eletrônico saborizado que se popularizou entre os mais jovens. Não dá para ignorar também o impacto de séries como Euphoria, da HBO, que, assim como filmes de três décadas atrás, também trazem a temática das drogas para o mainstream. “Existe um glamour na purpurina cobrindo os olhos fundos de Rue”, reflete Nina.

Quando se fala de corpo, a volta das minissaias e das cinturas baixas às passarelas, colocadas majoritariamente em modelos magérrimas, reforça mais uma vez a ditadura do manequim 0. No TikTok, vídeos incentivando transtornos alimentares continuam a ganhar views. Ainda, de acordo com um estudo publicado pela revista Pediatrics, nos Estados Unidos, a hospitalização de adolescentes por conta de condições como anorexia e bulimia mais que dobrou no primeiro ano de pandemia. Na maquiagem, os olhos pretos borrados, com cara de fim de festa, são tendência absoluta, enquanto surgem todos os dias novos tutoriais de como fazer olheiras usando corretivo mais escuro.

@sarathefreeelf

Mas será que vai pegar mesmo?

Apesar desses códigos que fazem referência ao “heroin chic” estarem novamente em pauta, as especialistas acreditam que seja muito difícil que a estética entre de fato no mainstream. “A geração Z parece ser mais consciente. Apesar de existir uma pressão estética, principalmente por conta das redes sociais, eles ainda têm mais acesso a debates importantes sobre o tema, o que os ajuda a romper com os padrões opressores”, defende Nina.

Sobre a influência da cultura pop, Iza acredita que também existe uma mudança no tom em que estes assuntos mais complexos são tratados. “Tem um pulo muito grande entre o que eram essas referências dos anos 1990 e o que temos nos dias de hoje. Em Euphoria, por exemplo, o vício da Rue é trabalhado abertamente, inclusive mostrando as reuniões dos Narcóticos Anônimos. Mesmo os códigos que poderiam induzir a essa sensação de glamourização, vêm com uma mensagem muito forte de combate. Sem contar os debates sobre sexualidade e a desconstrução da beleza normativa, também muito presentes”, completa.

Por isso, o diálogo aberto sobre esses temas continua sendo tão essencial. Em um mundo onde as trends nascem e se espalham através de plataformas digitais, influenciadores que abordam temas como gordofobia e auto aceitação corporal assumem posições cada vez mais importantes nesse diálogo.

“Ao mesmo tempo que essas estéticas estejam por aí, desejo que a gente não perca tudo o que aprendemos durante esses últimos anos em relação ao movimento de neutralidade corporal – de simplesmente diminuir a importância que damos para o físico”, Iza Dezzon.

Uma das maiores críticas dos criadores de conteúdo que se dispuseram a falar sobre essa possível volta do “heroin chic”, é que a estética se aproveita maliciosamente de um argumento do movimento body positive. Em um vídeo postado no TikTok, uma internauta relata que, na rede social, a ideia de aceitação corporal tem sido utilizada como desculpa para exaltar traços típicos da tendência – como o maxilar bem marcado, o gap entre as pernas e as costelas proeminentes – e que rejeitar esse visual também deveria ser considerado descriminação. Vale ressaltar aqui que, ainda que estes corpos possam ser reais, existe uma diferença enorme entre autoaceitação e exaltação de um certo tipo físico que exclui a maioria das pessoas – que é exatamente o que está acontecendo.

Esse argumento, criado pelos defensores da estética, anda de mãos dadas com a resposta gordofóbica que, não raro, vemos sendo dada ao movimento body positive: que “engordar está na moda” e que agora “o errado é ser magro”. Sobre este assunto, a influenciadora paulistana Dora Figueiredo disserta em um de seus vídeos no Instagram: “Se está na moda engordar, por que tem tanta mulher fazendo lipo lad? Por que a gente vê todo dia gente fazendo propaganda de coisas para emagrecer?”. Ela conclui: “O que eu vejo são mais pessoas sentindo liberdade de postarem seus corpos, de falarem sobre aceitação, porque este é um assunto que está se tornando relevante”.

No final das contas, enquanto diferentes tipos de corpos forem tendência (sejam eles magros, gordos ou curvilíneos), sempre haverá o risco de cairmos em padrões de beleza não-saudáveis. Criadores de conteúdo e especialistas têm abordado justamente este tema, reforçando a ideia de que corpos não deveriam ser tendência. “Ao mesmo tempo que essas estéticas estejam por aí, desejo que a gente não perca tudo o que aprendemos durante esses últimos anos em relação ao movimento de neutralidade corporal – de simplesmente diminuir a importância que damos para o físico”, finaliza Iza.

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