Boa de cama?

Filmes pornôs ou comédias românticas não tornam você uma deusa do sexo. Mas reformular a pergunta já é um bom começo: você quer ser boa de cama para quem?


ilustração mostra o busto de Vênus em chamas, com pontos de interrogação na cabeça
Ilustração: Mariana Baptista



Pra uma jovem queer dos anos 90, crescer vendo nas capas das revistas frases como “10 dicas pra enlouquecer seu homem na cama”, “5 posições que vão surpreender o seu marido”, “as técnicas mais infalíveis pra conquistar o seu paquera” e todas suas variações absurdas, foi um tanto quanto confuso. Porém, como muitas meninas, cedi aos encantos da performance e da heteronormatividade. Parecia mais fácil seguir o roteiro que agradasse o outro do que investigar, questionar e ir atrás do meu próprio prazer. O fato é que, muito antes de me tornar educadora sexual, eu me sentia boa de cama. E o que isso significava? Que eu passava por cima da dor paralisante da endometriose durante a penetração, que eu encenava um imenso prazer só pra que o outro não tivesse seu ego ferido, que tentava usar de artifícios e malabarismos pra impressionar. E o pior, que eu fingia orgasmo. Foi assim por um bom tempo, até que comecei a me aprofundar de fato nas complexidades da sexualidade humana. 

Mas eu não fui a única. Até hoje, essas perguntas chegam incessantemente até mim por parte das mulheres. “Claris, como faço pra me tornar boa de cama?” ou “Como faço pra gozar durante a penetração?” E aí que está a grande pegadinha: você quer ser boa de cama pra quem? Se reclamamos tanto da falta de qualidade nas trocas afetivas e sexuais, será que não está na hora de quebrar esse ciclo vicioso do medo de não agradar? 

Os ensinamentos

Claro, a responsabilidade do próprio prazer vem de cada uma, mas isso não significa que sejamos culpadas pelo sexo medíocre que muitas acabam experienciando. Até a gente chegar hoje aqui e poder iniciar esse debate, muita coisa foi meticulosamente colocada como barreira pra que ele não acontecesse. Quantas de vocês já se depararam com a infeliz frase “seja uma dama na rua e puta na cama”? Vocês percebem o quão confuso e violento é tirar o direito de sentir desejo, ser um ser sexual válido ou simplesmente ter acesso ao básico de educação sobre sexualidade, até que você encontra um homem? E, de repente, sem nenhum tipo de preparo ou informação de qualidade, é preciso que você o satisfaça como garantia de sucesso pessoal e segurança na relação. 

O conceito de ter o corpo da mulher atrelado a servir o patriarcado não é de hoje, vem de séculos, está firmado na bíblia, foi reforçado ano após ano ao longo de milênios, até chegar a essa realidade estranha e sem espaço pra contestação. E quem ocupa o cargo de repassar essa conduta serviçal pensado e adaptado para cada fase da vida da mulher? Das instrutoras de etiqueta às atrizes de entretenimento adulto, dos pastores e padres até a família, das grandes mídias até o boca a boca, o que não falta são doutrinas mal elaboradas de como uma moça deve se portar, até na cama. Seguindo na mais bela contramão, quem toca no assunto de forma certeira e profunda, é a Chimamanda Ngozi Adichie no seu TED Talk “We should all be feminists“. Talvez você já tenha lido ou escutado esse manifesto, mas vale muito a pena relembrá-lo por aqui. 

A pornografia

Existe uma frase muito famosa entre educadores sexuais, que é a seguinte: querer aprender a fazer sexo assistindo pornografia é como querer aprender a dirigir assistindo Velozes e furiosos. Eu não poderia concordar mais! Sei que esse é um tema com muitas aberturas pra discussões e debates interessantíssimos, mas, pra além das problemáticas do que acontece nos bastidores de muitos desses filmes, quero trazer a atenção aos efeitos de quem assiste sem entender que aquele filme é um… filme. 

A pornografia é ficção, independentemente de ser de mau gosto ou não. Não seria viável se basear em atores extremamente preparados pra atuarem naquelas cenas, muitas vezes com roteiros que flutuam entre exageros absurdos ou uma pobreza imensa de detalhes, que focam exatamente em não contar uma história, mas sim satisfazer rapidamente e de uma maneira não muito racional a vista de quem assiste. 

Dos vários mitos preocupantes que a pornografia reforçou (não inventou, vale lembrar), um dos que mais me chateia é de que o sexo se resume a penetração. E, pior, que ele acaba quando o homem ejacula. Acho tão triste e limitado. Fora a gravíssima falta de diálogo e ação sobre segurança e consentimento. Então, não, não existe a menor possibilidade de qualquer pessoa ser boa de cama quando tenta emular algo do tipo. 

Sexo, seja aquele com muito amor, seja aquele apenas com fogo, aquele lento ou selvagem, precisa de muuuuuitos outros elementos que fazem parte das trocas e reações físicas humanas pra que seja gostoso de verdade. Até uma boa experiência pode conter níveis iniciais de estranheza, porque estamos falando de algo que envolve muita vulnerabilidade e descoberta, não só aquela confiança delirante de quem atua nos filmes.

As comédias românticas

Num outro lado da moeda, se engana quem acha que só a ficção com conteúdo explícito pode gerar danos à forma como nos relacionamos afetivamente e sexualmente. Se muitos homens buscam (de maneira frustrada) exemplos de como serem “bons de cama” na pornografia, pra muitas mulheres, o que resta como ferramenta de busca sobre o assunto, mesmo que também de maneira precária e com uma noção muito distorcida sobre a ficção versus a realidade, são as populares comédias românticas. 

O que geralmente acontece na hora H nesses filmes são passos tão previsíveis e chatos que me dão sono só de lembrar. Pra quem esqueceu, a norma faz com que a cena comece com o casal (sempre heterossexual) se beijando loucamente na porta da casa de um dos dois, eles abrem a porta desajeitados pelo desejo fulminante, quebram e tropeçam pelo corredor enquanto jogam as suas roupas no chão, o cara penetra, segundos depois eles gozam juntos, aí corta pra cena dos dois completamente ofegantes e realizados olhando pra cima com tom de “uau” e envoltos no lençol. 

Acho que todo mundo que já teve pelo menos uma experiência sexual na vida sabe que não é bem assim que as coisas funcionam, pelo menos não na maioria das vezes. É preciso falar sobre preservativos, saber que mais de 80% das mulheres não vão ter nenhum tipo de orgasmo se não estimularem a parte externa do clitóris (no sexo lésbico a taxa de orgasmo sobe bem mais por elas já entenderem isso e não terem uma relação falocentrada), entender que o tempo de cada um é diferente e que é praticamente impossível adivinhar o que o outro quer ou gosta sem diálogo, tocar em assuntos como a necessidade de lubrificantes (que sim, todo mundo precisa e quando entenderem isso o mundo vai ser um lugar bem mais legal de habitar) ou sex toys, e por aí vai. 

Mesmo hoje, vendo uma drástica diminuição das cenas de sexo nas tais romcons, o que é papo pra outra coluna, é necessário pontuar: se basear nessa “mídia mais inocente” também não te faz boa de cama. A verdade é que a vida real não dá espaço pra todos esses joguinhos e artifícios genéricos.

Os elementos de um bom sexo 

Chegamos à parte esperada! Então, de forma prática, o que podemos fazer pra experienciar um bom sexo e se sentir verdadeiramente boa de cama, pra além das expectativas alheias? 

Autoconhecimento: Entender o que se quer daquela relação sexual é fundamental. O que eu busco quando estou ali? Orgasmo? Resolver uma carência? Tirar a tensão do corpo? Uma troca mais profunda? A resposta é variada e também muda de acordo com o tempo e a parceria, por isso a importância de sempre ir investigando. Se questione, seja curiosa com você mesma, com seus desejos, seus fetiches, suas aversões e limites. Claro, pra além do entendimento emocional e mental, precisamos entender como o corpo funciona! Só assim vamos quebrar alguns ciclos ruins, como o GAP do orgasmo, que é a diferença alarmante entre taxa de chegada ao clímax entre as mulheres versus a dos homens durante o sexo. Saber o básico de anatomia é a chave. Sabia que o fato de a grande maioria das pessoas com vulva não ter orgasmos durante a penetração se dá porque o canal vaginal é menos enervado, ou seja, menos sensível? Que o órgão responsável por trazer a melhor parte é o clitóris (que possui mais de 10 mil terminações nervosas)? Que, em média, ele pode demorar até 45 minutos pra ficar ereto, enquanto seu análogo, o pênis, fica em até 2 minutos? Pois fique sabendo e guarde essas informações com carinho, assim você não vai se sentir culpada ou quebrada por não gritar loucamente de prazer quando penetrada ou levar mais tempo pra estar excitada que o outro.

Presença: Outro elemento importantíssimo é esse daí. Como ser bom em algo se você não consegue estar ali no momento? Acho que não tem como. Sexo é presença porque é um dos atos mais sensoriais que podemos viver e, pra sentir, é preciso desligar um pouco as interferências externas. Se você estiver muito preocupada com a performance, se está parecendo sexy ou não, com a aparência física, com os boletos e outras loucuras da vida adulta, então, diga adeus às possibilidades divertidas e intensas que o sexo pode trazer. Não tá num bom momento? Não faça nada que você não queira, escute seu corpo e saiba que decepcionar o outro é menos importante do que decepcionar a si mesma (e, óbvio, se um cara fica decepcionado com você por avisá-lo que aquela não é uma boa hora, as chances dele não ser um bom parceiro são de 100%).

Escuta: Bem, como estamos falando de uma troca, é imprescindível que a escuta esteja aberta de ambos os lados. Ninguém consegue adivinhar por uma bola de cristal o que o outro quer, então, pro sexo ser bom, tudo precisa ser dito, assim como tudo precisa ser respeitado. “Você gosta que eu faça assim?”, “posso ir mais rápido ou devagar?”, “essa posição tá confortável?” São formas simples de demonstrar que existe alguém que se importa com a experiência como um todo. Vejo tantos homens tratando mulheres apenas como buracos onde eles querem satisfazer as necessidades, que não adianta, ele pode ser o próprio Magic Mike, que ainda assim ninguém vai se ver com um desejo genuíno de cair nessa armadilha novamente. Por isso que tantas mulheres são tidas como pessoas com menos libido – será que isso não está diretamente ligado com a falta de qualidade e escuta nas relações?

Existem muitos outros elementos e variações do que já foi citado que podem ser abordados, mas acho que já deu pra entender o ponto principal, correto? Sexo não é sobre o que parece ser, é sobre o que é quando se sente. Talvez, o ser boa de cama esteja muito mais relacionado com aprender a dizer não do que sim. Talvez a resposta à pergunta “boa de cama pra quem?” deva reverberar mais por aí. Talvez a gente já tenha dado valor demais ao que é superficial e performático e esteja na hora de aprofundar e internalizar um pouco mais esse processo. Por menos “técnicas infalíveis pra conquistar o seu paquera” e mais “dicas de como dialogar de uma maneira saudável e natural sobre sexualidade”, menos “10 dicas pra enlouquecer seu homem na cama” e mais “saiba como se dar prazer e criar uma boa relação com seu corpo”.

Clariana Leal é educadora sexual e carrega como propósito a abertura honesta e inclusiva do diálogo sobre sexo, desejo e corpo. Na sua coluna Prazer sem dúvidas, ela responde mensalmente as dúvidas do público da ELLE.

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