E quando a dor impede o prazer?

Confie no que seu corpo está dizendo e não guarde nenhum desconforto. O silêncio pode acobertar a endometriose e trazer outras sensações prejudiciais, como a de estar constantemente frustrada consigo mesma.


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Parece estranho, mas dor e prazer podem ser ótimos aliados. Se não fossem, o BDSM não seria tão popular, o tapinha na bunda não seria frequentemente um pedido de quem quer mais e itens como chicotes não seriam um dos mais vendidos nas sex shops. Mas essa dor gostosa só funciona se for bem combinada, esperada e consentida. Fora esses casos, qualquer indício de desconforto durante a relação é sinal de que algo está errado. Num estudo do Prosex (Projeto de Sexualidade da Universidade de São Paulo) feito com 3 mil brasileiras de 18 a 70 anos, foi constatado que 59,7% das mulheres sentem dor durante o sexo, e esse número me deixa aterrorizada. É assustador não só pela estatística elevada, mas também por saber que muitas dessas mulheres não possuem uma assistência apropriada para investigar e tratar essas dores. Algumas já nem falam com seus parceiros sobre o assunto, por pura vergonha ou falta de abertura, e mais tantas outras possuem medo de interromper a relação mesmo quando dói, por serem ensinadas a estarem sempre à disposição apenas do prazer alheio.

Eu sei bem disso e já vivi nesse lugar solitário e perigoso por anos. Muito se fala em como a mulher é propensa a ter mais tipos de disfunções sexuais, mas o que falta é a explicação de como a pressão e repressão social/religiosa viram peças-chave para que esse terror psicológico que ronda os temas da sexualidade acabe se transformando em sintomas físicos reais e sérios. Já outras condições como a endometriose, conhecida por ter como sintoma e consequência a dispareunia, que é justamente o nome dessa dor genital durante ou após a penetração, ainda não teve a devida atenção da classe médica, prolongando a desinformação e o desamparo. Para vocês terem uma ideia, minhas fortíssimas cólicas menstruais começaram aos 14 anos, a dispareunia aos 16, e só com 28 anos consegui o diagnóstico e uma sugestão de tratamento. E não faltaram médicos e exames ao longo de todos esses anos, mas, a cada retorno sem conclusões, eu ia fortalecendo a ideia de que o problema era eu, que meu corpo que não sabia funcionar ou acessar o prazer. E quando isso acontece, a dor se expande para muito além de onde está originalmente localizada.

Anitta, nossa atual dona do Brasil, compartilhou recentemente sua trajetória com a endometriose e a dispareunia e, pela primeira vez em muito tempo, me senti abraçada. Seria um começo de luz no fim do túnel ou o assunto vai deixar de ser interesse do público em poucos dias (como tudo na internet)? Espero que seja a primeira opção, porque a urgência de falar sobre esse tema é imensa. Lembro de um período da juventude onde não tinha coragem de dizer para meu parceiro da época o quanto o sexo era doloroso, minha única reação era ir para o banheiro depois que “terminava” e ficar ali em posição fetal no chão até melhorar um pouquinho. Sempre sozinha, sempre calada. Como querer ter uma vida sexual ativa quando essa experiência se repete tantas vezes? Impossível. Segundo a Organização Mundial de Saúde, cerca de 7 milhões de pessoas com útero foram diagnosticadas com endometriose só no Brasil, fora as outras milhões que até hoje não conseguiram uma assistência médica adequada para entenderem o que está se passando com seus próprios corpos.

E o que está se passando? O que é a endometriose?

Para explicar melhor, primeiro é importante dizer o que é o endométrio. Ele se trata do revestimento interno do útero e se altera a cada fase do ciclo menstrual. E ali, caso haja uma gestação, o embrião vai se alojar. Se não, essa camada de mucosa se descama e é expelida, virando menstruação. A endometriose é uma condição ainda muito misteriosa, o que é apenas um reflexo da normalização da dor feminina (e de pessoas com útero no geral), mas o que se sabe até agora é que às vezes acontece de tecidos semelhantes ao endométrio acabarem se formando fora do útero. Os lugares mais comuns são ovários, nas trompas de falópio, intestino e bexiga, podendo também ir além e se espalhar em mais de uma área. E isso, minhas amadas leitoras, dói, e não é pouco.

Como tratar algo tão nebuloso? Existe alguma cura?

Essa é a pergunta de milhões e também meu sonho. Caso a paciente consiga um acompanhamento atencioso e exames que mostrem onde estão os pontos de tecido que são persona non grata, é possível removê-los através de cirurgia por laparoscopia ou ablação. Isso elimina a endometriose para todo sempre? Queria dizer que sim, mas, infelizmente, não existe essa certeza. Essa é uma condição mais gerenciável do que curável e não existe muito um consenso sobre detalhes importantes. Tratamentos hormonais (interrompendo a menstruação), além de mudança de hábitos, como redução de alimentos inflamatórios, laticínios, doces, tabaco e álcool, também podem ajudar a reduzir os sintomas. Por mais que seja difícil encontrar o diagnóstico, ao primeiro indício de que algo não está ok, continue se consultando, fazendo as ultrassonografias, e relatando tudo. Confie no que seu corpo está dizendo e não guarde essa dor, o silêncio pode acobertar o agravamento do caso e trazer outras sensações prejudiciais, como a de estar “quebrada” ou constantemente frustrada consigo mesma.

Anitta, nossa atual dona do Brasil, compartilhou recentemente sua trajetória com a endometriose e a dispareunia e, pela primeira vez em muito tempo, me senti abraçada.

E o sexo? Como fica?

Vish, complicado, viu? Ter a dor como impedimento do prazer é uma das coisas mais devastadoras que a gente pode experienciar. Mas é possível seguir pela busca das boas sensações, assim como encontrá-las, só basta atenção e cuidado. Se você estiver vivendo essa condição, atente-se para esses pontos: caso as pontadas agudas no baixo ventre aconteçam na penetração, note se é durante ou depois, quem sabe em ambos, também perceba quais posições geram mais desconforto e não force nenhuma delas. Fale SEMPRE que doer e não hesite em parar na hora. Evite penetrações profundas, aproveite para explorar novos jeitos de sentir prazer de maneira segura, onde você esteja no controle, lembre-se de respirar fundo e estar com a comunicação muito ativa. Saiba também que sexo e penetração são coisas diferentes, então não deixe de lado a masturbação mútua, estimulação oral, uso de vibradores, e o que mais sua criatividade permirtir. Se em toda vez que a gente iniciar uma atividade o corpo responder negativamente, automaticamente iremos associá-la com algo ruim, então o que podemos fazer nos casos onde o sexo é doloroso é justamente rever esse conceito e mudar a estrutura desse ato. Além de sermos gentis e pacientes com nós mesmas. A desconexão entre sexo e prazer pode acontecer em vários estágios da vida e por vários motivos diferentes, mas a boa notícia é que há como reverter a situação.

E a masturbação?

A masturbação pode ser um ponto de reconexão com a sexualidade nos casos de dores crônicas. E por causa dos “hormônios do bem” liberados durante esse momento, consegue funcionar como um ótimo analgésico. Mas os mesmos cuidados quando se trata do sexo com um/a parceiro/a, também valem aqui. Tente criar um ambiente confortável, se escute e respeite os sinais que o corpo manda. Caso um sex toy penetrável incomode, alterne os estímulos, aproveitando todo o resto do corpo, e não deixe o clitóris de lado. Como já vimos aqui, a vibração pode ser terapêutica, então, não se acanhe em aproveitar os vibradores para massagear os pontos de tensão antes ou depois do orgasmo (se ele vier, mas tudo bem se não acontecer, o foco é só buscar um alívio no meio dessa loucura toda). Fazer amor com você mesma pode ser uma forma leve e gostosa de não deixar o cuidado banal do dia a dia de lado.

Dor durante a penetração nunca é normal, cólicas menstruais intensas também não

Quando trabalhamos com educação sexual, praticamente todas as perguntas que recebemos começam com “é normal isso?” ou “é normal aquilo?”, uma grande unanimidade entre os profissionais da área. Bom, no geral, a maioria das paranoias são apenas reflexo da falta de informação sobre a sexualidade humana, pois coisas absolutamente normais e muitas situações e questionamentos comuns se tornam bichos-de-sete-cabeças quando não conseguimos ultrapassar a fronteira do tabu. Por exemplo, é normal não ter a vulva igual a de atrizes da indústria pornográfica (que, muita vezes, é intencionalmente modificada, a ponto de chegar numa estética infantilizada – mas esse é tema para outro texto), é absolutamente normal não ter orgasmo apenas com a penetração, mais normal ainda ter fetiches e desejos específicos etc.. Mas duas coisas realmente não estão no campo da normalidade. São elas: 1) Sentir dor durante o sexo e 2) Sentir cólicas muito fortes. Passar por cima dessas dores é passar por cima de nós mesmas. Então, podemos prometer aqui que não vamos mais perpetuar esse ciclo de invisibilidade? Falem o que estiverem sentindo, procurem ajuda, dividam o peso com outras pessoas, procurem uma rede de apoio e reivindiquem uma vida saudável e prazerosa na medida do possível. Todas nós merecemos isso.

Conclusão

Infelizmente, a endometriose é conhecida por afetar a libido e a resposta sexual, mas não significa que seja o fim do prazer ou das boas relações. Há alternativas e respiros no meio desse caos, principalmente quando percebemos que não estamos sozinhas. Eu e Anitta estamos segurando as mãos de vocês, e acredito que todas as outras milhões de mulheres que passam por isso diariamente também.

Clariana Leal é educadora sexual e carrega como propósito a abertura honesta e inclusiva do diálogo sobre sexo, desejo e corpo. Ela é também sócia da primeira sex shop brasileira 100% focada no prazer feminino. Na sua coluna Prazer sem dúvidas, vai responder mensalmente as dúvidas do público da ELLE pelo Instagram e também aqui no site.

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