Breves memórias de Terezinha Negreiros, uma costureira de profissão
A colunista Hanayrá Negreiros mergulha nas lembranças de família a fim de costurar futuros possíveis.
Já começo estes escritos avisando que eles serão breves e nostálgicos, e para embalar a sua leitura, estimada leitora, indico a faixa Recordando do álbum Pixinguinha e o seu tempo, lançado em 2008 pela Biscoito Fino. Ele, que era um dos músicos favoritos de minha avó Terezinha e creio que do Brasil também, nos conduzirá para o mergulho em algumas memórias e costuras de família.
“A Dona Tereza era costureira de mão cheia!”
Durante toda a minha infância e juventude, sempre que alguém me encontrava pelas redondezas do bairro e descobria que eu era neta de Tereza, eu tornava a ouvir esses mesmos dizeres. Cresci na casa construída à época do seu casamento, uma das primeiras do bairro, na qual ela também criou os seus quatro filhos, então sempre tinha algum objeto ou alguma lembrança que nos remetia a ela. A camisa de seda amarela estampada com bolinhas pretas e a sua máquina de costura, uma Vigorelli preta da década de 1970, são duas das peças das quais eu mais me recordo. Me lembro como se fosse hoje o dia em que eu me deparei com a máquina de costura da minha avó. Desde então sonhava em criar e costurar roupas. Atualmente estou terminando de ler O casaco de Marx – Roupas, memória, dor, um pequeno e denso livro de Peter Stallybrass, traduzido por Tomaz Tadeu da Silva e publicado pela editora Autêntica (2004), um precioso empréstimo/presente da querida professora Antonieta Antonacci, que ao me ver imersa em lembranças costuradas pelas roupas, logo tratou de me oferecer a leitura (que aliás, eu preciso devolver)! Voltando ao livro de Peter, é possível refletir sobre a vida social das coisas e as memórias das roupas, sobretudo as das pessoas que já se foram e entes queridos, e tem feito muito sentido pensar sobre isso ao mesmo passo em que penso em minha avó e na sua relação com o vestir.
Minha avó Terezinha com os seus frescos 19 anos, camisa clara e penteado à moda dos anos dourados. São Paulo, 1953.Foto: Acervo Pessoal
A máquina de costura da minha avó, fotografada por mim em 2019.Foto: Acervo Pessoal
Nascida no começo da década de 1930, em Araraquara, região do oeste paulista, muito ligada ao café, vovó Tereza começou a costurar ainda jovem, parando oficialmente com a profissão após o início de seu casamento com o meu avô. Diferente de boa parte das mulheres negras que tinham que trabalhar fora de casa para sustentar a família, ela “costurava para dentro”, cosendo apenas para o lar. Os muitos vestidos feitos por ela são peças que sempre voltam à tona quando minha mãe lembra dos pedidos de moda que fazia para minha avó.
Para costurar essa cartografia realizei uma breve pesquisa nos documentos da família e achei parte da certidão de casamento dos meus avós que revela que antes de se casar, Terezinha era costureira de profissão.
As histórias contadas por minha mãe revelam uma mulher discreta no vestir no dia a dia, que gostava de estampas floridas e calça jeans (a única que mantinha em seu guarda-roupa). Vaidosa que era, tinha muita estima por cuidar dos cabelos e pelas joias, como um colar de pérolas e alguns brilhantes que se perderam com o tempo.
Já adulta, saudosa de uma memória que me foi transmitida somente pela oralidade, fotografias e alguns documentos, tomo a pesquisa e o estudo da moda e do vestir como norteadores para se pensar identidades, histórias e culturas negras no Brasil. Me pego agora pensando sobre como foi fundamental para as minhas escolhas ter uma avó costureira, mesmo que nós não tenhamos convivido nesta vida.
É como se ela me soprasse os caminhos que eu poderia seguir no futuro, através das lembranças que havia deixado na casa, cuidadas de maneira zelosa pela minha mãe, responsável por manter todas essas memórias presentes, fazendo de nossa casa um espaço permeado por histórias das mulheres da família. Assim como minha avó, minha mãe e eu continuamos a costurar e a pensar vestimentas, seja alinhavando uma barra, tricotando roupas para o inverno, desenhando em aquarela ou investigando assuntos relacionados ao vestir em espaços acadêmicos e artísticos.
Percebo cada vez mais como a costura poder ser entendida como um tipo de herança presente em famílias negras, em sua maioria, atravessadas por uma série de dores coloniais, lacunas de memória e espaços vazios. Na verdade, este texto é mais um ensaio de escritos de uma neta um tanto quanto nostálgica que, de alguma forma, percebe as potencialidades que os fazeres passados das mulheres da família apresentam para costurar futuros possíveis. Mas eu bem que avisei lá no meu primeiro texto que essa coluna seria sobre moda, memórias e futuros, não é?
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