É sobre roupa sim!

Entenda como a nova realidade está forçando muito estilista a repensar sua própria identidade, processo criativo e o design de moda.


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Virou uma espécie de bordão fashionista pandêmico dizer que desfile não é só sobre roupas. E até podia não ser quando havia megaproduções e excessos não incomodavam tanto. Porém, repetir essa frase de efeito no ano em que o contato social foi cancelado (ou quase) nem sempre faz sentido. É algo que ficou evidente nas coleções de verão 2021.

De certo modo, esta foi uma temporada quase toda desenrolada em torno da equação entre forma e função. É algo, por exemplo, com que a diretora Nadège Vanhee-Cybulski está bastante acostumada. Antes de assumir seu atual posto na Hermès, ela passou pelas equipes de Martin Margiela, Phoebe Philo (na Céline) e Mary-Kate e Ashley Olsen (na The Row). Suas roupas nunca pretenderam ser cool ou se adequar a qualquer hype. De forma discreta, elas se destacam pelo movimento, pelo caimento e pela maneira como compõem uma identidade e os mais diversos estilos.

Nesta estação, tudo vem ainda mais minimalista. Pense num body ou camiseta de jérsei com as costas completamente abertas, como o maiô de natação; num vestido inspirado em um avental; calças e jaquetas cortados à perfeição. Há algo de escultural em sua modelagem, porém com total liberdade de movimento. Não à toa, foi uma de suas coleções com mais pele à mostra.

Demna Gvasalia, na Balenciaga e, antes disso, na Vetements, também já se dizia mais interessado em roupas do que moda. Seu processo de criação é bastante antropológico, baseado em observação e estudo empírico sobre o vestir. É com esse olhar que ele desenvolve todo seu trabalho e com ele também que imagina como estarão nossas roupas favoritas daqui uns 10 anos. É esse o ponto de partida da mais recente coleção para a maison fundada por Cristóbal Balenciaga.

O efeito final pode ser 100% street, ainda mais com o vídeo ao som de
I Wear My Sunglasses At Night, de Corey Hart. Conceito, técnica e processos, contudo, são calculados minuciosamente. O caimento de um simples moletom com capuz tem origem em vestidos de alta-costura dos anos 1960. Os tricôs colocados na cabeça dos modelos são releituras de um icônico chapéu daquela mesma década. No caso, é como se Demna estudasse como determinadas formas (clássicas, exclusivas até) podem exercer funções sociais das mais comuns, como sair na rua rumo a uma festa ou encontro com amigos. Ah, e 93,5% dos materiais utilizados na coleção são sustentáveis ou reciclados.

Parece contrassenso dizer que as roupas reconquistaram seu protagonismo na moda. Afinal, para que servem desfiles senão para mostrar roupas. Bom, serve para muita coisa e, nos últimos anos, roupas eram o que menos importava ali. Tinha a aglomeração na entrada, as fotos de street style, a celebridade na primeira fila, o cenário megalomaníaco, a top exclusiva, a transmissão ao vivo, as selfies, os likes. Veio a Covid-19 e só o sobrou o live streaming.

Foi por meio de um desses que
Miuccia Prada e Raf Simons disseram o quão importante era deixar as roupas no centro das atenções. Era a apresentação mais aguardada da estação, a estreia do estilista belga como codiretor criativo. Esperávamos um grande espetáculo, mas fomos impactados por uma sala amarela acarpetada, repleta de câmeras e televisores. Quer dizer, fomos impactados pelas roupas desfiladas nesse ambiente.

Ali, o cenário existia em função das peças. Não havia distrações ou artifícios para desviar o olhar ou para aquele clique com alto potencial de curtidas nas redes sociais. As câmeras, simbolismos à parte, estavam ali pela ausência de olhos vivos. Serviam para capturar cada detalhe. Tudo era considerado, calculado, racionalizado.

Em tempos caóticos, a frieza científica e controlada pode ter efeitos interessantes. No caso da Prada, mudou a maneira como muita gente vinha acompanhando as semanas de moda à distância (este que vos fala incluso). As primeiras semanas de moda, quase 100% digitais, foram bastante confusas nesse sentido. Estávamos comentando as roupas, o filme, a narrativa ou a tecnologia por meio da qual tudo aquilo nos foi apresentado?

Após o desfile da Prada, ficou evidente o quão carente nós estávamos por roupas que despertassem algo em nós. Até porque quem conseguia vê-las direito até então? Mais ainda, se lembrar em detalhes de cada uma delas? Para além do hype do casal do momento, o que ficou explícito ali ‘e que pouco do que vinha sendo feito era, de fato, inovador.

Ok, ganhamos acesso sem precedentes aos bastidores de algumas das mentes mais brilhantes da moda. John Galliano, na Maison Margiela, por exemplo, foi um dos poucos que conseguiu unir tecnologia com a parte técnica da moda. Com maestria, nos abriu seu universo e processo criativo na coleção de alta-costura e, nesta terça-feira (06/10), no prêt-à-porter. Foi uma das poucas apresentações comprometidas a colocar a roupa (e como ela é feita) no centro das atenções. Não é sobre básicos, mas sobre peças pensadas — e como elas são pensadas. Roupas com design, qualidade, em que cada elemento e cada detalhe é considerado, é levado em conta. E isso não tem a ver só com o mercado de luxo. É esse tipo de peça que melhor se adequa a nossas identidades e personalidades, tornando-se elementos importantes na construção de imagem através da qual nos apresentamos para o mundo.

Mas de volta aos formatos de apresentação: tivemos ainda curta-metragens fantasiosos, desfiles dentro de caixas e pudemos ver roupas virtuais em 360º. São modelos interessantes e cada um com seu potencial. Contudo, é importante diferenciar o que é tecnologia, o que é estratégia de marketing e o que é evolução profissional de visão, de atitude, de design e de criação.

A extrema racionalidade com que as roupas e desfile da Prada foram realizados são bons exemplos disso. Verdadeira evolução do método de trabalho (agora com uma dupla na direção criativa), de identidade (meio Raf, meio Miuccia) e de design (considerando cada elemento da roupa para este novo contexto de mundo).

Conhecido pela explosão e mix de estampas e texturas e pelo uso de tecidos artesanais, nesta estação Dries Van Noten chamou mais atenção pelo uso contido de materiais. Suas últimas coleções, uma em parceria com o couturier Christian Lacroix e outra igualmente opulenta, foram exaltadas pela sua exuberância sem limites. Porém, agora, tudo aquilo parece deslocado. Até o próprio desfile.

A solução foi explorar um novo meio: a fotografia. Acontece que Dries nunca trabalhou focado nisso. Por não fazer campanhas, suas coleções eram pensadas exclusivamente para a passarela. O novo formato implicou toda uma reavaliação criativa e de design.

Em parceria com a fotógrafa holandesa Viviane Sassen, ele fotografou alguns poucos modelos em uma praia próxima a Roterdão, na Holanda. O resultado é uma de suas coleções mais jovens e vibrantes. As cores, estampas e texturas essenciais a sua identidade continuam presentes, porém adaptadas a uma nova realidade. Há mais pele à mostra, mais frescor e uma descomplicação no design em total sintonia com os desejos do momento.

O que vestíamos para sair na rua antes não é o que vestimos atualmente e, provavelmente, não será o que vestiremos pós-pandemia. Com um desfile na parte externa do Palais de Tokyo, em Paris, a diretora de criação da Chloé, Natacha Ramsey-Levi, parecia estar considerando tais pontos com sua nova coleção. Antes de tomarem a passarela, suas modelos vinham de todas as partes: da beira do rio Sena, do outro lado da rua ou de uma conversa na entrada do prédio.

De repente, é como se escapismos ou ambientes com narrativas e construções herméticas não fizessem mais sentido. Em entrevistas após o desfile, a estilista disse ter pensado na maneira como nos relacionamos com nossas roupas e como isso impacta a maneira como somos percebidos pelos outros. O resultado foi uma coleção de reinterpretações de elementos e silhuetas de temporadas passadas. Entre as principais adaptações estão shapes mais soltos e confortáveis, peças com decorações reduzidas, modelagens e construções mais simples.

Algo que também podemos ver na Louis Vuitton de Nicolas Ghesquière. Sua paixão pela história da moda aliada a uma estética algo futurista continua presente, porém agora de maneira mais contida — ou, ao menos, considerada para o atual momento. Apesar de algumas construções complexas, é possível encontrar em boa parte dos looks variações de peças que reconhecemos facilmente. A jaqueta oversized tem algo de comum, quase como uma versão modernista daquela que já temos no armário. O moletom confortável de todo dia aparece com textura tramada e ombros levemente marcados. A camiseta ganha tecidos nobres, recortes geométricos e até um babado acetinado em uma das mangas.

Na Dior, Maria Grazia Chiuri também diz ter se pautado mais pelo design. Inspirada pelo trabalho de design funcional da designer italiana Nanni Strada e por alguns desenhos que Christian Dior fez para o mercado japonês em 1957, a diretora de criação se propôs a explorar uma nova silhueta para a maison.

Por ser uma marca de alta-costura, muito do que Dior fez tinha estrutura bastante rígida, construções elaboradas e tecidos que demandam todo um cuidado extra. Nada disso faz sentido no momento. Vem daí as jaquetas mais soltas e amarradas na cintura delicadamente, as camisas oversized com detalhes rendados e a preferência por materiais confortáveis como linho e algodão.

É uma nova perspectiva para a marca e para a própria estilista. Maria Grazia sempre aproveitou os desfiles para fazer discursos políticos sobre representação, direitos e liberdades femininas. Dessa vez, foram referências a Virginia Woolf, Simone de Beauvoir, Susan Sontag e à artista italiana Lucia Marucci (o filme de abertura era todo sobre ela). Mas se antes o discurso parecia ofuscar as roupas, agora é como se estivesse naturalmente costurado nelas.

“Precisa ser responsável, sustentável, sensível, inclusivo, diverso”, dissemos e ouvimos muito nos primeiros meses de quarentena. E tá certo, precisa mesmo. O que começa a ficar nítido agora é que tais ações são ainda mais potentes quando naturalizadas nos processos de produção e criação. Em outras palavras, quando o discurso vira prática.

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