O prazer é uma arma quente

Vibrador vicia? Limita o prazer? Atrapalha seu relacionamento? Entenda a guerra contra o prazer feminino através da desinformação e do pânico generalizado contada pela história.


vibrador
Ilustração: Mariana Baptista



Se você já ouviu falar sobre vibrador e ferramentas de prazer, possivelmente também já deve ter recebido avisos de “cuidado”, vindo de pessoas assustadas, ou escutado frases como “dizem que é bom, mas já ouvi falar por aí que faz mal, tenho medo”, de pobres seres que preferem não provar as delícias disponíveis, com medo de possíveis consequências punitivas, seja de Deus ou do próprio corpo. No fundo, confesso que hoje eu até vejo graça e rio antes de falar sobre, porque os absurdos se rebatem ou com raiva ou com doses de bom humor e informações embasadas. Aí me entreguei à segunda opção, já que não tenho mais o tempo necessário para as voltas que a ação pela raiva exige. 

Como as pessoas que me leem aqui já sabem, eu acredito muito que duas coisas, em especial, valem a luta: o descanso e o prazer. Pode parecer hedonista demais, eu sei, mas quando o mundo inteiro diz que você precisa produzir o tempo todo, que não se deve nem pausar nem gostar verdadeiramente e sem culpa do processo – e à medida que vamos adoecendo para manter esse sistema desumano –, percebo o quão é importante bater o pé e reivindicar as duas coisas. Ainda mais se entramos no recorte de maiorias minorizadas ou marginalizadas. 

A demonização do prazer feminino não é uma artimanha recente nem é apenas um modo de dizer. Isso é algo que consegue ser muito literal, e percebemos através da história da humanidade e do cristianismo. Escrito em 1484 e publicado com aprovação papal em 1486, o Malleus Maleficarum, ou Martelo das Bruxas, era um livro que tinha como propósito apontar quem seriam aquelas mulheres aptas a serem queimadas ou decapitadas pelo ato de bruxaria. E o que podia ser considerado bruxaria na época? Bem, entre tantas coisas chocantes e banais, uma era apenas ter um clitóris, também chamado de “bico do seio do Diabo” pelo autor. Imaginem vocês, tudo era motivo para o esmagamento de um corpo feminino – apenas a existência dele já bastava. Bom, as torturas e culpabilização, que hoje parecem tão cruéis, foram se moldando e tomando outros formatos conforme a modernidade se aproximou, mas podemos imaginar que não foram extintas. 

Separam a imagem de Eva e de Lilith, a imagem da mulher pra casar e a que serve apenas para sexo e descarte. Século a século, às vezes um pouco mais sutil, às vezes nem tanto, as formas de limitação corporal, afetiva e sexual feminina foram seguindo firmes e fortes, apesar das mudanças de linguagem e abordagem. 

Eis que hoje, 2023, estamos presenciando um novo tipo de discurso disparar como um foguete. A classe média tem assistido de camarote a faísca da indústria do bem-estar sexual feminino, o famoso sexual wellness, se tornar incêndio. E não sejamos ingênuos: vemos essa crescente não pela necessidade e importância do tema, mas porque ele faz girar o bem mais precioso da nossa sociedade atual, o dinheiro. Esse mercado, que pós-pandemia se tornou bilionário, acabou impactando positivamente a vida de muitas mulheres que carregam até hoje as sequelas daquelas que foram queimadas na inquisição. Ainda estamos falando de uma bolha, mas ela já é grande e está numa expansão boa o suficiente para causar incômodo e ataques destrutivos, seja pela censura das redes sociais, seja pelos mitos inventados. 

A cada dia tenho a felicidade de ler os relatos de primeiros orgasmos de leitoras e seguidoras graças a essa ferramenta feita exatamente para isso: gerar orgasmos. Mulheres de 20, 30, 40, 50 anos, tendo, pela primeira vez na vida, a chance de experienciar essa descarga de energia gostosa, que faz bem pro corpo todinho. Ou pelo menos tendo um acesso mais fácil a isso, já que o ápice do prazer não costumava chegar com tanta frequência. Positivo, certo? Certo, mas agora querem dizer que não. Num híbrido de gaslighting com pseudociência, querem fazer com que mulheres acreditem que aquilo que as trouxe um prazer nunca antes alcançado, é, na verdade, o vilão da história. 

Então, vibrador vicia?

 Não. Quando falamos de vício, estamos falando de uma necessidade fisiológica que se cria a partir da dependência química ou comportamental, que atos ou substâncias podem causar. O que não faz sentido nenhum nesse caso. Eu entendo que o uso errôneo do termo “vício” vem muito mais do medo de não conseguir se estimular ou atingir o orgasmo sem o uso do vibrador – também não é por aí e nunca se teve um estudo que comprovasse tal coisa. Então, o que, de fato, pode acontecer? Mais um costume de se estimular sempre da mesma forma, condicionamento que pode ocorrer mesmo sem o uso de ferramentas externas. Uma pessoa pode se acostumar a gozar sempre na mesma posição, usando os dedos de formas ou ritmos iguais, de bruços ou de barriga pra cima, com as pernas mais fechadas ou abertas, num tempo específico, etc.. Esses são os atalhos que a mente encontra para que a satisfação seja acessada mais rapidamente. E não, não tem absolutamente nada a ver com o vibrador em si.

Vibrador limita o prazer? 

Pelo contrário. Olha, o que eu vi de mulher saindo da limitação nos últimos anos por conta da popularização dessas belezas é incontável. Como já disse antes, é tudo uma questão de equilíbrio. Saiba variar os estímulos e o prazer irá se intensificar cada vez mais. Nenhuma vibração é capaz de destruir as mais de 10 mil terminações nervosas clitorianas. Não existe isso de perder a sensibilidade pra sempre. O que pode acontecer é sentir um leve formigamento por alguns minutos após um uso intenso, da mesma forma que aconteceria que se o estímulo fosse nos braços, ou até como sentimos a mão mais dormente após ficarmos sentadas em cima delas por um tempo. É isso, e volta ao normal. Ninguém se “quebra” por estar gostando demais de algo que é pra ser gostoso. O alarde é completamente desnecessário e infundado.

O vibrador vai acabar com o meu relacionamento? 

Olha, já tinha até abordado esse tema lá em 2021. Se você ainda não leu, volte ali que está tudo bem explicadinho. Mas, em resumo, se a pessoa que está com você quer ter domínio de todo o prazer que você possa sentir, tem algo errado aí. Autonomia e o respeito da individualidade são coisas que engrandecem uma relação. Você convidar sua parceria para dividir momentos íntimos com mais prazer envolvido, usando o vibrador como aliado, é uma forma muito potente de conexão e confiança. Mas, se o ego (ou narcisismo) da pessoa acabar ferido ou transformando tudo numa ameaça, atente-se à bandeira vermelha que se apresenta aí.

A verdade é que às vezes até me pego achando repetitiva demais, batendo nas mesmas teclas todos os dias, mas é porque, do outro lado, o machismo também gasta muito a palavra. Pra combater o reforço constante negativo, talvez precise desse reforço constante positivo. Tenho um pacto fiel de não deixar que se normalize o absurdo. E querer inventar problemas onde não tem, diante de tudo o que as mulheres realmente passam, é pra mim um absurdo imenso. Por isso, quero agradecer a cada um que tem lido e escutado o que me prontifico aqui a dizer, quem tem se tornado vulnerável e aberto juntinho de mim, porque isso é algo muito bonito de se ver. A Barbie colocando o pé no chão e indo na ginecologista vai incomodar muita gente, a mulher que se dá orgasmos intensos sem precisar de ninguém também. Seguiremos incomodando e não deixando que ninguém limite o nosso prazer, combinado?

Com amor, 

Clariana Leal

Clariana Leal é educadora sexual e carrega como propósito a abertura honesta e inclusiva do diálogo sobre sexo, desejo e corpo.

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