Sexy é o quê?

Sobre Poly, Billie, Audre e as questões do erótico.


origin 889



“Muita gente acha que as meninas devem ser vistas, não ouvidas. Mas eu acho que: oh submissão, teu c*!”. Em tradução minha, um dos gritos mais potentes do punk. Poly Styrene, na abertura de “Oh Bondage! Up Yours!”, no sentido de servidão a um certo modelo de mundo. Em um corte brusco em muitos sentidos, pensei em como isso conversa com Billie Eilish assistindo pornografia padrãozinho em Male Gaze (Olhar Masculino), “ela não pode estar tão satisfeita assim”.

Poly ganhou um documentário neste ano. Sua filha reconta a história da primeira frontwoman negra do punk, uma moça de origem operária, com uma voz única e uma presença de palco impressionante. Chama-se Eu sou um Clichê o filme, coisa que Poly cantou mas nunca foi. Ela sofreu muito com distúrbios psíquicos, chegou a ser diagnosticada como esquizofrênica, erroneamente. Não teve o cuidado necessário. O filme bota em jogo a questão da identidade, presente em suas letras. O clichê esperado dela, da moça punk. A estranha, a feia de aparelho, a que não serve pro “male gaze”. Racismo, sexismo, tudo isso que ataca a saúde mental feito um rolo compressor.

Penso de novo em Billie Eilish, ídola desse amontoado de marketing ruim que chamam de Gen Z. É uma letra, enfim. Billie Eilish é talentosa. Uma moça que usa calça de skatista cinco vezes maiores que ela. Meio emo, meio gótica, inteligente, aberta a falar também das coisas difíceis da vida.

Certo dia Billie fez um ensaio sexy pra uma revista. Disse que se divertiu e tudo. E depois voltou com seus looks antigos, foi neles receber seu prêmio no VMA. A mudança porém não passou batida.

Interessante especialmente notar uma corrente forte tentando explicar a coisa toda do sexy, ou melhor, de uma versão muito específica do que é sexy e do que isso teria a ver com “ser”, como amadurecimento. Ou seja, você experimenta como jovem, mas uma vez madura você vira clássica, uma das variações disponíveis do cool ou sexy. E se você for artista meio que o sexy é a recomendação do sistema.

O que é ser sexy? Na moda é meio como adotar um figurino e uma certa atitude extremamente padronizada. E isso não passa tão longe de um senso comum mais amplo. Em geral, quem mostra mais pele, mais corpo é mais sexy no placar geral. O corpo e os jogos de ver e esconder têm sim muito com isso, mas a redução é ainda assim empobrecedora, sem dúvida.

Não se trata de vigiar pessoas ou rotulá-las, mas de pensar na moldura do lance. De novo, o que é sexy, o que significa ser sexy? É algo que se vê, que sempre se mostra? Quem é sexy é sexy o tempo inteiro? Fica obrigado a ser? Quem decide isso?

Pode alguém, por exemplo, estar apenas com calor? De top, shorts, sem camisa, sorvete, um sol a pino. Pode um pijama-moletom velho com meias de pantufa conter um ser humano que se sente extremamente sexy e assim é sentido por um outro nesse exato momento? Se visto um look cujo código social atual é lido como sexy, o que posso querer com isso? A mensagem é unificada ou não? Será mesmo que é tudo tão óbvio, que nada escapa?

Nossa ideia de sexy se confunde com o pornográfico e com o erótico. Tem a ver com quem olha, com quem se percebe ou se deseja visto, se deseja desejado. É mais complexo do que querem os marqueteiros. Até porque, entre muitos outros pontos relevantes, erótico e pornográfico não são absolutamente a mesma coisa.

Em Os usos do erótico: o erótico como poder, a poeta e ensaísta feminista Audre Lorde fala disso. “O erótico tem sido frequentemente difamado pelos homens, e usado contra as mulheres. Tem sido tomado como uma sensação confusa, trivial, psicótica e plastificada. É por isso que temos muitas vezes nos afastado da exploração e consideração do erótico como uma fonte de poder e informação, confundindo isso com seu oposto, o pornográfico. Mas a pornografia é uma negação direta do poder do erótico, uma vez que representa a supressão do sentimento verdadeiro. A pornografia enfatiza a sensação sem sentimento.” Ainda que outras autoras e movimentos proponham discordâncias nesse sentido, não há como não reconhecer aí uma leitura extremamente válida e em muitos aspectos verificável de questões do nosso tempo.

Em geral, a discussão gira em falso, atacando ou questionando pessoas. Índices de bunda à mostra, pirâmides morais que se invertem ao gosto do mercado sem que haja de fato mudança. Ou pensamento que possa abrir novos caminhos enquanto se constrói. Tudo fica resumido a novas adesões a um mesmo clube que só muda de nome e de logomarca.

O erótico mexe com forças. Forças de vida e morte. O mistério do sexual, com o ato sexual em si, com partes do corpo mais investidas de atenção, mas além disso. Forças de criação.

De novo, Audre Lorde. “Reconhecer o poder do erótico em nossas vidas pode nos dar a energia necessária pra fazer mudanças genuínas em nosso mundo, mais que meramente estabelecer uma mudança de personagens no mesmo drama tedioso. Pois não só tocamos nossa fonte mais profundamente criativa, mas fazemos o que é fêmeo e autoafirmativo frente a uma sociedade racista, patriarcal e anti-erótica.”

A questão não é pensar se essa ou aquela imagem de sexy é anti-erótica, mas que a operação de tentar aprisionar e padronizar o sexual, seja qual for o modelo, é em si anti-erótica. E, sendo assim, em vez de fazer movimentar os processos de criação e destruição envolvidos um com o outro num turbilhão de pernas, línguas, ideias, desejo etc., essa patrulha trabalha tão somente pela submissão, pela servidão, especialmente das mulheres. E nisso há algo que isola o mortífero da coisa.

O capital controla o prazer que, como a gestão da dor e da doença, é essencial à manutenção do poder. E não atinge somente as mulheres, embora as afete de uma forma específica.

Um outro trecho desse ensaio obrigatório de Audre. “Durante toda nossa vida temos sido alertadas contra ele (o erótico) pelo mundo masculino (o do patriarcado capitalista), que valoriza sua profundidade a ponto de nos manter por perto para que o exercitemos em benefício dos homens, mas ao mesmo tempo tempo a teme demais para sequer examinar a possibilidade de vivê-la por si mesmos. Então, as mulheres são mantidas numa posição distante/inferior para serem psicologicamente ordenhadas, mais ou menos da mesma forma com que as formigas mantêm colônias de pulgões que forneça o nutrimento que sustenta a vida de seus mestres. Mas o erótico oferece um manancial de força revigorante e provocativa à mulher que não teme sua revelação, nem sucumbe à crença de que as sensações são o bastante.”

Como cresce um jovem ensinado que só deve desejar alguém que segue a descrição do manual? O que é ser gostosx? Como cresce a moça que acha que deve performar sensualidade estereotipada? O que isso, mais raça e classe representam como facilitadores ou impedidores dos encontros? Como se aprende a transar hoje sob a mira de tanta tanta tanta imagem? Sim, porque nós olhamos as imagens, mas elas acaso não nos olham de volta?

O que podemos fazer pra dar uma desmontada nesse esquema?

Daí volto a Alexandra Kollontai, que citei na coluna passada, e à importância do que ela chama de amizade erótica. Exercitar esse poder criativo estando junto. Não, não quer dizer transar com toda ou qualquer pessoa, senta, senta, senta e sai igual. Mas de ir se falando, ouvindo, fazendo coisas juntos. Inclusive transar.

Audre Lorde fala do erótico, em trabalhar, militar, cozinhar, escrever um poema e dar uns pegas com a namorada dela. Alexandra fala de tudo isso e de lutar na rua por mudanças estruturais. Elas conversam, maravilhosas.

Nada a perder senão correntes, um mundo novo pra construir, ganhar. Sei lá, pra mim parece bem promissor.

Vivian Whiteman, jornalista e psicanalista, é editora especial da ELLE e escreve sobre moda, sociedade e comportamento.

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