Puxa vida!
Colunista tenta vencer os clichês (e a timidez) para escrever sobre a importância do ídolo Caetano Veloso para o Brasil durante a pandemia.
Neste espaço aqui na Elle, chamado de Outras Palavras, em homenagem à canção de Caetano Veloso, e justificando certo modo meu atravessado de escrever numa publicação de moda tão prestigiosa, faz sentido que a última postagem do ano seja também, justamente, uma menção a esse cantor e compositor baiano. Uma ode, um agradecimento, um axé, um salve.
Vou escrevendo assim, no fluxo, para evitar que me acometam certa angústia da influência e o constrangimento causado por eventuais clichês. Porque qualquer coisa, qualquer palavra para Caetano Veloso é sempre pouca. É porque, neste 2020 de tanta solitude, quem nos confortou e iluminou foi mais uma vez esse homem (velho) que nos serve de farol.
Velho? Só nos versos da música que leva este nome. Aos 78, Caetano Veloso está longe de ser, estar, ficar ou mesmo permanecer velho. Em constante transição, vemos no instagram seus exercícios, sua dieta de paçoca y kombucha, acompanhamos o que poderia ser a desconstrução da imagem mitológica do astro, obra da excelsa empresária and esposa Paula Lavigne, esse caetano-de-pijamas, de cuecas, chinelos, roupão, desce do Olimpo diretamente para o nosso lado e para as novas gerações, que devem, deveriam conhecer toda a sua obra e sua extensão. Assim, na quarentena do Narciso, ganhamos livro, documentário, live doméstica e show híbrido do muso – ao vivo, sem público, como impõe a fase verde da cultura no país.
Em estilo minimalista, “Narciso em Férias”, o filme, traz com objetividade e crueza também estética o relato do artista sobre o impacto em sua vida de seus 54 dias encarcerado, por conta da ditadura militar. “Este, que é meu escrito a que atribuo maior valor, entra na cena atual da vida política brasileira de modo abrasivo”, anuncia, em atualizado prefácio a este capítulo de sua “Verdade Tropical”. Necessário, absoluto. Preciso. É de silenciar a alma a parte em que ele revê a revista Manchete com a foto até então inédita da Terra azul vista da Lua. Terraplanistas & negacionistas, uni-vos – e vazai-vos.
Escrevo também estas mal-traçadas tocada pelo alinhamento de Júpiter e Saturno, e pela recente live, exibida agora dia 19 e disponível ainda no YouTube, em que o Brasil é brindado por um especial natalino que, não fosse pela delicada menção e a abertura com “Muito Romântico”, não nos faz em nada ter saudade daqueles dezembros deprês embalados por Roberto Carlos na Globo. Aqui o presente vem também pra quem ajudou a definir o repertório, dentre fãs famosos ou não, friends and family. Por meio da escolha do set-list, no ao vivo de Caetano Veloso alguns versos nos ajudam a entender o Brasil hoje. Mesmo alguns mais antigos, como os de “Muito” (de 1978), dedicado a Regina Casé: “luxo para todos”, deseja o cantor, a vontade de um país menos desigual. Vestido de Handred pelo delicioso stylist & amigo Felipe Veloso, Caetano Veloso emerge atemporal: gente é outra alegria, comprovam a versão solo de “Aquele Frevo Axé” ou o violão gilbertiano de “Avarandado”.
Já na primeira live, a do aniversário, em agosto, algumas horas eu chorava e soluçava tanto que mal conseguia ouvir sua voz. Pior: fiz igual àqueles chatos de show, cantando junto tudo, insuportável karaokê, só que desesperada, colada em frente à TV. Aquele momento era um ponto cego no retrovisor da 40tena, a gente sem lenço sem documento, sob um governo sem juízo desmatando a mata; necropolítica a pleno galope. E lá estava Caetano Veloso unindo o Brasil de sua sala de estar, e a gente do lado de cá gostando de ver as obras de arte e os livros à mancheia na estante, muitas e muitas mensagens subliminares. E até sair do ar eu revi e revi aquele show zil vezes.
É que eu achava que fosse, e tinha a certeza de que era, na verdade queria muito ter sido a menina-do-anel-de-lua-estrela. Em minha adolescência no Rio de Janeiro, torcia para encontrar com Caetano e sua turma, de noite no Baixo. Que eu nem freqüentava, àquela época. Mas em meus sonhos, sim. Caetano Veloso é, e sempre foi, trilha sonora da minha vida – junto com Marina Lima, assunto para outra coluna <3. Na pandemia, não foi diferente, e é sobre tantas décadas sendo referência, sendo essa voz para um país, que ocorre à mente a ideia de um Brasil com esperança, mais afetuoso, mais doce. Nostalgia do que nunca vivemos. Uma saudade, um abraço. Lágrimas. O Brasil vai. Disse Caetano. Ele falando, eu acredito.
Ele falando da família: Tom, Zeca, Rosa, José, Benjamin, Paulinha, Bethânia. São nossa quase família. Sob o prato e garfo de Moreno, somos praticamente do Recôncavo, seguimos todes a novena de Dona Canô, feeling arquetípico instaurado com “Ofertório”, disco e turnê. Caetano avô, pai, irmão, aumenta a saudade do meu pai, dos meus filhos, da minha mãe, da minha família. Um abraço. Um abraçaço. Caetano trocando o nome dos filhos, como sua mãe chamava os deles até acertar (Rodrigo Roberto Caetano) e minha avó trocava os de minha mãe e minhas tias: Marly Leny Beth). Mais lágrimas.
Ao ler a coisa linda de artigo escrito por Vivian Whiteman (publicado na Elle impressa) sobre sua entrevista ao telefone com Patti Smith, me lembrei de outro episódio importante com Caetano Veloso em minha vida. Pra o número 1 da revista KEY, que lançamos em 2006, Candé Salles me colocou frente a frente com o ídolo. “Fui encontrar com Caetano Veloso para falar só de moda. A ideia era essa. Afinal, todo mundo já perguntou de um tudo para ele, mas eu queria saber mais sobre imagem. Desde o tropicalismo, o que Caetano Veloso usa, o modo como se move, suas danças e gestos fazem tão parte de sua mensagem”. Eu tentava imprimir normalidade até descobrir lá pelo meio da prosa que o gravador digital que eu estreava parou. Por sorte, o cantor tinha o dele, de fita. E com a mesma calma de Patti Smith com a Vivi ele colocou uma fita e a entrevista prosseguiu. Dias depois, com toda a paciência da vida, ele repetiu as respostas das perguntas perdidas pela gafe tecnológica.
E pronto, como se diz na Bahia. Charmoso, ao trocar letras, sílabas e cifras, Caetano Veloso confunde 21 com 2001 – logo ele que nunca errou e mesmo quando errou estava certo, e divide (despropositadamente?) com a gemt mais uma das lições da pandemia: que não precisamos ser perfeites. Que, como diriam Gil, Gonzaguinha e Elis, “a perfeição é uma meta defendida pelo goleiro que joga na seleção”. “Nós seguimos aqui mesmo, aperfeiçoando o imperfeito, dando um tempo, dando um jeito.”
Puxa vida!
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