Tecendo modas e memórias com Catherine E. McKinley

A colunista Hanayrá Negreiros conversa com a autora do livro The African Lookbook: a visual history of 100 years of african women.





Parece que foi ontem que a ELLE voltou ao público! E em maio do ano passado eu estreava por aqui com o meu primeiro texto, Negras Maneiras, um convite para mergulhar nas memórias, modas e fotos antigas de nossas famílias. De lá para cá tanta coisa aconteceu! Conheci muitas pessoas maravilhosas e pude compartilhar um pouco dos processos de construção dos textos, assim como pude pensar na importância de se escrever, ou como eu gosto de falar, de “costurar” ideias sobre negras maneiras de vestir em uma coluna de moda.

Comentei brevemente no início do meu artigo anterior – no qual pude conversar com a elegante e sincera Rosana Paulino –, sobre a dificuldade que é escrever em tempos pandêmicos. Porém, uma das coisas que têm me ajudado a organizar melhor as ideias é escrever cartas virtuais. Inspirada pelas cartas feitas aqui pela minha amiga Vivian Whiteman, tenho escrito para pessoas amigas e familiares e tem sido uma boa forma de colocar as palavras “para jogo” e de estar mais junto de pessoas queridas, partilhando de um outro tempo, o do e-mail, da mensagem que lemos e respondemos somente no outro dia, semana e, às vezes, até um pouco mais.

Encorajada pela energia das cartas, resolvi extrapolar o português e me aventurei escrevendo para uma mulher que eu não conhecia, mas que já admirava o trabalho há algum tempo. Na cara e na coragem, convidei a escritora e curadora estadunidense Catherine E. Mckinley para conversar sobre o seu mais recente livro, The African Lookbook: a visual history of 100 years of african women, que em português poderia ser traduzido livremente como “O Lookbook africano: 100 anos de história visual de mulheres africanas”, publicado pela Bloomsbury em fevereiro deste ano. Aqui mantenho a palavra lookbook em inglês, que muito se relaciona com a linguagem de moda que usamos aqui no Brasil quando nos referimos à fotografia de moda. Porém, lookbook também poderia, no caso do livro, indicar a ideia de um álbum de fotos que mostram os looks de mulheres africanas em um recorte de 100 anos.

A publicação, que nasce da coleção de imagens que Catherine reúne há anos, é uma exploração da história fotográfica do continente africano, conectando moda, história do comércio e individualidade de mulheres. Apresentando trabalhos da Coleção McKinley, um arquivo pessoal que representa fotografias africanas de 1870 até o presente, a obra traça um panorama de visualidades que é muito rico para a reflexão sobre moda e História.

Capa de The African Lookbook: a visual history of 100 years of african women. Bloomsbury, 2021.

Capa de The African Lookbook: a visual history of 100 years of african women. Bloomsbury, 2021.Foto: Divulgação

Catherine é taurina e moradora de Nova York, bem no centro de Manhattan. Perguntei a ela como têm sido os tempos mais recentes e loucos que estamos vivendo e ela começou me contando que “a cidade tem estado muito solitária e desesperadora, de uma forma que as pessoas não podem imaginar.” Catherine também reflete sobre “alguns momentos de intensos protestos políticos que encheram muitos com um sentimento de esperança, uma crença no poder da organização negra, nos artistas e no ativismo, e na possibilidade de uma profunda transformação pessoal e social.” Com isso, a escritora tem trabalhado em casa escrevendo e promovendo o livro, com os seus dois filhos adolescentes – “somos só nós há mais de um ano – vivendo as mesmas vidas anormais que a maioria das pessoas no mundo tem agora, esperando por uma chamada para voltar à vida novamente com segurança.”

Catherine em retrato feito pelo seu filho, Shalom Davis.

Catherine em retrato feito pelo seu filho, Shalom Davis.Cortesia da autora

Ao olhar as imagens apresentadas no livro, senti uma familiaridade com várias das mulheres ali representadas. Rememorando os escritos do meu primeiro texto aqui, contei à Catherine, como tem sido importante fazer resgates sobre as histórias de famílias negras e brasileiras, lutando contra os bem-sucedidos processos de apagamento histórico que pessoas negras carregam em suas existências, causados pelos mais de três séculos de escravidão e de uma reparação pós-abolição inexistente no Brasil. Perguntei à autora como ela se relaciona com as memórias de sua própria família e Catherine diz que vem de um núcleo familiar misto e composto por: uma parte afro-americana; uma parte Choctaw, povo indígena norte-americano; e uma parte de judeus russos. Ela ainda conta que fez alguns rastreamentos de DNA para chegar mais próxima de sua própria ascendência africana, mas que, curiosamente, a sua linhagem foi continuamente sendo atualizada no banco de dados, mudando as origens de Marrocos, Senegal e Gana, a outras nações do oeste e centro do continente – predominantemente o Congo. “É estranho testemunhar a falta de confiabilidade ou alteração dos dados dos quais presumimos que os bancos de DNA nos protegem. Como acontece em nossas histórias de família, temos que aceitar que a narrativa principal nesses testes, como na memória, é profundamente falha.”

Em minhas conversas anteriores com Catherine, me lembro dela dizer que sentia muita falta da África, lembrando de sua primeira viagem, em 1991. Ela conta ter viajado, desde então, quase anualmente para o continente e que morou lá por alguns períodos, passando temporadas em 14 países. “Parece muito, mas eu viajei devagar, principalmente por terra, fora das rotas turísticas. Também não parece nada quando você considera que existem 54 nações para ‘completar’ o conhecimento de alguém. Meus filhos adolescentes passaram quase todos os verões em Gana, Burkina Faso e Marrocos, enquanto eu pesquisava e trabalhava. Preciso desses verões para sobreviver à América.”

Catherine diz pegar todo o seu combustível criativo lá, “diariamente sinto falta das pessoas, da luz do fim do dia, do chamado para as orações marcando o tempo, da sensação dos meus pés no chão, da comida e de tudo que se move pela ótica durante o dia. Gosto de viver na complexidade das geometrias e cores, das roupas à maneira como o espaço é organizado, até como alguém arruma os amendoins que vende. Corresponde às vibrações do meu cérebro e do meu coração.”

Lendo as palavras de Catherine, pude me transportar para as ruas de Acra, capital ganense, ou talvez para as feiras de Marrakesh, imaginando os vestires negros e femininos desses lugares, modas e modos que podemos encontrar nas páginas do seu livro. Ainda pensando nas mulheres que aparecem nas imagens, a autora diz que elas também lhe parecem muito familiares, “passo muito tempo pensando em pequenos detalhes das imagens ou em partes do que posso saber de sua história. Muitas das fotos vivem em nossa casa, e as mulheres e os homens nelas nos dão a impressão de que estamos em requintada companhia. Sinto-me mais próxima dos meus verões e dos meus antepassados, e eles fornecem a companhia tranquila e o estímulo de que preciso para fazer meu trabalho.”

Compartilho das ideias da Catherine, e penso nas fotografias do continente africano que tenho nas paredes de minha casa, e da importância da presença diária desses referenciais estéticos como resistência à torrente de imagens embranquecidas que a mídia capitalista nos empurra diariamente. Tentativas de contra narrativas visuais e de aproximações a outras histórias, maneiras de vestir e memórias que muito têm a ver com as heranças africanas presentes no Brasil.

Sem t\u00edtulo, sem data e autoria desconhecida. Benin.

Sem título, sem data e autoria desconhecida. Benin. Cortesia da Coleção Mckinley. The African Lookbook.

Garotas Bondu II, c. 1920. Fotografia dos Irm\u00e3os Lisk-Carew, Freetown. Serra Leoa.

Garotas Bondu II, c. 1920. Fotografia dos Irmãos Lisk-Carew, Freetown. Serra Leoa. Cortesia da Coleção McKinley. The African Lookbook.

Perguntei à Catherine como tem sido atuar como uma mulher negra colecionando imagens como as do livro, relacionando também a Coleção McKinley com estudos africanos na história da moda e da fotografia. Ela nos conta se sentir extremamente privilegiada por ter essas fotos. “Consigo desfrutar do prazer óbvio e profundo de viver com eles diariamente. Eu coleciono, e essa é uma forma de relação com as obras, mas com as fotos – diferente de tecidos ou estátuas, meus outros amores – vejo principalmente meu papel de zeladora. Estes são meus ancestrais – e seus, e eles também pertencem a famílias e nações específicas das quais se perderam por uma série de razões.”

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Aunty [tia] Koramaa, c. 1975. Diamond Photo Studio No. 4, Acra. Gana. Cortesia da Coleção Mckinley. The African Lookbook.

Catherine afirma que o número de colecionadores negros de fotografias africanas ainda é muito pequeno. As fotos pertencem principalmente a instituições e colecionadores brancos muito ricos. “Ambos empregam pessoas para buscar material e ficar por dentro dos leilões etc. Eles sabem quando um álbum raro está à venda e jogam para ganhar. Depois de vendidos, eles são transferidos para uma vida de objeto de arte e passam a ser controlados de muitas maneiras que os delimitam. Quando adquiro uma imagem, sinto que fiz uma espécie de missão de resgate.” A Coleção McKinley foi criada para ser um recurso para outras pessoas e atualmente, Catherine se dedica a trabalhar principalmente com artistas africanas, se mostrando animada a continuar pensando em atividades, incluindo uma exposição, que teve os planos adiados por conta da pandemia – quem sabe trazendo-a ao Brasil um dia também.

Duas jovens garotas "Ye-Ye" com \u00f3culos de sol, 1965. Abdourahmane Sakaly, Mali.

Duas jovens garotas “Ye-Ye” com óculos de sol, 1965. Abdourahmane Sakaly, Mali. Cortesia do espólio de Abdourahmane Sakaly, Bamako, Mali, e Revue Noire, Paris.

No livro, a autora costura narrativas visuais e de moda de mulheres negras a partir da obra de fotógrafos africanos como Seydou Keita, Malick Sidibé e Mama Casset, imagens que refletem sobre a luta pela liberdade nos territórios africanos contra o imperialismo europeu. Catherine também dialoga com imagens coloniais tiradas por alguns fotógrafos brancos. O processo de juntar essas duas narrativas passa pela questão de pensarmos a Coleção Mckinley sendo composta por fotografias de estúdio e imagens vernaculares, ou seja, fotografias amadoras ou feitas por fotógrafos desconhecidos, africanos, desde 1865 até o presente. Ao mesmo tempo, Catherine se mostra interessada no arco completo da criação de imagens feitas no continente, “então, ignorar os fotógrafos europeus – como sei que alguns colecionadores fazem – é um equívoco. Estou interessada na economia – quem aprendeu com quem, como eram os estúdios concorrentes em uma determinada cidade. O comércio de moda e o comércio fotográfico estavam ligados.”

Mulher Fante, Sekondi, sem data, autoria desconhecida, Costa do Ouro (Gana).

Mulher Fante, Sekondi, sem data, autoria desconhecida, Costa do Ouro (Gana). Cortesia da Coleção McKinley. The African Lookbook.

Além de suas narrativas e pesquisas, a publicação conta com a presença de ilustres convidadas: a aclamada romancista haitiana Edwidge Danticat, a premiada escritora e autora de memórias Jacqueline Woodson e a artista norueguesa-nigeriana residente em Oslo Frida Orupabo. Perguntei como foi trabalhar com essa equipe de mulheres negras e Catherine diz ser difícil falar sobre sua colaboração com Frida, Jacqueline e Edwidge, pois “foi como um presente, um encontro criativo, muito bom para ser verdade, e nem um pouco planejado! Jacqueline é minha amiga há décadas e estivemos juntas em Gana por um breve período no verão anterior à pandemia. Ela era uma voz natural no projeto. Edwidge escreveu lindamente sobre fotografia, dentre todas as outras coisas sobre as quais escreve, e, novamente, seu ensaio nasceu de uma conversa. Não foi planejado, mas uma vez determinada a sua participação, a dimensão de ter sua voz ao lado da de Jacqueline era imensa. Frida e eu temos amigos em comum e começamos uma conversa via Instagram onde ela posta como @nemipeba. Eu sou sua maior fã. Frida é de Oslo, de ascendência nigeriana e norueguesa. Isso também dá uma grandeza ao trabalho.”

Para finalizar, me despeço de Catherine agradecendo-a muito por nossa “troca de cartas”, pedindo para que ela nos indique músicas que embalaram a escrita do livro. “Para mim, Naam do álbum Din Ya Sugri de Christie Azumah & the Uppers International é totalmente transcendente – como as mulheres nessas imagens. Também atua na junção espiritual entre a plenitude da vida e o luto, que é onde grande parte da fotografia se encontra, e onde estivemos no ano passado, principalmente, durante os estágios posteriores da produção do livro.”

Entre olhares ainda incertos para o futuro e novos projetos, Catherine reflete sobre as atuais mudanças nas estruturas institucionais do campo das artes e museus, as demandas de repatriação de objetos obtidos em saques coloniais, posturas radicais de artistas negros, o movimento Black Lives Matter e outros acontecimentos que influenciaram positivamente a forma como pessoas negras estão pensando nas artes. As oportunidades de exposições que estavam sendo construídas com instituições africanas acabaram por conta da pandemia, mas já havia uma rigidez nas estruturas que fazia Catherine pensar em trabalhar fora delas. “Portanto, meu foco mudou para projeções públicas das imagens, há algumas coisas interessantes por vir! O futuro é tênue, mas alguma luz forte está aparecendo”

É sobre isso.

Hanayrá Negreiros é mestre em ciência da religião pela PUC SP, curadora adjunta de moda do MASP, escreve e costura histórias sobre negras maneiras de vestir e assina a coluna Negras Maneiras, na ELLE Brasil

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