“Ainda estou aqui” leva público às lágrimas no Festival de Veneza
Filme de Walter Salles sobre a advogada Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres, recupera a memória de um período e de um país.
Foi emocionante a estreia mundial de Ainda estou aqui, dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Torres e Selton Mello, na competição do 81º Festival de Veneza. Durante o terço final das sessões de imprensa e de gala, na manhã e na noite desse domingo (1.9), respectivamente, as fungadas quebravam o silêncio das salas Darsena e Grande.
Ao final, houve aplausos, que, no caso da exibição oficial, com a presença de grande parte do elenco e da equipe, duraram quase dez minutos. Walter, Fernanda e Selton não esconderam a emoção.
Selton Mello, Fernanda Torres e Walter Salles no tapete vermelho do 81º Festival de Veneza Foto: Vittorio Zunino Celotto/Getty Images
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Foi como se as lágrimas do público substituíssem aquelas não derramadas por Fernanda no papel de Eunice Paiva, uma mulher que contém dentro de si a sua dor. O longa-metragem, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva sobre sua mãe, conta a história dessa mulher extraordinária, que se reinventou para seguir a vida e criar os cinco filhos depois de perder o marido, o ex-deputado Rubens Paiva (interpretado por Selton), desaparecido depois de ser convocado para prestar depoimento por agentes da ditadura militar.
Um filme pessoal
Ainda estou aqui é um projeto gestado por muito tempo e bastante caro a Walter, que não lançava um longa de ficção brasileiro desde 2008, quando estreou Linha de passe, e um filme internacional desde 2012, com Na estrada, com Kristen Stewart.
O cineasta frequentava em sua juventude a casa da família Paiva, que ficava em uma esquina, de frente para a praia, no bairro do Leblon (Rio de Janeiro). Para ele, era um lugar quase mágico, com muita música, risada, comida boa, alegria e amor. E não sabemos disso porque ele falou, mas porque fica claro assistindo ao filme.
Ainda estou aqui é uma obra sobre a memória: do cineasta, do seu próprio cinema, de Eunice Paiva e do Brasil. “Se você olhar para Central do Brasil, para os filmes que fiz antes, a jornada dos personagens se mistura com a do país. É isso que me interessa no cinema”, disse o diretor na entrevista coletiva.
“Nós íamos ser um grande país, com a Tropicália, com o Oscar Niemeyer… E essa geração de repente foi calada por um golpe de Estado.” Fernanda Torres
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Em 1970, quando o filme começa, o Brasil oferecia duas faces: aquela da música, da arte, do cinema, da arquitetura vibrantes, mas também do período mais duro da ditadura militar. Personalidade como o pai da produtora Daniela Thomas, o cartunista e jornalista Ziraldo, iam prestar depoimento e desapareciam por meses, como ela lembrou na entrevista à imprensa. Ou pior. A promessa de futuro contida em tantos artistas e intelectuais brilhantes foi sendo esmagada pouco a pouco com as prisões, torturas, mortes, desaparecimentos, exílios.
“A Eunice enfrentou tragédias na sua vida, levava uma vida utópica, era uma dona de casa com cinco filhos e um marido perfeito”, disse Fernanda, em depoimento emocionado durante a coletiva. “De certa maneira, se relacionava com o que o Brasil estava vivendo, com a bossa nova. Nós íamos ser um grande país, com a Tropicália, com o Oscar Niemeyer… E essa geração de repente foi calada por um golpe de Estado. Ela teve de aprender e se reinventar. É engraçado como ela foi de viúva de Rubens Paiva à mãe do Marcelo Rubens Paiva. E nós nunca a conhecemos.”
Eunice ficou à sombra do marido, uma personalidade exuberante que se tornou uma das vítimas mais conhecidas da ditadura, e do filho, também autor de Feliz ano velho (1982), que virou um escritor famoso. Mas, depois de perder Rubens Paiva, assassinado pelo regime, ela se tornou advogada especialista em direito indígena, em uma época em que pouco se falava disso.
Walter Salles nas filmagens do longa Foto: Alile Dara Onawale
Marcelo decidiu contar a história da mãe em livro quando ela começou a sofrer de Alzheimer e perder, justamente, sua memória. Nessa fase, ela é vivida por Fernanda Montenegro, um reencontro de Walter com a protagonista de seu filme mais conhecido, Central do Brasil. “Fernanda Montenegro é nossa rainha, é como se fosse mãe de todos nós”, disse Selton.
Mas é um papel pequeno. Quem brilha mesmo e tem sido elogiada em Veneza é Fernanda Torres, que interpreta o terror do desconhecimento do paradeiro do marido com passos incertos, gestos mínimos e grito preso na garganta. Ela tem grandes chances na Coppa Volpi, o prêmio de melhor atriz aqui em Veneza.
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