Alice Braga: “A função do artista é o diálogo”

Atriz protagoniza "Eduardo e Monica", filme inspirado na música homônima da Legião Urbana, e fala à ELLE sobre posicionamento político, a proximidade dos 40 anos e a discrição em relação à sua vida pessoal.


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Alice Braga tinha só 3 anos quando “Eduardo e Mônica” foi lançada. Mas ela se lembra de ouvir os versos “Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração / E quem irá dizer que não existe razão?” ainda pequena, no carro do cineasta Jorge Furtado, amigo de sua mãe, com quem passava férias em Santa Catarina.

Trinta e cinco anos depois do lançamento da canção pela Legião Urbana, a atriz encarna a parte feminina do casal no filme Eduardo e Mônica, de René Sampaio, que chega a mais de 500 salas de cinema nesta quinta-feira (20.01). Eduardo é interpretado por Gabriel Leone. “Foi uma honra me chamarem para fazer o papel, porque goste-se ou não, é muito parte da nossa cultura e da história da nossa música”, disse Alice em entrevista à ELLE, feita em dezembro, em São Paulo. “Dá um frio na barriga, porque é um imaginário coletivo de uma música criada por um dos grandes poetas brasileiros que foi o Renato Russo.”

Na conversa, a atriz falou sobre o longa, a situação do cinema brasileiro, a ditadura militar que também é tratada no filme, chegar aos 40 anos e a discrição em relação à sua vida pessoal.


Eduardo e Mônica | Trailer Oficial

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“Eduardo e Mônica” é bem cinematográfica. Mas como foi transformar a canção em filme?
Sim, como Faroeste Caboclo (também transformada em longa por René Sampaio em 2013). Só que a gente tinha um desafio maior porque “Faroeste Caboclo” tinha nove minutos e uma história com começo, meio e fim. Na nossa, ele dá características e tem uns pulos na história desses dois. Como a gente destrincha essa música? A gente tentou criar camadas para virar uma história crível, que as pessoas acreditassem nesse amor. E para sair do público da Legião e quebrar essas barreiras, porque é um filme de amor, sobre diferenças, sobre encontro.

Cada pessoa tem uma Mônica imaginada. Como foi encarnar essa personagem?
Foi um desafio muito lindo. O René me disse que eu costumo fazer coisas mais densas, mais dramáticas, personagens mais fortes, fechadas, e ele queria um lado mais Alice, mais solar, que dá risada, é expansiva. Foi um desafio muito legal encontrar dentro de mim quem é essa Mônica, doar um pouco da Alice para ela. E achar o equilíbrio também de uma personagem que tem seus conflitos, de uma época e de uma cidade muito específicas do Brasil.

O que acha que tem da Alice na Mônica?
O sorriso (risos). Tive de doar todo o meu sorriso. O René dizia: “Preciso que você sorria!”. E eu dava uma gargalhada. Tem o lado politizado. Gosto demais que a gente tenha trazido isso para o filme, porque infelizmente a história se repete. Falar sobre a ditadura militar e dar a perspectiva do sofrimento da Mônica sobre isso é muito delicado. E o desejo de liberdade, que eu joguei nela, mas que ela também estava me dando pelo roteiro. É uma personagem que vai morar para sempre no meu coração.

“É um filme de amor, sobre diferenças, sobre encontro.”

Acha engraçado que as pessoas te vejam como essa mulher forte e te escale para esses papeis?
Totalmente. Eu tenho esse lado, mas não me sinto assim. As pessoas não me acham tímida, mas eu sou. Sou super frágil, insegura. As pessoas me veem de outra forma. Não é a forma que me vejo, mas acabou acontecendo. Com Eduardo e Mônica, foi bom sair dessa zona de conforto e poder criar uma personagem para uma música que é altamente solar, para um imaginário popular lindo e poder lançar o filme neste momento do Brasil. Eu sinceramente acho que foi meio destino a gente estar lançando o filme agora.

Por quê?
A gente ia lançar e segurou por causa da pandemia. Como brasileiros, a gente viveu uma pandemia muito mais barra pesada do que deveria, por causa da falta de vacina, desse governo, por N fatores. A gente está vivendo um momento de muita raiva, de muito ódio, porque esse governo impregna isso na gente. Então é bacana lançar um filme sobre amor, sobre diferença, sobre encontro, sobre diálogo e que traz um pouco de alegria para as pessoas. Espero realmente que o filme traga um pouco de carinho, porque o povo brasileiro é muito incrível. A gente não merece estar passando por isso.

E o filme chega neste momento de paralisação do cinema brasileiro.
É uma celebração do nosso cinema, que é múltiplo, que constrói coisas incríveis. Vindo o lançamento do Marighella. São filmes que têm sua potência no seu lugar, que têm voz para seu público. E é isso que a gente tem de celebrar, nosso cinema, que está sendo altamente atacado e destruído diariamente. Olha a quantidade de gente que faz cinema. Somos uma indústria muito incrível.

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Gabriel Leone e Alice Braga em cena de “Eduardo e Monica”Foto: Divulgação


Sempre há risco nas histórias de amor, principalmente da personagem feminina virar um estereótipo, ser perfeita, inatingível.
A Mônica é um pouco uma desconstrução da mulher perfeita. A gente queria mostrar como ela aprende com o ele. O Eduardo faz a Mônica amadurecer. A coisa da idade é uma bobagem, na verdade. A gente aprende um com o outro e com o diferente. A gente quis trazer isso, de a Mônica não ser essa mulher mais velha que chega ensinando tudo. Até para ficar crível. Como ela se apaixona por aquele menino? É a alma dele, a sensibilidade, a generosidade, o olhar dele para o mundo. E eu acho que os encontros de amor são isso.

Tem uma cena no filme em que a Mônica entra em conflito com o avô do Eduardo, porque ele defende a ditadura. Como lidar com isso?
O Brasil viveu uma ditadura militar e não olha para essa dor. Inclusive a gente tem um presidente que fala o que ele fala hoje sobre a ditadura militar, que ele chama de revolução. É absolutamente inaceitável. O Chile, a Argentina fazem questão, por mais que seja dura essa memória, de não esquecer. No Brasil, a gente tem uma história muito mal resolvida com a ditadura militar. O que é um erro. É um absurdo. Naquele momento é interessante ver esses dois personagens passando por esse conflito, sofrendo com isso e quase não se entendendo, mas se reconectando com a escuta do outro. Apesar de a gente saber que ela está certa (risos).

E tem tudo a ver com aquela geração, com a Legião.
Totalmente. Todas aquelas bandas surgiram no final da ditadura, vivendo em uma Brasília de 1986, que era uma cidade nova, mas estava com a ditadura muito em cima, pesada. A música que eu mais ouvia da Legião quando estava fazendo a Mônica era “Perfeição”. Porque fala muito sobre esse sentimento, cai como uma luva para os dias de hoje no Brasil. Tem várias, “Que país é esse?” e tal. Ouvia muito essas músicas para criá-la. Ouvia muito “Como nossos pais”, com a Elis. Tinha essa coisa politizada que a gente quis criar nela.

“As pessoas não me acham tímida, mas eu sou. Sou super frágil, insegura.”

Pregar o amor e o entendimento é meio revolucionário hoje?
Eu acho. O amor salva.

A pandemia demonstra bem isso, não?
Sim. Inclusive o fato de termos novas variantes vem da divisão, do fato inacreditável de muitos países não terem vacina. Isso prova que o sistema que a gente vive está muito errado, porque a desigualdade tomou uma proporção… O dinheiro é muito mais importante, e o crescimento desenfreado é absoluto. A vida das pessoas vale muito menos do que um bilionário chegar à Lua. A gente está destruindo o planeta e se destruindo. Está caminhando para um lugar muito difícil, que a gente mesmo está criando.

Esse seu lado politizado atrapalha ou atrapalhou sua carreira?
Não sei se atrapalha. Talvez algum bolsonarista não queira ver meus filmes. Sinceramente, espero que assistam porque faço para todo o mundo, principalmente porque tenho vontade de falar com as pessoas que pensam diferente. A função do artista é o diálogo. Eu acho muito impossível não falar de política com o que a gente está vivendo hoje, principalmente no Brasil. É uma questão de sobrevivência mesmo.

“Talvez algum bolsonarista não queira ver meus filmes. Sinceramente, espero que assistam porque faço para todo o mundo.”

Você sempre fala que seu país é o Brasil. Mas você mora nos Estados Unidos hoje, não?
Eu estava filmando lá e por causa da pandemia fiquei dois anos sem vir ao Brasil. E foi muito difícil. Foi a primeira vez que fiquei tanto tempo sem vir ao país. Voltei há três semanas e foi uma catarse porque pousei já chorando. Foi muito difícil estar longe com a situação que o Brasil ficou. Para mim foi inacreditável eu me vacinar antes da minha mãe. Foi uma coisa simbólica, mas que me pegou muito. Foi muito conflituoso isso.

Como foi trabalhar com a Chloë Sevigny em We are who we are?
Foi muito incrível, tenho uma admiração absurda pelo Luca Guadagnino (diretor da série). Para mim foi um projeto bonito porque é outra ótica sobre a maternidade, e não por serem duas mulheres (na série, a personagem de Alice é casada com a de Chloë, mãe de um adolescente). Mas porque é um contexto doido, de americanos fora dos Estados Unidos. A Chloë é gênia. É uma atriz muito incrível, fiquei apaixonada por ela. Somos amigas. É uma atriz múltipla, uma nova-iorquina clássica, que faz piada e não dá risada. Eu tinha ataque de riso, e ela seríssima.

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Foto: Divulgação/Janine Moraes


Você também tem projetos pessoais, não?
Na pandemia, fiz o Cinema de Fachada com a Bianca (Comparato, sua namorada), com projeções de cinema em algumas cidades. Foi meio um desejo de seguir resistindo, fazendo o cinema sobreviver neste momento, de trazer alegria para as pessoas. Tenho alguns projetos que estou desenvolvendo como produtora e atriz, por exemplo, um documentário com o Luiz Bolognesi sobre a Amazônia e o meio ambiente. É um desejo de, além de produzir projetos em que eu atue e que venha a dirigir, ajudar outras pessoas a contar suas histórias.

Você sempre foi muito discreta em relação à sua vida privada.
Continuo (risos).

E seu relacionamento com a Bianca Comparato foi revelado. Vocês parecem ter levado numa boa. Acredita que as coisas mudaram ou você que mudou, lidando mais tranquilamente com isso?
Eu não falo muito da minha vida pessoal, eu nem posto muito sobre minha vida. Não tenho nada contra quem faz. Eu sempre fui meio privada porque é meu jeito de ser. E tem um lado meu de, quanto menos as pessoas sabem sobre mim, mais acreditam quando me veem no cinema. Em relação à minha vida pessoal, à Bianca, foi bem isso, uma coisa natural de estar vivendo minha vida. Tanto que, quando saiu, foi: “Sim, estamos juntas”. Não era nem um medo da não-aceitação, ou do preconceito, até porque acho que estamos em 2021 (a entrevista foi feita em dezembro do ano passado). A gente tem de falar da nossa pluralidade, tem de falar de amor. Esse filme fala sobre isso, inclusive. De diferenças, de aceitação. Não é nem por isso. É minha forma de ser, de levar a vida desse jeito. Mas tem de normalizar. Tem de celebrar o amor.

Estar chegando aos 40 incomoda?
Engraçado, não me incomoda. É uma coisa de celebração. Estar vivo é tão, desculpe o termo, foda, ainda mais hoje, neste país. É resistir a um governo que governa pela morte. Acho bonito a gente celebrar. E acho bonito a mulher celebrar a idade, porque se cai muito em cima da mulher sobre a coisa de envelhecer. Chegar aos 40 é demais. A preocupação com a beleza e tudo mais, se isso é saudável, se é orgânico e faz bem, acho incrível. A gente só não pode virar escravo por causa de um olhar de uma sociedade e de terceiros. Temos de celebrar as mulheres pelo que nós somos, nas nossas diferentes fases da vida. Vou lutar para sempre por isso. A mulher tem de ser respeitada cada vez mais. E igualdade de gênero também se trata disso.

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