Letrux solta os bichos em “Mulher girafa”

Cantora fala sobre seu terceiro disco solo, sua porção atriz, envelhecer sem botox e ter um namorado e uma namorada.


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Foto: JFR



Letícia Novaes resolveu assumir a altura de 1,85m e os instintos animalescos em seu recém-lançado terceiro álbum solo, que batizou de Letrux como mulher girafa. Gestado em grande parte à beira da Lagoa de Araruama, em São Pedro da Aldeia, na chamada Região dos Lagos fluminense, durante a fase aguda da pandemia, tornou-se um tratado divertido e debochado sobre o mundo animal, aí incluídos os humanos, em faixas batizadas “As feras, essas queridas”, “Louva deusa”, “Intervalo da pantera megera”, “Formiga”, “Zebra”, “Intervalo do ovo ou da galinha?”, “Crocodilo”, “Aranha”, “Leões”, “Hienas” e “Abelha”.

Não é uma novidade para a cantora, compositora e atriz carioca. Na dupla Letuce, formada no início da década de 2010 com o então companheiro Lucas Vasconcellos, havia canções denominadas, por exemplo, “Ballet da centopeia”, “Tuna fish”, “Medo de baleia” e “Arca de Noé”. A quarentena na casa de férias da avó em São Pedro da Aldeia não rendeu apenas grande parte das canções de Mulher girafa. Ali foi gestado e filmado também o documentário em média-metragem A vida é um frenesi (2023), de Marcio Debellian, no qual Letícia reflete sobre a morte a partir de experiências como a perda da prima Marina, aos 19 anos de idade. É uma história que a artista revisitou neste ano, participando como atriz da intensa série A Vida pela frente, de Leandra Leal, em torno de um grupo de adolescentes e da morte de uma delas.

A cantora recebeu este repórter no camarim do Sesc Pompeia, antes de um dos shows da Mulher girafa em São Paulo, de cima de uma cadeira, trocando as lâmpadas de luz branca do ambiente, para ela parecido com um hospital. Na conversa, ela falou sobre medo e fascínio pelos animais (inclusive humanos), sobre música, moda e instinto maternal, sobre ter mais de 40 anos e não querer fazer procedimentos estéticos e sobre ter simultaneamente um namorado e uma namorada: “Estamos tentando”.

LETRUX CAPA DISCO


Como é ser uma mulher de 1,85m?

Sempre fui muito grande, meu pai tem 1,96m, meus irmãos são mais altos que eu. Esqueço que sou alta, só lembro quando não caibo no avião, me machuco ou no supermercado, quando uma criança fala: “Você é alta!”. Hoje em dia os adultos tentam respeitar o corpo alheio e não fazem mais comentários. Quando eu era hétero, tinha uma coisa de os homens altos gostarem das baixinhas, e os baixinhos vinham com tudo, que é uma coisa curiosa. Meu namorado tem a minha altura, um centímetro a menos.

Por que você colocou “mulher girafa” no título do novo álbum?
O animal é óbvio, o ser humano nem tanto. Você olha um escorpião e não pensa “será que é um rinoceronte?”, mas olha um ser humano e se pergunta: é psicopata?, social climber?, borderline?. A gente não sabe o que o ser humano é. Agora eu quis ser bicho um pouco, desligar a cabeça. Durante a pandemia tinha dias que eu não falava nada nem emitia som. Só comia, bebia, dormia, praticava coito, se fosse o caso. Fiquei muito animal. Teve um dia que não peguei garfo, comi a comida da panela com a mão. Para que vou lavar um garfo? É pandemia, as pessoas estão morrendo, não tem Ministério da Saúde, socorro! Fui percebendo coisas animalescas nas minhas composições, toda hora tinha uma frasezinha de um ditado com alguma coisa de bicho: desse mato não sai cachorro, matar um leão por dia. Tenho uma tatuagem de girafa gigante, meu e-mail é “girafaleticia”, sempre tive esse fascínio, a pele da girafa é hipnotizante.

“Quando me assisto cantando nos Stories, vejo que minha cara cantando é meu pai incorporado”

Quem é sua família?
Minha mãe é professora de francês, que já é uma coisa diferente. Ela me levava para ver filmes legais, fora do mercado norte-americano, Truffaut. Meu pai trabalhou no Banco Brasil a vida inteira, classe média da Tijuca (Rio de Janeiro), um bairro bem tradicional. Na primeira vez que peguei um avião, fui à Disney, quando o dólar estava 1 real. É esse nível de tradicional. Mas, ao mesmo tempo, tem coisas espirituais e esquisitas, no sentido de que meu pai é médium da umbanda, minha mãe é do reiki. Era uma coisa padrão, tradição, mas tinha a espiritualidade. Desde que sou criança vejo meu pai incorporar. Eu e meu irmão ficávamos rindo, “papai está diferente” (risos). Minha mãe falava: “O caboclo do seu pai está dando um recado”. Isso foi se naturalizando, e hoje em dia sou ultradependente dos conselhos que meu pai recebe. Quando me assisto cantando nos Stories, vejo que minha cara cantando é meu pai incorporado.

Noite de climão (2017) criou uma imagem de você ser noturna, da balada. É real?
Não tanto, sabia? Antes de ser da balada sou do teatro. No Climão, as pessoas ficaram “uau, Letícia é uma louca da night”, e eu ria, porque sou da praia, gosto de acordar cedo. Quando saio à noite, aí eu vou e fico. Mas não gosto de ver o sol nascendo na balada, odeio. Sou tão carioca, se o sol nasceu fico: “ai, meu Deus, é praia agora”.

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O reino animal de Mulher girafa é meio doidão, tem um ovo que aparece toda hora.
(Risos) Eu amo o ovo, tenho uma tatuagem. Ovo é uma coisa fascinante. Fiz um poema uma vez em que dizia que eu não queria engravidar, queria chocar um ovo. A gravidez é dentro de você, uma transformação muito forte, se eu pudesse só dar uma chocadinha ia ser incrível. Não tenho filhos, mas sou maternal sem eles. Mando mensagem no grupo da banda: “Gente, vai estar 9 graus em São Paulo, levem casaco”. Mas, sim, claro que o ovo lembra o óvulo. Já tive vontade, não tive, é sim e não o tempo inteiro. Sou uma pessoa um pouco eco noiada sobre futuro, distopia, ondas de calor. Então, por enquanto, não. Mas também acho lindo famílias com histórias de adoção. Choro. Pode ser que eu choque algum ser humaninho. Sinto o machismo (da cobrança para ser mãe), mas meu círculo é tão protegido que não sinto essa pressão do mundo. Claro, já fui numa ginecologista que falou uma coisa horrível para mim: “Seu útero está velho”. Fiquei chocada. Acho até que ela era bolsominion, nunca mais voltei.

Como você usa a moda em cena?
Me divirto muito. Não quis entrar de girafa no show novo, achei que ia ser too much. Talvez para um projeto infantil fosse perfeito. Chamei Thaís Delgado, uma estilista maravilhosa do Rio, que criou esse figurino com as cores da girafa, meio bege, meio marrom. Estou mais uma amazona, só a bota é de girafa. Roberto Carlos ia morrer, mas marrom é a cor de Capricórnio. Gosto de brincar com moda no show, é um momento meio drag queen. Não usaria essa roupa na vida, não nasci com o fogo da Elke Maravilha. No dia-a-dia me visto mais minimalista, até porque sempre fui muito alta, sempre chamei muita atenção. Amo detalhes coloridos, diferentões, queria ter essa coragem, mas sofri bullying na adolescência e vi que se eu não chamar atenção é melhor.

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Dá para não chamar atenção sendo artista?
No palco é foda-se tudo. Fora do palco, já estou com 41 anos, bem analisada, bem trabalhada em espiritualidade, mas criei um estilo, não sei se agora vou conseguir de repente ser Elke Maravilha. Sou da praia, pego sol, camiseta, vestidão. Mas no show gosto de me emperequetar, fazer maquiagem exagerada. É a hora de ser criança.

Que espaço a atriz ocupa em você?
De formação sou mais atriz que musicista. Sou formada em teatro, mas sinto que fiz teatro para ser cantora. Quando saí da CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), muita gente foi fazer teste na Globo, e eu montei uma banda. Mas o que vivi ali dos 19 aos 23 anos está entranhado no meu DNA. Até fiz um filme blockbuster há muitos anos, Qualquer gato vira-lata (2011), eu era a melhor amiga da Cleo Pires (risos). E agora fiz a série da Globoplay A Vida pela frente (2023). É sobre a adolescência em 1999, e eu tinha 17 anos naquele ano, como no roteiro. São amigos enfrentando o luto de uma amiga que morre, e minha prima morreu em 1999, era minha melhor amiga. Faço papel da mãe doidona de uma das meninas. Foi engraçado fazer, porque minha mãe era zero doidona, e eu tinha que interpretar uma mãe meio bêbada na festa. Foi muito legal, (a criadora, diretora e atriz da série) Leandra Leal é o máximo, parece que essa história aconteceu com ela e as amigas.

 

Como está vivendo a faixa dos 40 anos?
As coisas estão mudando, né? Sigo uma mulher maravilhosa no Instagram, ela já tem 50, e o perfil é todo voltado para falar sobre o etarismo, que assola principalmente as mulheres. Ainda me sinto um pouco moleca. Sou zero procedimentos. Pode ser que sim (faça, no futuro), mas acho tão mais bonito assim. Quando fui a Paris, uau, as pessoas parecem comigo nesse sentido, as mulheres têm rugas. Isso me deu paz. A área em que transito, galera da praia, é mais hippie, mas fico muito chocada, vejo cantoras botando (botox), porque ganham “publi”. Não me oferecem nada, porque acham que sou uma louca rebelde, petista. Mas acho que não vou fazer (procedimentos estéticos), também porque trabalho com meu rosto. Fiz curso de palhaçaria, não dá para mexer na cara, ela é muito forte para a cena. Minhas musas são pessoas que não fazem: Maria Bethânia, PJ Harvey, Patti Smith, Nina Simone. Minha mãe também é mais assim, mais natureba, mas superlinda, sofisticada, chique.

Você namora Thiago Vivas, que é filho de Jerry Adriani. Qual foi a conexão?
Ele é músico e compositor também, participa de três faixas nesse disco, “Leões”, “Zebra” e “Teste psicológico animalesco”. Mas a pesquisa dele é mais de música erudita, faz faculdade, é cabeçudíssimo. Quando Jerry morreu, eu estava com ele, estávamos até na hora da passagem. Quando o conheci, em 2013, não sabia que ele era filho do Jerry, só era um ruivo lindo, maravilhoso. Estamos juntos há dez anos. Ao longo do tempo, fui descobrindo e entendendo minha bissexualidade, e há quase dois anos eu também tenho uma namorada. É tudo entendido, sou uma pessoa que tem um namorado e uma namorada (Katja Taubert, autora da capa de Letrux como mulher girafa e codiretora, com Letrux, do clipe de “As feras, essas queridas”). É moderno, mas ao mesmo tempo também não é. Acho que todo mundo, seja um casal hétero ou homoafetivo, já lidou em algum momento com a situação de amar alguém, mas se sentir atraído por outra pessoa. A maioria das pessoas vive isso clandestinamente ou não vive e sofre por isso e fica pensando: e se…? Cheguei numa fase da vida que não quero mais ficar no “e se?”, nem quero mais fazer nada clandestino.

“Ao longo do tempo, fui descobrindo e entendendo minha bissexualidade”

Eles também namoram entre eles?
(Risos) É mais que eu tenho um namorado e uma namorada. Mas eles são amigos, se amam, são parecidos até. Somos um núcleo familiar, de alguma maneira. Dá confusão, mas namorar uma pessoa só também dá confusão. Que relação não é caótica? Moro com Thithi (Thiago Vivas), e ela mora em São Paulo. Sobre o que eles fazem ou não, prefiro não saber. Tenho essa teoria, o fantasma na minha cabeça é menor do que a realidade. São novas tentativas. Sempre tive uma vida mais tradicional, e de repente tive um despertar, de querer tentar outra abordagem do afeto. Temos momentos de tensão, mas também momentos de sonho, que coisa linda, gente. Estamos tentando.

Suas músicas falam de relações instáveis, e você está dizendo que na realidade é o oposto?
Não são todas autobiográficas, tem muita coisa que me lembro da minha vida passada, ou que pego desta geração falando. Sou muito girafa nesse aspecto. Sou alta, então vejo tudo. Tudo. Durante o show, canto de olho aberto, vejo quem se pegou. Tem elementos que são pura maluquice e invenção, mas em “Que estrago” (2017) falo de um amor entre duas mulheres, “que estrago que você fez aqui na minha casa, garota, toma tenência”. Uma música nova que fala sobre trio é “As feras, essas queridas”, que fiz com o Thiago e Katja do meu lado. Abri minha casa para essa chegada. “Abri a cara”, porque dói, se falar a verdade. “Abri a caixa torácica”, onde tem o coração. “Deixei sair as traças”, que são as ideias antigas. “Deixei sair as traças, deixei entrar as taras”, eles estavam do meu lado. Não tinha falado isso para ninguém, nem eu sabia também (risos).

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