“Melhor não contar”: livro de Tatiana Salem Levy trata da história que une tantas mulheres
Autoficcional, a publicação narra do abuso do padrasto ao descaso do companheiro durante um aborto.
“Eu sei, eu sei”. Essas duas palavrinhas-socos no estômago e na cara ficam na nossa cabeça ao final de Melhor não contar, romance autoficcional de Tatiana Salem Levy, recém-lançado pela editora Todavia. É a resposta do padrasto dela, durante uma derradeira conversa entre os dois, em Paris. Sim, ao ser indagado se sabia o mal que havia lhe causado na adolescência, o homem nem titubeia. Ele sabe, mas isso não fez a menor diferença.
Oitava obra de Salem, este não é o seu primeiro livro a tocar em questões viscerais do universo feminino. Em Vista Chinesa, o estupro sofrido por uma amiga é a força-motriz da história, o sangue condutor da narrativa. Mas Melhor não contar não deixa de ser uma estreia. É o primeiro memoir da escritora, gênero de não-ficção que ganhou mais abertura nas editoras brasileiras depois que a francesa Annie Ernaux, especialista no formato diário, angariou o Nobel de literatura em 2022. É a primeira vez que Tatiana descreve o abuso sofrido ainda na adolescência, enquanto a mãe adoecia e seu padrasto aproveitava para escorregar mãos e carinhos não consentidos. Fora de lugar.
Tatiana Salem Levy Foto: Julia Seloti
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Nascida em 1979, a escritora convivia com o namorado da mãe desde os 5 e foi aos 10, no primeiro fim de semana das tão almejadas férias escolares de 1989, que notou alguma coisa estranha no olhar daquele homem que, até então, era apenas uma barriga grande em que ela e a irmã brincavam de estourar bexiga, uma figura paterna cuja presença era motivo de festa.
Sua mãe, a também escritora e jornalista, Helena Salem (1948-1999), costumava frequentar a piscina da casa sem a parte de cima do biquíni, odiava sutiã, como grande parte das mulheres, eu aqui incluída. Estimulou a filha a fazer o mesmo, se libertar, sem se preocupar ou se dar conta de que a figura de um homem, mesmo a de um homem conhecido, amado, admirado, pode ser sinônimo de abuso – fica claro em todo o livro a admiração inconteste da mãe pelo namorado, identificado apenas como um cineasta famoso. E aqui não entendi se Salem não quis divulgar o nome por receio de um algum processo ou por escolha literária mesmo. Em todo caso, basta um Google: Nelson Pereira dos Santos (1928-2018), um dos maiores cineastas brasileiros de todos os tempos, namorou Helena Salem. Melhor contar.
Histórias cruzadas
Entrelaçando memórias do seu passado distante com o passado recente e trechos dos diários da mãe – recurso literário coincidentemente adotado também por Liana Ferraz em Um prefácio para Olivia Guerra (HarpersCollins, 2023) –, Melhor não contar conta a história de várias mulheres da mesma família, mulheres brancas, privilegiadas, mas ainda assim tristes, reprimidas, às voltas com as dificuldades da maternidade, da solidão, “sem sorte no amor”. Conta o enredo de muitas de nós – como diz Virginie Despentes, em Teoria King Kong (N-1 Edições, 2006), sendo mulher é quase certo que uma violência aconteça em algum trecho da nossa existência.
Para Tatiana, essa violência começou com um desenho feito por um cineasta famoso, que entendia bem de fotografia, e ainda assim resolveu rabiscar uma menina sem rosto com seio empinado. Aquela menina de 10 anos na piscina, que, por ironia do destino ou falta de sorte mesmo, ficou menstruada naquela dia. Sangue escorrendo pelas pernas. Uma garotinha despersonalizada, sem cara, portanto, sem identidade, tampouco sentimento. Apenas seios promissores. Um alerta vermelho que, não se sabe, talvez nem a autora saiba, se passou despercebido pela mãe – Helena morre antes que as duas possam quebrar o silêncio, antes que Tatiana possa contar, indagar, talvez até poder ficar brava com a mãe. Mulheres grandes deveriam zelar pelas pequenas.
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Acontece que mulheres grandes também são vítimas e talvez isso nuble o olhar, ainda que essa não seja uma boa desculpa, quero aqui reforçar. Aos 44 anos, já mãe de dois filhos, Salem engravida do parceiro, identificado como G. no livro, e decide abortar. Ao que tudo indica, essa decisão é conjunta, eles moram em Portugal, o aborto é legalizado, o que em teoria facilita as coisas. Mas me pergunto por que a autora frisa tanto a quase fobia do parceiro diante da possibilidade dela querer manter a gestação. O quase medo na hora de contar – “não fica bravo comigo”. E a total indiferença dele quando aquilo que deveria ser simples, na teoria, se torna complicado, na prática. Sangue demais escorrendo demais pelas pernas.
Sem acusar nem julgar – a autora diz que não escreveu com essa intenção –, Tatiana, no fundo, aponta para pelo menos um culpado nesta e em tantas outras histórias de mulheres: a sociedade patriarcal, machista, que assegura que muitas de nós prefiram nunca contar o que vivenciaram. E que, consequentemente, quase todo homem saia da vida impune. Melhor não contar, dizem suas amigas, a psicanalista, os namorados, o mundo afora. Ainda bem que Tatiana resolveu falar.
Trecho:
“Sobre o que é o livro, afinal?, me pergunta G. As respostas costumam variar. Hoje eu diria: sobre o sangue que sai da minha boceta, de todas as nossas bocetas. O sangue da primeira menstruação, do parto, do aborto, da violência sexual. O sangue com o qual lidamos tantas vezes ao longo da vida e do qual vocês têm tanta repulsa.
Então, penso: há tanto sangue na literatura, tanto sangue no cinema, mas é dos assassinatos, das guerras; às vezes, das doenças; nunca o que escorre pelas nossas pernas. Por que nos ensinam a ter nojo desse sangue, enquanto somos expostas a tantos outros?”
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